terça-feira, 17 de junho de 2008

O Afonso das Gaivotas


Por: António Centeio
Levou grande parte da sua vida no mundo do vinho. Paródias em cima de paródias. De tal forma, que já não podia passar sem andar com nódoas na roupa de tanto beber. Tornou-se um desleixado, como a sua família, passou a ter vergonha dos seus actos e das situações que criava. Quantas vezes a mãe do seu filho não o tinha que ir buscar à praia e deitá-lo dentro de um carro de mão, trazendo-o para casa, de maneira que as pessoas não o vissem deitado na areia curtindo os efeitos do que tinha bebido horas antes. Os seus amigos em vez de não o desinquietar ainda sentiam satisfação de encaminha-lo para o meio da lama para depois dele se rirem ou dele, fazerem um farrapo. As vergonhas foram tantas, que sem dar por isso, quem seu sangue tinha nas veias, começar a abandoná-lo porque não lhe conseguia dar-lhe a volta e já não estava disposto a passar por tantas vergonhas. Quando no estado normal despertava, então um complexo de culpa, junto de vergonha, levava-o a reflectir, durante pouco tempo, para de seguida sentir as lágrimas pelos remorsos da reles vida que levava. Passados estes momentos de solidez, seguia logo para as pequenas tabernas para começar o que já era habitual.
Só começou a despertar quando lhe disseram, em estado sóbrio, que seu filho sentia vergonha de quem seu pai era. Nunca se tinha apercebido que, quando trocava o passo, o filho mudava de passeio ou fingia não o conhecer, porque a idade que já tinha não lhe permitia ser enxovalhado pelas pessoas, como estas, só o viam como «o filho do desgraçado de quem nem pai sabe ser». Perdeu tudo e todos. A família que mais o protegia deixou-o só e abandonado porque não conseguia fazer dele o homem que em tempo foi e que todos admiravam. Nunca descobriram a razão que o levou a entrar no mundo do vinho. Ao ver-se sozinho prometeu a si próprio que iria deixar a vida que andava levando para iniciar uma outra nova. Assim fez e assim cumpriu.
Hoje leva os dias alheios a tudo que o rodeia, excepto as suas companheiras silenciosas. Pela manhãzinha quando se levanta da sua amorfa cama, situada numa pequena casa de rés-do-chão, que é húmida por estar numa ruela, onde o Sol nunca entra e de tão estreita ser, passa pela pequena padaria onde ainda se fazem vianhinhas, comprando – com as esmolas que lhe dão – meia dúzia.
O velho padeiro de tanto o conhecer, coloca-as no seu velho e usado saquinho de flanela dando-lhe ao mesmo tempo restos de pão que sobra do dia anterior para quem de si está junto. Depois segue o percurso até ao Picadeiro para atravessar o areal. Senta-se de seguida bem perto do mar para só se levantar ou mudar de sítio quando a maré começa a subir. Do saco tira a vianinha que acha ser a maior e mais macia para a mastigar lentamente. Do oferecido, desfaz o miolo em minúsculas bolinhas e vai espalhando-as em seu redor para as gaivotas que lhe fazem companhia – já o conhecem por estar sempre na mesma posição e no mesmo sitio. Criou hábitos nas aves, como os hábitos que sustentou durante anos, ao ponto de ambos saberem o que podem contar uns dos outros. De tal forma, quando menos esperava uma das companheiras voadoras, julgando que tinha direitos sobre quem lhe dava de comer, um dia subiu-lhe para o seu ombro para começar a bicar-lhe a sua cabeça com o seu cumprido bico, coisa que o assustou.
Sem saber porquê, se não era a mesma era uma outra, nos dias seguintes repetia-se a proeza. Começou a enxotá-las porque as bicadas faziam-lhe doer-lhe a parte que protegia o seu fraco cérebro. Mais as enxotava mais elas o apoquentavam. Os dias começaram a tornar-se incómodos e sofríveis para não dizer de angústia. Teve que mudar de poiso porque já tinha medo de quem tanta companhia lhe tinha feito. Assentou arraiais, algures debaixo de um rochedo, que de esquina, destrinça a extrema das praias com nomes diferentes mas que são só uma. Deixou de ser um homem para ser uma criança. Mal vê uma gaivota voando lá no alto olhando para baixo em busca de outros alimentos ou de algum peixe à toa do oceano ou enquanto espera pela chegada dos barcos que regressam da faina, assusta-se para se mirrar de tão assustado estar. Julga, de quem tem medo, seja alguma conhecida que na outra banda lhe bicava a cabeça mas que agora lhe vem pedir contas daquilo que deixou de dar. Só regressa ao lar quando o Sol começa a mudar para o outro lado da terra. Detesta as gaivotas e encolhe-se quando ouve os seus cantares. Nos sonhos, vê as gaivotas dentro de casa sobrevoando e consumindo o pouco que resta do seu corpo, deixando-o esburacado e sem forças para resistir a quem tanto deu de comer.
Salta da cama, feito um doido, para se sentar na mesma. Dobra as pernas, para no meio dos joelhos meter a sua cabeça vazia; então cai em si. Noites turbulentas que o levam a vadiar nas madrugadas silenciosas, mas assustadoras. Vale-lhe como protecção, os homens do mar que já o conhecem desde o tempo que viam o Afonso das Gaivotas falando para as gaivotas, ou as gaivotas falando para ele.
Recolhem-no numa das velhas barracas que serve de arrumação para os apetrechos da pesca, fazendo-lhes ao mesmo tempo companhia, não como homem, mas como alguém que ainda é gente, merecendo mais compaixão do que atenção. Resguardam-no, não pelo incómodo que possa dar mas por causa do seu medo das gaivotas. Dele não se riem mas da sua desgraça tem pena – apenas está para ali. Levou anos demais da sua vida a meter a cabeça debaixo do chão, como a avestruz, quando devia olhar as coisas de frente. Um desgraçado, com amostra de gente, que se deixou dominar pela fraqueza da vida e do vinho.

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terça-feira, 10 de junho de 2008

Quando o azar persegue quem menos merece


Por: António Centeio

Veio à luz do dia no seio de uma família modesta onde os bons princípios lhes foram incutidos desde pequenino para que soubesse respeitar os outros e estes o respeitassem. Ao mesmo tempo foi bafejado pelo azar quando nasceu, talvez pelos sinos repicarem no momento em que chorou pela primeira vez ou pela imensidão do espaço que esperava o crepúsculo. Galveias foi aos poucos embrutecendo, não pelo que aprendeu mas por força de quem o rodeava. Sempre pediu às pessoas que fosse acusado do que fizesse e nunca o contrário mas os adultos teimavam em impedir a normalidade do oráculo de quem não pediu a ninguém para nascer como nasceu.
A vida fez com que nascesse com o que tinha como Galveias sabe que até fim da sua vida deverá suportar com resignação o peso e incómodo de ser corcovado, vulgo marreco. Aos cinco anos era uma criança alegre de sorriso triste. Talvez já pressentisse o que lhe reservaria o futuro para, a meados da juventude, tivesse saudades do tempo passado.
Ainda criança perguntava à mãe «quando é que vou para a escola para andar com a malinha às costas como os outros meninos?». Respondia-lhe que «está quase meu filho. Falta pouco tempo!» Mas no fundo pensava: «o defeito que o petiz têm desde que nasceu, na escola, não servirá de chacota?» Não estava longe da verdade. O tempo veio mostrar que a sua profecia estava certa.
Valeu ao Galveias os conselhos de quem lhe deu a conhecer a luz do dia como o colocou na ingratidão do mundo. A ajudá-lo, a velha e sempre preocupada professora D. Filipa que o apoiava e estimulava, quando a ela, se queixava das partidas e maldades dos outros meninos. Foi esta mulher de ensino primário que lhe ensinou que a «calúnia é como o carvão, quando não queima, suja». Nunca se queimou mas andava sujo e ofendido pelo seu defeito, ao ponto de ter levado uma vintena e tais de anos a ouvir tudo o que os outros lhe queriam chamar. Por mais que Galveias criasse as suas defesas mais os moinhos deixavam de existir mas o vento continuava a ser o mesmo.
«Marreco para aqui marreco para acolá» todos o gozavam e enxovalhavam. Sempre pronto a ajudar quem lhe pedisse ajuda, mesmo algumas vezes o explorando, não regateava trabalho de espécie alguma a fim que pudesse ganhar alguns trocos para ajudar a mãe nas despesas da casa, já que seu pai entendia levar os dias à sombra quando o Sol o incomodava, mesmo sabendo que a desgraçada da mulher todas as madrugadas levantava-se com o desaparecer das estrelas, metendo a rodilha de trapos no cimo da cabeça para segurar a caixa que tinha o «peixe fresquinho» entregue pelos “Luzes” pouco antes de começar a pregar pelas ruas «olhem a sardinha e carapau acabadinho de chegar!»
A vida é como um circo: cheia de trapalhadas e palhaçadas. Às vezes é preciso lembrar às pessoas que a chuva também é composta de lágrimas misturadas com amargura.
Foi num dia de chuva que Galveias bebeu uns copitos e se pôs a dançar do adro da colectividade da terra. Todos se riam, das tontices do vinho que tinha ingerido ao longo do dia, depois de logo pela manhãzinha ter sabido que tinha «trabalho garantido por seis meses na apanha do melão lá para o lado das Lezírias».
Os seus velhos camaradas de escola riam-se a bandeiras desfraldadas. Um ou outro fizeram-lhe partidas, mas o mais afoito, por razões desconhecidas, aplicou-lhe meia dúzia de lambadas sem razão alguma, levando os restantes comparsas a incentivá-lo a outras coisas mais. O pobre Galveias nem força já tinha para se colocar em cima das suas frágeis pernas. Encolheu-se como um canguru e apenas pedia aos santos que a porrada parasse por ali. Parou uma ova!
Foi malhar no desgraçado até não poder mais. Como não bastasse, enquanto encolhido, com a cabeça no meio das pernas, o outro artista começou a chamar-lhe nomes feios como a mexer-lhe na parte íntima da rectaguarda. As pedras da calçada sorriam de tanto ouvir palmas e elogios para quem originava o triste espectáculo. De Galveias, apenas choro e gemidos.
Como que o diabo se tivesse soltado naquele momento, o escuro da noite tapou a vista a quem deveria ver e abriu a de quem já tinha os olhos todos negros de tanta pancada ter levado. Num ápice, segundo consta, só se ouviu um estalido e um grito de dor. Galveias tinha conseguido tirar do bolso um canivete para o espetar em cheio no coração de quem o agredia. Fez-se luz mas era tarde demais para todos.
Galveias era como um ramo de árvore. Não podia estar separado do tronco senão faltava-lhe a seiva que alimentava a sua alma. Cumprida a pena, nem uma migalha do seu passado encontrou quando regressou à aldeia que o viu nascer. Hoje, anda pelas ruas como uma folha nos dias de Vento. Até quando foi ao cemitério, a campa dos pais tinha um aspecto frio e desolador.


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Próximo do azul tudo é uma eternidade




Por: António Centeio

Eram nove e quinze quando cheguei à estação de comboios. Tirei o bilhete com destino à Gare do Oriente. Quando me encontrava no cais do embarque olhei para o céu. Estava carregado de nuvens escuras. O horizonte deixou-me triste. Deixava para trás toda uma vida cheia de recordações. A minha voz interior dizia-me que jamais sentiria a essência dos momentos sublimes até aqui vividos como a minha alma sentia um vazio no abandono das suas raízes.
Iniciada a viagem, os meus olhos choraram porque só eles souberam transmitir à mente a grandeza e perfeição de beleza da extensa planície ribatejana. Apenas o meu coração pulava de alegria. Sabia aquilo que o esperava – o momento do encontro. Tão poucos quilómetros de distância mas que se tornavam penosos. Como o mundo é pequeno!
À muito que tinha conhecido Ana. Falávamos várias vezes durante o dia dos nossos problemas. Aos poucos fomos ganhando uma profunda amizade. Conhecia a cidade como a «curva das canas» porque, quando da sua infância, passava pela mesma diáriamente a caminho da escola. Bem cedo foi viver para Lisboa. O que aprendeu, fez com que me ensinasse o significado «estamos em online» (era a palavra mágica para iniciarmos a nossa intimidade). Todos os momentos livres que tínhamos eram para estarmos em «on» – Queríamos mais, sempre mais. Ensinou-me a entrar no mundo do «mirc» como saber quem pode estar por detrás de um «nick» ou ouvir a sua voz no «icq».
Ana sabia mais do que ninguém de que “ tudo se relaciona com o mundo das ideias para podermos estabelecer dois planos. Um deles processado directamente com a actividade literária. O outro era a teoria e a ideia, porque entendia que a ciência dos princípios é a ciência dos que investigam as causas ou as razões últimas das coisas”. Eram estes princípios filosóficos que a levavam a ter pensamentos profundos para que se inquietasse quando raciocinava, levando-a assim a estar sempre desconfiada para com o seu «mestre» como me chamava.
Usávamos muito para ‘discussão’ o «Livro de Sofia». Um longo livro que acabou por nos dar a hipótese de fazermos análises profundas sempre que nos encontrávamos.
Ana, sabia que pela sua falta de confiança em mim (por ser mais velho do que ela na idade) e ao contrário do que julgava, aumentava entre nós dois uma misteriosa energia que nos unia. “Alturas há, que até estranhamos os nossos próprios instintos”. Até «Dudu» o seu gatinho de estimação nos avisava para “estarmos preparados para as surpresas da vida”.
“Devemos estar preparados para as surpresas da vida....”. Ana sabia que «cada um» deve buscar o seu tesouro e que o encontre. Os sinais farão o resto, porque “todos os dias são iguais e, as pessoas deixam de perceber as coisas boas que aparecem nas suas vidas porque não sabem perceber o sinal quando o Sol cruza o Céu” ou quando a sua «Outra Parte» lhe confia toda a “sua vida para que compreenda que nada tem a esconder” desejando apenas a “compensação da total entrega”. Coisas que, Ana, tinha dificuldade em enxergar.
Um dia viria a saber que a amizade que íamos cimentando quando teclávamos ou quando percorríamos a grande avenida, que secretamente o “brilho da bola do Céu” estava fazendo – sem que nós soubéssemos – fórmulas secretas para “que as nossas almas mais tarde ou mais cedo se aconchegassem”.
Das quatro estações, guardamos para a mais fria aquela que seria o início de uma vida. Só Ana sabia dizer aquelas palavras que entram dentro de nós e que nos dão arrepios – não fosse ela poeta.
Meu Deus, quanto é difícil iniciar uma nova vida deixando para trás toda uma outra que foi construída palmo a palmo?
Dizia-me sempre “ sê racional e nunca penses com o coração, porque este é traiçoeiro”. Nunca gostei de racionalismo. Segui sempre o meu coração e a minha intuição. Nunca me enganaram. Construímos aos poucos o «nosso mundo» num paraíso voltado para o mar. Nas manhãs domingueiras, sentávamo-nos os dois na varanda da nossa casa, horas e horas, vendo a força do mar. Sentíamos no Vento aquilo que só o mar sabe transmitir. Do seu interior «vinham» vozes estranhas que nos diziam para vivermos o nosso dia como fosse o último. Era um segredo entre nós três. A magia da Lua Cheia encantava as nossas almas ao ponto de nos embalar para o infinito. Na elevação, a força do vento e do amor faziam com que soubéssemos que próximo do azul tudo é uma eternidade.
Nasceu numa noite com a essência do Quarto Crescente para que jamais fosse esquecida. Até os passarinhos louvaram com o seu chilrear o nascimento do nosso fruto. Os grilos juntaram-se em coro para dar as boas vindas a quem tinha chegado.
Para que as flores que rodeavam a nossa casa não se sentissem tristes demos-lhe o nome de uma delas. Jamais estas deixaram de fazer parte da vida de nós. As margaridas tinham outra vida quando viam a imagem celestial que as acariciava diáriamente. A Alma do Mundo aceitou nos mistérios da vida a nossa entrega. À medida que as luas passavam Margarida, transformava-se numa pessoa com uma enorme compaixão. Os olhos dos nossos olhos brilhavam para a vida.
Naquele dia as gaivotas estavam agitadas. O mar estava aborrecido. As ondas batiam com raiva nas rochas. As nuvens faziam no céu símbolos que pareciam um chamamento para os nossos olhos. Não compreendíamos o que as mensagens nos queriam transmitir. Quando menos esperávamos, do céu ouvimos o bater de dois «trovões». Neste momento, Ana, sentiu uma dor profunda no seu coração. Voltando-se para mim com as lágrimas correndo pela sua face e uns olhos que reflectiam amargura apenas teve força para me dizer “ querido, tiraram-nos algo. Sinto uma enorme dor dentro de mim” para cair de seguida completamente pálida.
A Alma do Mundo tinha-nos levado o fruto do nosso amor. Só neste momento descobrimos o que queriam dizer as vozes interiores quando nos diziam para “ vivermos o nosso dia como fosse o último”.
Numa manhã fria, enquanto o vento abanava os ciprestes que iriam rodear a morada da Margarida, o vento fluiu para nos encaminhar para o silêncio das paredes frias que nos iriam acompanhar para o resto da nossa vida tirando a razão de viver a dois seres que se amavam para que um dia fossem recordados por alguém que foi feito com tanto amor.

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O regador de Zinco


Por: António Centeio


Amália, solteira, mas boa rapariga, é uma funcionária exemplar na área de saúde. Mora
num prédio de três andares, daqueles sem “frente” portanto, apenas “esquerdo e direito”. A sua habitação situa-se no “primeiro”.
Pouco frequenta a sua casa, levando-a com que esteja sempre num mimo, talvez por causa das imensas horas que perde no emprego; ou seja: leva três quartos do dia no trabalho e outro em casa, que em abono da verdade, mais não serve senão para dormitório. Mesmo assim, faz questão de a ter sempre limpa e arrumadinha não vá alguma coisa acontecer e depois quem a traga de volta encontre o seu poiso todo desarrumado.
A experiência dos imensos anos que já leva a tratar dos outros ensinou-lhe que quando menos as pessoas esperam a vida lhes prega algumas surpresas. Para não acontecer com ela o que acontece com os outros, tudo pronto para qualquer imprevisto.
Tem uma costela de mulher do norte mesmo tendo nascido no Alto Alentejo, que se saliente, para que não haja confusões «quanto mais para cima, mais trabalhadores são, dos que para baixo nasceram» acrescenta em modos de rodapé mas destacando que «os vizinhos, em conformidade com a geografia, não deixam de ser boas pessoas, apenas tem o seu feitio». Isto, claro, numa de gozo como humor gostam os mais acima de gozar com os sulistas.
No Hall do piso que segue ao rés-do-chão, tinha Amália um pequeno vaso com uma flor tão bonita como a dona. Quando chegava a primeira coisa que fazia era encher de água o seu pequeno regador de zinco – daqueles feitos pelos antigos latoeiros, que segundo a mesma lhe «foi oferecido quando criança para regar o seu pequeno jardim que estava no fundo do seu quintal» cujo espaço ninguém podia mexer – para depois o despejar no seu «encanto».
O destino se encarregou de a trazer para outras bandas e aquilo que foi jardim hoje mais não passa do que um bocado de terra, onde o pai planta de tempos a tempos um batatal, que nos dias que correm faz um jeitão, para além de mensalmente, parte das sobras seguir viagem até à cidade.
Uma miniatura de regador que à vista larga mais parece feita de barro escuro por tão usado ter sido, mostrando na sua execução que está para dar e durar pela forma que foi feita a sua estrutura.
Ainda hoje quando deambula pela sua cidade alentejana, nos seus poucos dias de folga, gosta de passar pela ainda existente oficina, lembrando ao mestre que «a sua obra está um mimo continuando a regar a única espécie florida da região».
A flor, deixava um cheiro na escadaria do prédio que a vizinhança até julgava que alguém pela madrugada espalhava desinfectante para «matar as moscas vindas algures dos contentores que se situam na proximidade do prédio» mesmo sendo despejados todos os dias levam meses sem ser lavados e ao mesmo tempo «haver um cheiro impregnado no ar que mais parece urina». A dúvida é que o aroma era «bem cheiroso» para ao mesmo tempo algo «não bate certo». Nos de cima «costuma cheirar bem mas no primeiro....».
Uma dia destes, pela tardinha quando saía de casa para ir fazer compras ao centro comercial, mal abriu a porta, deu de caras com o lulu do vizinho do segundo de perna aberta em cima do vaso da amada flor, aliviando talvez, aquilo que ao canídeo devia incomodar, encontrando no objecto de forma triangular o melhor sitio para despejar o que deveria ter feito no exterior do edifício ou em último recurso na casa de quem seu dono é.
Estava, para Amália, encontrado o cerne da questão e os contrastes atmosféricos como dos desabafos de quem vive no dito. Como resolver a questão é que a coisa se complicava dado a falta de provas mesmo que tivesse apanhado o malfeitor em flagrante delito.
A demora pela resolução não se fez esperar. Pouco dias passados, seu vizinho de cima chamou-lhe a atenção que «na sua entrada paira um cheiro nauseabundo que mais parece um mictório». Nem foi tarde nem foi cedo.
A resposta à provocação e acusação estava encontrada. Amália ia a abrir a boca para dizer o que sentia como pela humilhação que tinha recebido quando viu descer o filho de quem a imputava de «maus cheiros» quando na verdade era o seu cão que fazia as necessidades no vaso mais vistoso do prédio. Para sua sorte, não houve outros ouvidos pelas redondezas evitando assim testemunhos de uma cena de má vizinhança.
- Olhe lá vizinho, deve estar enganado ou a fazer confusão com quem tem em casa!
Quem ouvia o ralhete ficou embasbacado pela saída de quem pensava tudo aceitar sem nada dizer para se defender.
- A menina (menina, subentenda-se, já que é uma quarentona) sabe o que está a dizer? Veja lá o que diz e a forma como afirma porque me está a dizer coisas muito graves?
Amália, que até nem é gaga, disparou em todas as frentes que mais parecia um caçador nos dias aziagos que de tão danado não matar caça dispara em todas as direcções.
- Pois fique sabendo que este cheiro que lhe entra pelas narinas, como aos outros vizinhos, mais não é do que o mijo que o seu cão aí despeja todos os dias! Se tem duvidas, pergunte ao seu filho se não é verdade porque já apanhei aqui os dois; o seu filho e o cão seguro pela coleira, esperando o primeiro que o segundo despejasse a bexiga.
- Mais lhe digo: até nem sei se o seu filho também faz a mesma coisa?
Olha de soslaio para o garoto e arregalando os seus grandes olhos, pergunta-lhe:
- O que a vizinha está a dizer é mesmo verdade?
Confirmada a acusação e despachado um valente tabefe na cara do petiz, dando a impressão que merecia o peso da mão que lhe assentou em cheio num dos lados da face, deixando-lhe vincados os cinco dedos, voltou as costas de quem o tinha envergonhado, partindo de rabo alçado pelas escadas a fora sem dar qualquer satisfação como pedido de desculpa.
Amália, que tem formação diferente do vizinho do segundo concluiu facilmente que no futuro a cordialidade e boas maneiras seria algo que deixava de existir. Contra sua vontade, retirou o que enfeitava o seu pequeno espaço exterior levando o objecto barroso para a marquise – o princípio de uma relação cheia de azedume.
Ainda bem que a do primeiro raramente vê o vizinho de cima e quando este vê a de baixo nem entra nem sai e se a fita no passeio muda logo para o outro dando a impressão que a primeira é que é culpada da situação. No café do rés-do-chão, da Joaquina, a noticia correu como um relâmpago. Propagou-se de tal forma que o vizinho de cima de tão envergonhado estar nem à rua vem, passando os dias à janela a ver quem passa ou, quem lhe morde na casaca. Como a noticia se espalhou é que intriga Amália mas coisa que pouco lhe importa.

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O patriarca da familia




Por: António Centeio




Eram um casal de agricultores da classe média na região em que estavam inseridos. Proprietários de alguns hectares de terra. Obtinham na produção da mesma, receitas para que fosse considerada uma “casa tradicional” e rica para a época.
As carroças e os animais que possuíam eram a sua vaidade. As pessoas paravam na rua para ouvir o tilintar dos guizos dos cavalos. Os seus condutores enterneciam-se pelo que conduziam. Até os cavalos sentiam vaidade, levantando com brio a sua cabeça, mostrando assim, o brilho dos seus olhos e a sua beleza, de tão bem tratados que eram.
O casal sentia a falta de qualquer coisa para que a felicidade estivesse completa. Das entranhas dela, nunca saiu nada para que pudesse dizer “ carne da sua carne”. A vida continuaria geração após geração – A vida era um vazio e na solidão das noites sentiam que sem filhos, nada sentido.
Amélia era uma criança doce e educada. Tudo nela era ternura. Nos seus seis anos já mostrava sinais que, quando fosse adulta, seria uma mulher elegante e esbelta. Desde que era «gente» que participava acompanhada de seus pais nos serões na casa dos agricultores.
Aquilo que se esperava aconteceu. Pediram a sua perfilhação com a condição que a “pequena, passasse a viver naquela casa” como ali o seu futuro continuasse.
Tornou-se numa linda mulher com um futuro risonho. Um dia num encontro casual encontrou quem viria a ser pais de seus filhos. Um homem de primor. Elegantes que era, os bons fatos faziam parte da sua vestimenta como o perfume na sua higiene diária. Além da perfeição era um sedutor no uso da voz. Cantava com tal paixão que, quem o ouvia, deixava rolar nas suas faces as lágrimas da nostalgia do tempo. A sua entrega era de sentimento e encanto.
Desta felicidade nasceram dois filhos a que deram os nomes de Margarida e Moisés. Viam neles a continuação de um amor desejado como lhes prometeram aquilo que só os pais sabem assegurar. Mesmo com as diabruras da infantilidade, tudo lhes era perdoado. Os padrinhos deste jovem casal sentiram nos seus braços o calor de Margarida.
O patriarca da casa já não teve o prazer de ver e sentir Moisés porque tinha chegado o momento da sua partida para pouco tempo seguir a companheira. A dor da perda e a falta de quem tanto tinham amado abalou os alicerces daquilo que parecia tão sólido. O futuro iria sofrer as maiores mutações para estes quatro seres, quando ainda recentemente tudo mais não era do que o sonho de uma longa vida.
Numa tarde de Verão, quando a alegria transbordava com as diabruras de Moisés, o vento quente e sufocante chamou pelo pai das crianças, levando-o pela estrada à borda do Tejo até ao local predestinado ao chamamento do espírito.
Moisés não era tão inocente como o julgavam mesmo tendo apenas cinco anos. Compreendeu no olhar de aflição da sua vizinha que algo de grave tinha acontecido. Sentiu nas profundezas do seu intimo que tinha acabado de perder aquilo que mais amava na vida, o seu querido pai. Margarida que já tinha quinze anos suportou melhor a perda do pai mas para Moisés foi o momento mais cruel da sua vida. Ainda hoje, passadas algumas dezenas de anos, sente a falta daquilo que perdeu.
O “mundo” desabou para estes três seres acabando o destino por separar aquilo que outrora tão unido estava. Cada um teve que seguir os seus caminhos, especialmente Margarida, que estava tão perto de um novo futuro. A maior surpresa estava reservada para Amélia que ficou, nos seus braços, com o cargo de criar e educar sozinha o seu mais pequeno rebento.
- Meus Deus, como a vida prega partidas tão cruéis?
Tudo que herdou, desapareceu como a água que corre por debaixo de uma ponte. A sua beleza transformou-se em amargura. Da sua elegância, que em tempos era o seu orgulho apenas lhe restava as marcas do sofrimento.
Mas a sua grandeza contínua na memória dos vivos pela força que teve para contornar as dificuldades e saber suportar aquilo que a vida lhe deu sem nunca o desejar.


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O miudo que comeu o bilhete do comboio


Por: António Centeio


Desde que o marido faleceu, todos os dias vai à cidade dos mortos, aquela que tem ruas como a dos vivos. Seu filho, um pequenote aí para os seus quinze anos, faz-lhe companhia para ao mesmo tempo servir de confessionário. De tanto lá ir, certa vez viu uns homens podando os ramos das árvores. Os troncos choravam pela perda dos seus rebentos. Afiançou o pequenote que por aquelas «bandas só se houve choros e gemidos».
O marido ancião que foi era o mais respeitado no meio dos ciganos. Daqui, talvez, a viúva ser «tida em consideração» como poucas ciganas o são. Não vive opulenta em luxos mas no «suficiente como manda a praxe da etnia» em que foi criada.
Nas noites de luar em que todos se juntavam sentados nos “mochos” para ver o cair das estrelas ou a «carroça da sorte a andar na estrada da lua» o filhote ouvia, de quem já faleceu, que seu pai foi, as mais esquisitas lendas sobre a cidade de Coimbra. Coisa que nunca ninguém soube explicar a apetência pela cidade em que se sente nas manhãs frescas o orvalho vindo do Mondego. A falta de algo muito seu, tornou-o uma criança de sorriso triste como triste é o sorriso dos pequenos ciganos.
Afirmam os ciganos mais novos, aqueles que já sabem ler, que as fábulas então contadas por «quem já não está no rol dos vivos» vêm dos «tempos em que as mouras encantadas pernoitavam perto de Santa Clara». Verdade ou mentira é assim que a memória do passado faz o futuro.
O filho agarra-se à longa saia da mãe sempre que esta vai ao cemitério, talvez para que não se perca naquele emaranhado de ruas e ruelas que abafam quem foi gente em vida e que faz arrepios aos vivos que por lá circulam às horas mais estranhas do dia – alguns, escolhem para passeata os dias mais quentes da segunda estação do ano; aqueles dias em que o barulho do silêncio até assusta.
Depois da mãe ter feito as rezas que os antepassados ensinaram quando se está pisando a terra que calca quem deveria estar por cima dela, perguntava sempre a mesma cantilena: “quando me levas a Coimbra para ver a cidade que o pai tanto falava?”.
Tanta vez que o “cântaro foi à fonte” que a velha cigana abriu os cordões à bolsa para fazer a vontade ao cachopo que teimava em dar-lhe cabo da cabeça. Como a palavra é uma escritura, no dia apalavrado, a primeira coisa que fizeram foi comprar o respectivo bilhete que lhes permitiu seguir viagem para os lados da serra da Lousã
O miúdo nunca se tinha visto numa coisa assim e muito menos, andar de comboio. Todo ele estava eufórico. O suficiente para volta-não-volta um ou outro passageiro fosse acotovelado pelo estreante em viagens de comboios.
A viagem decorreu dentro da normalidade, salvo para a velha cigana. Tudo lhe indicava que se aproximava da cidade. Assim, fez «mal em tirar o bilhete para a viagem» porquanto o revisor não iria aparecer.
Ainda meditava no dinheiro gasto, como na ausência de quem nunca deveria andar por aquelas bandas – o cobrador – quando a porta separadora se abriu fazendo ao mesmo tempo um enorme estrondo.
O revisor, fraco de figura mas forte de voz, desempenhava a sua missão, como assim se obrigava, pedindo a cada passageiro que lhe mostrasse o que pouco antes tinha comprado. Quando chegou junto da cigana, pediu-lhe os bilhetes. Informou que faltava «apresentar o da criança».
Ouviu-lhe como resposta: «mostra o bilhete ao senhor cobrador!». A criança olhou para quem de direito. Ao abrir a boca para responder à mãe, esta adiantou-se-lhe, pregando para o homem encarregado dos vistos a seguinte frase: «Ai.... Senhor cobrador que o corno do miúdo comeu corno do bilhete do comboio!»
Foi uma risota para o revisor como para quem estava por perto. Com esta desculpa esfarrapada, todos ficaram a saber – o cobrador ainda mais – que a dita não tinha comprado o bilhete como sabiam que a parábola mais não era que uma desculpa esfarrapada. A viagem acabou na próxima estação. A cigana, mesmo assim, livrou-se de comprar o bilhete, acrescido dos emolumentos devidos e demais chatices.

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O livro da Vida


Por: António Centeio


O livro da vida será sempre um livro fechado. Nunca sabemos o que lá está escrito. Se pudéssemos saber não deixaríamos a vida pregar-nos partidas.
Quando menos esperamos, vai daí, mais um turbilhão. Uns para cima outros para baixo. O pior de todos é aquele que leva as pessoas para baixo e depois não se conseguem levantar. Os outros, mais tarde ou mais cedo levantar-se-ão para continuar o caminho. Alguns são bem tortuosos outros íngremes. Também há pessoas que os procuram; outros fogem deles a sete pés.
Existem pessoas que só se sentem bem quando estão metidos em sarilhos. Somos como somos. Devemos compreender e tolerar as decisões de cada um. Razão tinha o poeta quando disse que deveríamos «projectar a nossa vida apenas por dias. O tempo se encarregará do resto».
Abílio foi até aos trinta anos um homem exemplar. Bom marido, bom pai e um óptimo trabalhador. Era servente de pedreiro. Profissão que exige um enorme esforço físico para além de ter como companhia, o frio, a chuva e o calor. Quando vinha às sextas-feiras, depois de ganha a semana, o seu percurso tinha que sofrer um interregno no caminho das Fazendas. Os amigos faziam o mesmo. Ficava-lhe mal não se associar. Conversa daqui conversa dali, os petiscos eram sempre regados de copitos de tinto.
Quando chegava a casa, a mulher já sabia o que a esperava. Rádio aos altos gritos e toca a dançar em pleno quintal até as tantas da manhã. O filho, um petiz, quisesse ou não, tinha que assistir à festa que para não variar acabava sempre numa valente cena de pancada para quem não merecia e muitos menos para quem olhava e ouvia a linguagem usada. Nada podia fazer, senão também sobrava para ele.
Há pessoas que gostam de levar pancada, como viver na lamúria, em vez de procurarem melhores caminhos ou novas vidas.
A vizinhança dizia muitas vezes que «certas mulheres, quanto mais lhe batem mais gostam dos maridos». A Abelina era uma destas. Uma vez foi parar ao hospital com um braço partido. Como não tinha juízo poucos dias depois levou uma tal sova que as aduelas foram dentro. Nunca reclamava do que lhe acontecia.
A sua satisfação era quando o seu Abílio a levava a passear na motorizada até à Nazaré. Sentavam-se tardes inteiras a olhar para o mar. O filho só deixou de ir quando já não cabia no meio dos dois e os homens da brigada de trânsito teimaram em começar a passar umas multazinhas.
Perdoava-lhe e esquecia-se de tudo. O Abílio quando abria a boca o hálito cheirava mais mal que uma panela de feijocas estorradas. Anos e anos durou este calvário. Meteu na cabeça que devia ter uma amante e bem o fez.
Mais valia valentes cargas de porrada que o seu homem ter outra substituta para os tempos livres. Não bastava o que tinha que aturar quando o marido parava nas Fazendas quanto mais agora seguir caminho para junto da matrona. Se levava porrada começou a levar mais, não pelas bebedeiras que apanhava mas porque precisava de dinheiro e não o tinha.
O filho só exigia roupas de marca. Não estava para sofrer mais. Um dia lembrou-se de dizer que a sua «vida não era uma vida como a das outras pessoas». Agarrou nas malas e aí vai ela para junto de mãe, ali, para os lados de Rio Maior. Nunca o Abílio pensou ter uma surpresa destas.
Pena foi que o filho comesse pela tabela, sendo apanhado no meio da tempestade quando menos esperava. O pequeno sentiu o desabar de tudo. Porque lhe faltava o seu mundo foi desabafar para junto de quem nunca deveria ter ido. Hoje, vive de expedientes com os amigos para dormir debaixo dos vãos de escada que encontra pela cidade.
A prisão já lhe fez companhia algumas vezes. Como nunca conseguiu abrir o livro da sua vida, em vez de vir melhor quando saiu da prisão ainda veio pior. Sabe mais daquilo que nunca deveria saber.
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O homem do campo


Por: António Centeio

Os setenta anos de vida que já conta, praticamente foram todos passados no meio da terra. Desde que se lembra das coisas, toda a sua vida foi passada no amanho da terra. Foi da terra que obteve os rendimentos para sustentar a sua casa como os seus dois filhos. Já viu passar muitas vezes o despir e vestir de milhares de árvores. Teve anos em que a chuva ou a geada teimavam em lhe tirar os meios de sobrevivência mas nunca se amedrontou. Pouco se importou consigo próprio mas sim com quem dele dependia. Aprendeu bem cedo que a mãe natureza tanto tira como dá; funciona de uma forma que por mais que queiramos perceber nunca a entendemos. Teve anos maus que tinha de socorrer-se das magras economias para poder comprar as sementes e alimentação para o rancho da casa. Sempre assumiu os compromissos como nunca esmoreceu; sempre se levantou antes do cantar dos galos e sempre se deitou antes das galinhas dormirem. Tinha que dormir as horas que o corpo pedia caso contrário nunca conseguiria ter a tempo o proveito da terra que tinha sido apanhado no dia anterior para levá-lo para o mercado.
Um mercado diário na cidade onde todos os conheciam e onde todos confiavam naquilo que ele fazia produzir na terra. Nunca a sua boca reclamava do mau tempo ou da fraca produção que às vezes a terra teimava em não dar. Tinha aprendido bem cedo, porque lhe ensinaram, que a vida de agricultor é uma vida de escravo; bem cedo lhe disseram que «temos que poupar hoje para termos amanhã». Ensino e conselhos que guardou na sua memória para o tempo lhe demonstrar que era a melhor coisa que fazia levando-o então a nunca ter sido apanhado desprevenido. Agora dificuldades sempre as teve como qualquer pessoa. O que é preciso é ter capacidade e sabedoria para ultrapassar as partidas da vida. O maior receio que sempre teve, era quando, a água do rio teimava em subir as margens e destruía todas as plantações. Eram dias de aflição porque nunca sabia por quantos dias se manteria a cheia.
Não podia apanhar o que tinha plantado como não podia ir vender aquilo que lhe dava receitas. Nunca desanimava. Sempre soube que a vida de agricultor está sujeita aos caprichos da natureza.
Também aprendeu bem cedo que os homens do campo vivem do que a terra dá e que a pior coisa que podem fazer é ter que pedir dinheiro emprestado para o amanho da terra.
Aspecto de homem rude, olhar amargo, sempre cabisbaixo, pele toda enrugada, onde algumas rugas demonstram que os anos já lhe pesam. Tem os antebraços queimados pelo Sol. As suas mãos são escuras, de um encardido feito pelo amanho da terra cujas unhas estão pretas por a terra teimar em não sair delas. Algumas partidas, por causa dos dedos andarem sempre a mexer na terra escura. Quando as outras teimam em crescer usa logo o canivete para as cortar. Dos seus pés, um odor horrível. Não por falta de higiene, mas porque tanto no Inverno como no Verão usa botins de borracha que protegem a base do corpo do frio e da lama; que lhe faz companhia quando cava a terra que ele alimenta, mas cuja terra lhe serve de sustento; durante a época quente esconde-lhe os pés do pó da terra e das espetadelas de caules secos e bicudos ou da lama que teima em agarrar-se aos pés quando rega a terra que reclama por água quando está ressequida.
O domingo é o único dia que apenas avista a sua terra de longe, que lhe sente o cheiro, que ouve o seu chamamento mas que não lhe responde. É neste dia que de manhã vai ao templo falar com quem acredita e lhe deixa ver o nascer do Sol ou que lhe diz que em cada dia que vê o Pôr-do-Sol é mais um curto passo que dá para a morte. De tarde vai à taberna da esquina jogar algumas partidas de dominó para ao mesmo tempo saber do que aconteceu na região como ouvir as notícias da televisão. Do que ouve e vê fica a saber que outros homens com a sua profissão pedem subsídios e ajudas para a replantação daquilo que a natureza teima em não dar ou tirar. São nestes momentos que compreende – pelo que ouve – que, quem pede ajuda, mais parece doutores e engenheiros. «Parecem tudo menos homens do campo» costuma dizer para quem o quer ouvir – não deixa de ter uma certa razão – «agora já não existem agricultores ou homens do campo, existem sim: empresários, produtores disto e daquilo, proprietários de plantações ou de estufas».
Quando regressa a casa já com alguns copitos a mais que o leva a ver as coisas de outra maneira, faz todo o percurso a falar sozinho para as pedras da calçada. «Que raio de agricultores são estes que só pensam em pedir dinheiro emprestado por causas das intempéries? Que raio de homens do campo são estes que mais parecem homens da cidade. O seu aspecto mais parece mangas-de-alpaca que outra coisa!
Os tempos realmente mudaram. Até os homens já não são os mesmos» para depois continuar a dizer que «Desde que me lembro de ser gente, dos meus sete hectares de horta me sustento e sustento os meus, dei dois cursos superiores aos meus filhos, comprei um tractorzito para o amanho da terra porque o raio do cavalo já não podia com um gato pelo rabo, por tão velho ser e estes doutores em vez de se preocuparem com o amanho da terra só pensam em pedir subsídios para isto e para aquilo». Rijo como um carvalho, já começa a ter dúvidas da sua sanidade mental. Não sabe se é ele que tem razão ou se os outros são espertos demais.

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Na esquina do ansião


Por: António Centeio


A estrada nacional, não fosse ser tão longa, quase acabava numa subida. Próximo do seu fim, tem um entroncamento à direita que nos leva a uma pequena ruela rodeada por ambos os lados de velhas casas que bem demonstram que o tempo parou nas redondezas como os seus moradores são pessoas simples e que em tempos viveram dos rendimentos dos produtos dos seus bocados de terra alimentando quem dependia do que plantava. Poucos, só lá dormiam porque tinham profissões que os levavam para outras redondezas. Quase todos, no presente, vivem do pouco que recebem das suas exíguas reformas e do que ainda conseguem produzir na terra que os viu nascer. Tudo junto não é suficiente mas ajuda um pouco mais quem quase nada tem.
Na esquina da ruela, a casa está abaixo do nível do piso da rua. Para lá entrar temos que descer por um pequeno terreno rebaixado, protegido por um baixo muro que suporta o peso da artéria para ao mesmo tempo servir de quintal. A diferença de um verdadeiro quintal é que fica voltado para a rua onde todas as pessoas podem ver quem nele leva os dias sentado numa pequena cadeira que parece ter tantos anos como anos tem quem se senta nela.
Uma velha casa construída no início do século, quase a despedir-se da disposição em que está, não por ser velha ou por ter falta de conservação, mas pelo peso da idade que tem e da terra que a mantém de pé estar a desfazer-se em pó por causa do Vento que nos longos Invernos teima em reduzi-la. Espera, quem nela vive, que não fique a casa em grãos de areia, antes que ele ao pó regresse.
Já perdeu a conta aos dias de tanto se sentar no velho assento. Apenas o assusta e incomoda os dias em que a chuva e a geada teimam em fazer-lhe companhia. Nestes dias recolhe-se por detrás da porta com os olhos voltados para o fiel companheiro. Porque o tronco do seu corpo pesa nos seus membros, puxa a raquítica mesa de pinho, carunchosa pelo passar dos anos, para junto da porta e em cima da sua borda se acomodar. Como companhia, a sua velha bengala que ruidosamente marca o compasso do tempo.
Quem dela faz pêndulo, nem sabe o espaço que medeia entre as batidas, mas certinhas como um relógio. Serve-lhe também para quando quer indicar o caminho a quem lhe pergunta o que procura. Está habituado a ver parar automóveis na sua frente, para quem vai dentro, sentando no banco do lado direito lhe perguntar «onde é a casa da senhora que todos procuram e a todos ajuda?». Coisa que o dono da velha casa já está habituado mas que responde com boa vontade.
Sempre de cabeça baixa, apoiada na parte superior da bengala, que mais parece a última curva da subida de tão fechada ser ou de mirrada começar a ficar pelo uso e caricias que leva de quem nela pousa, olha profundamente para a alma de quem lhe pergunta aquilo que não sabe. Segundos absorvidos, como o tempo de uma eternidade, para de seguida dizer: «é aquela casa que está encostada à oliveira». Depois vê seguir quem já sabe o caminho para seguidamente, olhar tempos infinitos para o velho carvalho que na sua frente está – o seu fiel companheiro. Um carvalho carcomido pela doença e pela idade mas mais velho de quem está sentado. Os dois conhecem-se há muitas dezenas de anos
- mesmo que a velha árvore tenha assistido ao nascimento de quem para ela olha. Ambos, não se recordam, nem sabem, quem nasceu primeiro. Sempre se conhecerem e sempre se falaram. Levam horas a olhar um para o outro para se lembrarem das recordações da vida passada e da felicidade que esta lhes deu. Partilham o barulho do silêncio para saberem que as décadas passadas encaminha-os para as «velhas árvores que chegam ao fim com o cair das folhas nos finais do nono mês».
São nestes momentos de vazio que tristemente pensa nas pessoas que lhe pedem a luz do caminho que procuram para dizer a si próprio «são problemas que as pessoas tem mas que não sabem resolver como não encontram a solução que os leve a resolver aquilo que os apoquenta». Talvez, porque não olham para trás para depois saberem como seguir em frente. A vida é dura para alguns e penosa para outros. Desgalha-se como o Vento. A experiência da vida e o passar dos anos ensinaram-lhe que as pessoas procuram ajuda de quem sabe viver à custa dos outros ou aproveita-se das debilidades que a vida teima em dar a quem não as espera ou não as quer. No fundo, também sabe, que todos são iguais, como sabe que o que dá esperança às pessoas é, a sua enorme fé. Subam-se estradas ou desçam-se vales «quem busca que encontre o que procura» mesmo que passe entre um carvalho e um ancião que já sabe o que lhe vão perguntar, quando ele gostaria era que: lhe fizessem um pouco de companhia e dele ouvissem o que o tempo ensinou: «Os moinhos já não existem mas o Vento continua a ser o mesmo».
Disse-me, porque leu num livro chamado «Judeu Errante» que todos nós «conhecemos o nosso passado mas não o podemos modificar em nada, mas o futuro espera-nos na esquina». Também me disse, que as pessoas muitas vezes vivem dos sonhos que elas próprias criam mas que depois não são capazes de os alimentar porque são muitos os artifícios que os deuses usam para falar aos homens; para lhes comunicar os seus desígnios – só que estes muitas vezes não os sabem escutar.
Despediu-se de mim, ou despedi-me eu dele, já não me lembro, para me dizer que espera ansiosamente pela sombra escura, de maneira que o «leve de uma vez por todas» porque: depois de lhe perguntarem pelo caminho que procuram a «solidão apoquenta-o e as lembranças do que deveria ter feito mas que não fez, tiram-lhe o sono».

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Na terra da pisa da lã


Por: António Centeio


Algumas pessoas dizem que o que sucedeu «foi há mais de cem anos» outras dizem «tudo para mais de cinquenta». Uma coisa sabe-se: aconteceu.
Os tempos eram difíceis como difícil era arranjar trabalho. Era na agricultura que estava a sobrevivência dos mais necessitados e desfavorecidos. Talvez, como nos dias que correm, na altura, os pequenos proprietários que possuíam pequenas áreas de terrenos cultiváveis eram aqueles que precisavam sempre de mão-de-obra barata. Davam trabalho como podiam fazer uma maior selectividade a quem pagar menos mas que trabalhavam mais. Aqueles que não encontravam trabalho no campo tinham que viver da caridade do alheio como da ajuda do Estado, que lhes dava alimentação nas então chamadas «casa de sopa».
Na época do frio e da chuva, os terrenos agrícolas dispensavam a presença do homem, quer porque a poda já estava feita quer por a chuva ter enlameado a terra ou ainda porque as subidas da água do rio Tejo tinha ensopado tudo que era campo.
Nestas alturas, só conseguia ter trabalho os melhores trabalhadores. Eram os enxertadores de videiras os mais procurados para se deslocarem para várias zonas do país, onde a plantação da videira era o sustento de quem as possuía. Zonas que não eram banhadas pelas cheias do Tejo.
Vinham de carroça para as bandas da lezíria ribatejana procurar quem quisesse ir «podar videiras» que começavam a chorar por não terem quem as tratasse. Durante semanas inteiras, estes homens especialistas numa arte difícil separavam-se da mulher e dos filhos em troca de mais alguns rendimentos. Mesmo que poucos fossem, ajudaria com certeza quem deles dependia.
Partiam em grupo nas suas bicicletas, carregadas de mantimentos e alguma roupa. Levavam chouriços, toucinho e carne salgada de porco como ainda grossas postas de bacalhau para que em quanto, estivessem na «maltesaria» não tivessem que gastar o pouco que iam ganhar.
Sujeitavam-se a passar o pior como a alimentarem-se mal. Sentiam na pele o peso da chuva e do frio. De mãos gretadas pelo frio e vento seco, que lhes entrava pelas entranhas, fazendo com que: quanto estavam no meio das videiras, muitas vezes as lágrimas lhes corresse pela cara, de tanto frio suportarem. As suas orelhas ficavam cheias de enormes gretas já que o gelo quase as amputava. Sofriam em silêncio e mordiam os lábios revoltados contra a vida e a miséria que lhes fazia companhia.
Valia-lhes a garrafinha com aguardente que tinham sempre dentro do bolso. Era esta receita que lhes dava força e os aquecia para suportarem aquilo que o tempo teimava em dar a quem menos merecia.
A fama de tais enxertadores era conhecida. Todos os anos vinham de longe contratá-los. Eram os melhores dos melhores. Mas a abundância de uns ou a inveja de outros levam a que aconteçam coisas que mais não são do que «coisas do arco-da-velha». Pobre do homem quando é humilhado por um seu igual e mal da sociedade quando espezinha quem mais precisa.
Foi numa destas alturas que apareceu um «bem-falante» procurando vinte enxertadores para irem podar a vinha de «um importante senhor» ali para os lados de Arruda dos Vinhos. Promessas de uma boa jorna e de um melhor futuro, excepto o meio de transporte. Depois de tudo combinado e prometido verbalmente, como indicado o ponto de encontro, partiram de madrugada num determinado dia. De tanto pedalarem, chegaram ao local combinado por volta do pôr-do-sol. Bem longe do local que lhes iria servir de alojamento por alguns dias, alguém os esperava para lhes indicar o «barracão».
Seguiram o caminho indicado, depois de realmente verem que o «importante senhor» era mesmo «dono de terra a perder de vista». Quando chegaram junto da velha adega, viram que ninguém os esperava. Com o portão encostado, entraram dentro da mesma. Apenas havia dois velhos lagares cheios de palha para gado, mal cheirosa e cheia de bolor de há tanto tempo lá estar; ao fundo, duas enormes pipas de vinho, assentes em dois velhos barrotes que mais pareciam aduelas pelo peso que suportavam e do passar dos anos.
Esperaram quatro dias por ordens que nunca vieram, como nunca ninguém se aproximou deles para dar quaisquer tipo de instruções. O mais astuto e a quem mais respeitavam, disse-lhes que «isto cheira a esturro! Fomos enganados». Esperaram mais outros tantos dias.
Só o Vento frio e seco assoprava por cima das telhas de canudo que os protegia para não sentirem nos seus velhos cobertores a gélida temperatura que durante as noites teimava entrar. O que tinham levado estava a chegar ao fim. Decidiram de comum acordo, regressar ao ponto de partida. Sentiram-se usados e abusados. Não bastava serem uns desgraçados quanto mais agora serem gozados?
Pasmaram-se pelo regresso inesperado, os que não foram, como todos aqueles que tinham ouvido falar, de quem foi na busca de melhores condições. Não bastava o que tinha acontecido quanto mais agora serem «gozados pelos iguais de pobreza». A humilhação maior foi: quando começaram a ouvir vozes que diziam: «Olha, outro que foi para a terra da pisa da lã!». Nunca mais foram os mesmos como nunca mais acreditaram em quem tudo lhes oferecia. Aprenderam que muitas vezes «vale mais pescar o pouco peixe no rio que passa na frente da nossa casa que ir para junto do rio que não se conhece».

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domingo, 1 de junho de 2008

Memórias do Tempo




Por: António Centeio

Na pequena localidade situada entre a serra e o rio, onde nasceu Anastácio, predomina a paisagem viçosa, serena e repousante com uma luxuriante vegetação que comporta uma flora diversificada. Local privilegiado que deixa desfrutar na imensidão do horizonte uma beleza estonteante.
O seu Solar – conhecido por “Solar do Gião” situa-se na localidade de “Carril” terra centrada no coração do Ribatejo em plena região vinícola. Tem mais ou menos sete hectares que aglomera: casa de habitação, jardins, quintais, pátios e uma pequena área rural onde existe uma mina de água, uma fonte, um tanque de rega e constituída por outra de prados e por uma mata de sobreiros, alguns de grande porte. Existem ainda magnólias.
Em volta do edifício habitacional, propriamente dito, longos canteiros de hortenses que embelezam a habitação, fazendo com que nas manhãs quentes, quando se abre a janela, se inale o aroma que das roxas flores vêm. Bem de frente do quarto de Anastácio um enorme e velho Carvalho.
Plantado que foi pelos antepassados, os seus ramos alongam-se como mão de gigante. Nas noites invernosas em que o Vento teima mostrar que é a força do mundo assusta tudo e todos. Nos dias em que o Sol volta ao baixio, os raios rompem os espaços vazios das folhas. De longe, pequenas fitas imaginárias de neve atravessam os caminhos livres até se reflectirem no interior do quarto de Anastácio.
São estes momentos em que a alegria penetra na alma de quem dentro dele vive ou: quando criança levava-o a pensar que um dia quando fosse crescido seria como os homens que conhecia ou ouvia falar. O destino barrou-lhe o caminho, ou os sonhos.
Numa tarde de Verão partiu na sua moto em direcção ao Sudoeste alentejano para assistir ao seu primeiro “Concerto de música”. Até os raios da motoreta brilhavam como as silhuetas mágicas do Sol quando perfurava o velho carvalho. Sentado, apreciava a beleza da planície alentejana.
No silêncio da própria calma, tudo parecia uma miragem. De vez em quando lá via algumas vacas alternando com cavalos e cabritos. Deslumbramentos que faziam com que nada lhe ficasse indiferente.
Anastácio sempre se deixou seduzir pelos efeitos das paisagens. Nunca se esqueceu do dia em que o pai o levou a um dos «largos mais bonitos do mundo» segundo ele. Na Praça do Geraldo, perto do pôr-do-sol, viu os raios de luz poisarem fugazmente no chão.
A viagem decorreu com alguma normalidade e paragens. De tempos a tempos anotava mentalmente os quilómetros que faltavam. Já era madrugada quando viu um vulto no meio da estrada, cambaleando ora para um lado ora para o outro. Um vulto maldito que fez com que tivesse um grave acidente. Não se sabe se era uma pessoa se uma coisa de “outro mundo”.
Resta a Anastácio passar o resto da sua vida sentado numa cadeira de rodas – tal foi o acidente – olhando para o velho carvalho que o amedrontava quando criança, como toda a família pelo barulho que fazia quando o Vento o tentava derrubar. Agora os galhos do arbusto de tanto assustar, fazem com que as noites pareçam fantasmas, que não existem, mas que passaram a haver. Apenas os raios solares se atrevem a deslumbrar quem na sua meninice passou momentos únicos e inesquecíveis.
A velha árvore para mais amargurar quem não a viu nascer e muito menos ser plantada, teima em mandar para o cimo da terra as suas fortes raízes, rachando a terra que já nem peso têm.
Resta-lhe a memória, quando da infância, a parte do tronco madeireiro transformar-se em arco para formar a entrada do jardim numa cerca, ou a lembrança de: um mar salgado e alegre que se agitava contra os barcos, a que os nazarenos chamavam de “galeões” quando voltavam para terra carregados, cheios de peixe.
No futuro, os velhos ramos deixarão de se vergar sobre o peso das gotas da chuva, quando Anastácio meditava na grandeza da natureza.
A vida já lhe vai longe, ou tão perto, que vê permanentemente a linha que finaliza toda a corrida que fez – outra continuará ou terminará. Enquanto não chega ao fim, de tudo o que fez e teve, a vida continua a sorrir-lhe, talvez de uma forma ingrata e inesperada.
Aprendeu com as vicissitudes do infortúnio: - se necessário, há que olhar para as feridas aparentemente curadas e voltar a abri-las quando a dor já nem força tem para fazer doer.


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Manuelito teve a infelicidade de falecer num país distante


Por: António Centeio


A diversidade da vida nem sempre é justa para os seres humanos já que recusa algumas vezes amparar os mais desfavorecidos. Não bastasse, ainda costuma fechar as portas quando deveriam estar abertas para quem a vida nem sempre sorri ou não avisa com antecedência das partidas que vai pregar.
Foi assim que aconteceu com Manuelito. Quando criança guardava tudo e mais alguma coisa para que quando fosse grande se chamasse “guardador de sonhos”. Dizia a quem o quisesse ouvir de que não morreria enquanto vivessem os seus sonhos. Talvez aqui a razão da sua inquietação e ser fugídio como a areia do Vento. Nunca parava quieto e queria ir sempre mais longe. Até o professor o admirava. Não por ser um aluno brilhante mas pela simples razão de saber falar o difícil de forma fácil.
Aprendeu bem cedo que a vida retoma o seu curso mas que, se soubermos, podemos alterá-lo. Se para o bem ou mal eis a dúvida de quem o tenta fazer – muitas vezes deveríamos «deixar a água seguir o seu percurso».
Era quase um homem quando descobriu que «todas as estradas que encontramos na nossa vida são caminhos. Nenhum é o nosso destino». Foi este destino que lhe deu a infelicidade de falecer num país distante. O destino é meada de muitos nós. Razão tinha o poeta «Quando chegamos à encruzilhada o que fizermos irá afectar toda a nossa vida».
Partiu bem cedo para a ilha longínqua em busca de melhores condições porque não as encontrava nas suas bandas. Queria dar aos filhos aquilo que nunca teve. Pouco tempo teve para amealhar um melhor sustento e conforto de quem por cá deixou.
Ao atravessar uma avenida, enquanto metia a carteira no bolso de traz, depois de uma olhadela na fotografia do filho mais novo, num ápice descuidado, um carro ceifou-lhe a vida. Para que o seu corpo pudesse regressar à terra que o viu nascer, alguns milhares de euros foram precisos, caso contrário seria cremado para lá do “sol de Espanha”.
Para quem fez da vida um luta permanente e que para ultrapassar os obstáculos era capaz de os contornar, nunca conseguiu prever – enquanto vivo, as mudanças e as partidas que a vida prega a quem menos espera.
Foi num dia frio que o corpo de Manuelito regressou para ser sepultado na cidade.
No mesmo dia milhares de pessoas souberam que a transladação do corpo daquele infeliz só foi possível regressar, porque a dor profunda e a teimosia dos seus familiares, com a contribuição anónima de um povo sensível que está sempre pronto a apoiar quem mais precisa nos momentos de infelicidade, conseguiram angariar meios e obter a força necessária para inverter aquilo que Manuelito nunca imaginou um dia poder acontecer.
A frivolidade burocrática e o abandono que os mais desprotegidos encontram por parte de quem a gere acaba por nos envolver a todos e a revoltar-nos contra o sistema que mais não é do que: frio, sem qualquer sentimento, para lacerar a nossa sensibilidade ao ponto de em determinados momentos se transformar em raiva porque quem dirige não sente a ferida bem aberta de quem sofre, desculpando-se na distância ou normas, das quais, todos sabemos que: para uns funciona de uma maneira muito especial, para outros, de maneira diferente.
Por mais que nos queiram apregoar o bem-estar da sociedade, nem sempre as coisas são como parecem, porque na hora da verdade, sabemos destrinçar a verdade da mentira.

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Gervásio, um excursionista exemplar


Por: António Centeio


Gervásio quando entra na camioneta da carreira sabe que a viagem vai ser de galhofa. O percurso leva-o ao alto da vida para poder ver, mais os outros, que tudo cá em baixo é mais pequeno.
Sempre com um sorriso na cara, mesmo que recentemente tenha perdido aquilo que mais adorava na vida, o seu filho. Diz a quem o acompanha que as tristezas não nos devem ficar para sempre, porque caminhando em direcção àquilo em que acreditamos, estamos a deixar para traz etapas que a vida nos obrigou a terminar, mesmo que, algumas corroam as nossas profundezas e possamos sentir que de dentro de nós, tiraram a frio, algo que nos era muito querido.
A vida é cheia de contornos, alguns bem difíceis. A nossa grandeza e superar aquilo que nos apoquenta para que a vida continue o seu ritmo e, que quem cá fique, encare a tragédia como um beneficio, ou: um reforço para que tudo ande para a frente.
Tem todo o tempo de mundo livre já que deixou de dar satisfações a quem, quase levou a vida, maior do que aquela que o filho teve, a exigir-lhe tudo e mais alguma coisa.
As coisas mudaram de tal forma que Gervásio todas as semanas vai passear na camioneta da carreira que faz excursões, cujo responsável é um vizinho seu, mas por pouco tempo, porque em breve vai viver ali para os lados da serra. Construiu uma pequena vivenda voltada para o enorme montão de pedras, protegidas de verdura agreste e de algumas árvores selvagens. Quando abrir as janelas o ar puro vindo da serra, vai-lhe entrar pelos pulmões adentro.
Enquanto não deixa a casa em que viveu muitos anos, como aqui criou seus filhos, que se fizerem uns homens graças aos bons princípios e educação que receberam, vai dando conselhos a quem olha pelos seus bens enquanto ausente, o vizinho Gervásio, como gosta de dizer.
Dos programas que a sua agência organiza mensalmente para as semanas do mês seguinte, escolhe as melhores e mais económicas para que o seu amigo e vizinho, por pouco tempo, possa esquecer o passado e viva no presente. Assim, o caminhante não precisa de se deslocar ao centro da cidade, onde se situa a representação, para ver os cartazes com lindas paisagens, de encantar até um cego.
Talvez como agradecimento por quem olha pelo que é seu, sem nada pedir em troca, traz-lhe os folhetos para que faça quatro escolhas. Depois de escolhido e aconselhado por quem sabe da coisa, limita-se a indicar e a comprometer-se quando ao devido, o respectivo pagamento, para que tudo fique assente e guardado o lugar do primeiro banco da camioneta, de preferência, o que fica por detrás do condutor, porque assim leva a viagem na galhofa e pode ver tudo como o motorista.
Quando lhe dá na vinheta, levanta-se para se colocar no corredor, puxando pelas castanholas, fazendo com que estalem para acompanhar o som com coisas flamengas – memórias que herdou de seu falecido pai, que em tempos, andou na guerra civil de Espanha.
Os acompanhantes, escutam e sorriem para depois num desvario comecem todos a mandriar contando anedotas e outras tonteiras que o motorista ás vezes até chora de tanto se rir.
A meio da viagem, em hora já determinada, com a devida antecedência, depois de proposto o local, a camioneta deixa de caminhar, a fim de dar descanso ao motor, permitindo assim aos viajantes que puxem das suas cestas e outros apêndices, para assente em longas toalhas, ou cobertores, ser espalhado tudo aquilo que de casa veio para confortar os estômagos vazios que vêm doridos de tanto riso. Os acepipes são expostos para que todos se sirvam e saboreiem o que cada um fez. É o melhor momento do convívio, porque ninguém repara no que trouxeram mas comem o que é de todos.
No final do repasto, é hora de exibição. Todos têm que mostrar os seus dons e habilidades escondidas. Aos que não tem jeito, são-lhe pregadas partidas. De desfeitas, ninguém como Gervásio para as fazer. É um mestre de boa disposição e quando não a têm, engendra-as, não só para ele como para os outros.
Inventa coisas do arco-da-velha, algumas vindas do lado de lá de Espanha, que todos acreditam, tal é a expressão e os sestros utilizados. O que interessa é reinar a boa disposição e a galhofada, mas de maneira que a vida de cada um não se misture com a diversão.
Reiniciada a viagem e feito o percurso como visitados os pontos que foram a causa da jornada, o regresso previsto é feito dentro do combinado.
Foi no regresso, que viram o Sol a ficar cinzento, ali para os lados da serra de Mira. Primeiro começaram o ver uma coisa que parecia um furacão para pouco depois se transformar em nuvens escuras.
Sem saberem como, já o Céu tinha mudado de cor, ficando com um escuro que amedrontava quem viajava como que tudo parecesse o fim do mundo. O cheiro que entrava pelas aberturas das janelas cheirava a fumo. Um fumo que os incomodava e que lhes fez perder o pio.
A serrania ardia como uma desalmada porque lhe faltava um estreito ou um atalho. No sentido contrário, subiam carros de bombeiros com uivos mais altos que os lobos. Quando se cruzaram, todos se arrepiaram por causa do som das sirenes das viaturas vermelhas, que pareciam teimar em não querer subir a serra, quando do lado de lá, pessoas mascarradas de carvão, gritavam por socorro e indicavam com as pás qual o caminho a seguir.
Chegados à cidade, todos perguntavam o que tinha acontecido ou se tinham visto alguma coisa, porque a cidade estava em alvoroço. «Uma desgraça como nunca vista, senhores! A serra arde e os animais fogem como uns desalmados pelas cercanias da serra e pelos valados. Doidos varridos pareciam os bichos. De tal forma que um de tão cego vir da floresta, focinhou na frente da nossa camioneta para depois morrer todo esfarrapado, tal era a sua cegueira».

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Azares da vida



Por: António Centeio

Os azares batiam-lhe à porta como as folhas a cair das árvores no Outono. Não sabia de onde vinha tanta desgraça como se alguma praga lhe tivesse sido rogada. Quando acordou nem queria acreditar no que a esperava. «Oh, diabo, que aconteceu por estas bandas?».
Na coelheira estavam tesos a meia dúzia de coelhos, que com bagas esquisitas – vendidas na mercearia do Felisberto – eram alimentados.
«Isto foi alguma desgraça que aconteceu ou um mal que veio com a noite, pois os bichos estavam ainda ontem despertos como um toutiço para agora estarem de pernil esticado».
Chamou a vizinha Benvinda para que assistisse com seus próprios olhos ao que esperava dentro de dias, matar um deles, quando sua filha viesse passar o fim de semana com a mãe, depois de estar quase á seis meses no Porto, onde vivia, sem lhe dar noticias.
«Logo esta desgraça agora, vizinha, quando a minha menina vem passar uns dias comigo», respondendo-lhe a quem com ela vivia a paredes-meias «não se preocupe que lhe dispenso alguns dos meus».
Pirilampos vindos do lado da vala acendendo pequenas luzes como quem anda a apanhar gambuzinhos, só podia ser quem tanta desgraça trouxe a quem tratava dos bichos com tanto carinho.
«Raios parta esta vida que às vezes nem vale apena viver! Tanto sacrifico para numa noite tudo se perder. Até parece que me caiu a desventura em casa quando não fiz mal a ninguém?»
Por mais que consolasse, sua vizinha falava para as paredes por tão pouca atenção lhe dar quem a tinha chamado.
«Então não se lembra do que me aconteceu a mim, antes do S. João? Os malfadados dos bichos não me entraram pela rede mosqueteira e não me morderam os bichos que estavam tão cheios? Oh já não se lembra? Deve ter sido a mesma coisa que aconteceu aos seus. De inveja sua pensei ser o mal, porquanto os seus respingavam crescer enquanto os meus definiam. Até pensei que alguma reza amaldiçoada me tivesse rogado, mas vejo que não, porque a desgraça aqui tombou»
Valia-lhe o galináceo que tinha nos fundos, bastando que apanhasse uma ou dois, para quando a nortenha chegasse um bom “frango no forno” lhe fosse dado. No meio do bichesa, de tudo um pouco havia.
Bastava que as maiores de crista vermelha ou de pescoço pelado, a mão lhe deitasse, amanhando-a pela manhãzinha para que a filha soubesse que a carne castanha é melhor do que a branca.
«É das farinhas filha e dos restos das couves que lhes corto aos bocadinhos para as juntar com as cascas da melancia! Não as alimentasse assim e ias ver como a carne das galinhas não prestava para nada? Julgas que aquela mixórdia que o Felisberto vende presta para alguma coisa? O que ele vende mais não são que restos de sêmeas, da mais ordinária que há. A sua ganância pelo dinheiro leva-o a vender gato por lebre.
Ainda a semana passada a vizinha padeira o viu a meter uma coisa esquisita no azeite que nos vende para trocar o grau do azeite e enganar os fiscais».
Mas comprava-lhe o que dizia fazer mal aos bichos. Nem sempre tinha para alimentar a criação com restos de comida, porque desde que o marido morreu e a filha partiu lá para cima, deixou de fazer paneladas de couves como a horta deixou de produzir «por via da falta dos braços do homem».
Não lhe bastasse a maldita das cruzes, que de tempos a tempos a deixava de rastos, cujas dores eram tantas que até pareciam chuva de estrelas cadentes a cair-lhe em cima, quanto mais agora o mal do coelhos, que lhe tinha dado um trabalho de inferno a criar. Estava à beira da sexta feira, véspera do dia em que a filha chegava, para depois de almoçar, ter pegado no avental, enfiando-o pelo pescoço abaixo e metido no bolso a faca, segurando de seguida o alguidar para apanhar as duas melhores galinhas, que lhe vinham fazendo a vida num inferno de tanto saltarem para cima do muro da vizinha. Sem saber como, desciam como pássaros fossem para depenicarem o couval da Benvinda, que a levava a chamar nomes esquisitos aos bichos, ou à sua dona, que em abono da verdade, muitas vezes fazia ter ouvidos de mouca para não responder a quem lhe chamava de desleixada, continuando assim a boa vizinhança.
Caminhava para o galinheiro, quando entorpeçou no raio da pedra que servia, com outras, de calçada ao seu quintal. O alguidar fez-se num fanico e os cacos voaram por tudo quanto era sítio. Valeu-lhe a faca não estar com o diabo, senão tinha-lhe furado o ventre.
Em fanico deveria tornar-se quem lhe rogava pragas que fizeram com que nem acreditasse no que estava vendo em frente com os seus olhos de pitosga. As aves tinham esticado o pernil como uma enxurrada de enxofre ali caísse.
Ainda não se tinha recomposto daquilo em que não acreditava para ouvir os gritos de catástrofe, vindo do lado de lá do muro. O mal tinha-se espalhado na criação da Benvinda e não só.
Espiolhado bem as causas e informadas pela vizinhança de ter sucedido o mesmo sintoma a quem criava bicharada, só havia uma conclusão: o mal estava no fornecido pelo merceeiro.
Descampou a rua em peso na loja do dito, que prometeu fornecer de galináceos a quem ficou sem eles como mudar de marca das sêmeas que algum garoto doidão em acto de malvadez, envenenou com substância desconhecida, levando assim que nenhuma ave da ruela escapasse em epidemia que por ali desaguou em dia de bruxaria.
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Estranhos caminhos que a vida nos dá











Por: António Centeio





Nos seus olhos azuis podia-se ver aquilo que era. Além de bonita, também era inteligente. Duas coisas não muito comum em determinadas pessoas. Não era de ninguém mas nos seus olhos lia-se a eternidade de sempre. A solidão e a angústia foram a certeza dos seus encantos.
Apenas lutava para ter a certeza da sua existência. Dizia muitas vezes “não és a minha outra parte”. Só por isto, ensinou-me que a coisa mais importante da vida é “quando encontramos aquilo que procuramos sem renunciarmos todas as outras”.
Lembrar-me-ei dela durante toda a minha vida. Ela lembrar-se-á de mim. Assim como nos lembraremos do entardecer no vidro da janela, o cair da chuva e das coisas que teremos sempre mas que não podemos possuí-las. “ Esquece-me”. Respondia-lhe - nunca!
Nunca a esquecerei porque filosofávamos muito e porque «as coisas nem sempre são como queremos».
Isa, de seu nome, tinha como companheiro OTIS. Este apenas gostava de mim e via na minha pessoa aquela diversidade que nem sempre aparece no carisma dos seres humanos fazendo com que os mesmos vivam numa solidão eterna, não pensando nos dias de amanhã. Mas a intuição ensina-nos a conhecer a linguagem secreta que nos é útil nos momentos difíceis da nossa vida.
Nas “águas furtadas” do terceiro andar, a Lua Cheia tinha outro encanto fazendo com que a vida fosse generosa para nós e sempre pronta a dar-nos mais.
Estes momentos de experimentar o amor intenso devora quem ama e a gente não precisa de subir a uma montanha para saber se ela é alta.
Seus olhos derramaram lágrimas para magoar o coração de alguém. Dela, aprendi que a paixão não é como o amor. Dizia, que nos livros se aprende que a primeira apenas dura seis meses enquanto a segunda é eterna. Mas o amor causa a dor da separação para que a semente possa nascer de novo.
Hoje, as lágrimas de seus olhos ofuscam a paisagem desoladora de um rio em tempos tão amado e hoje recordado na memória de quem o viu.
A sua água entrou nas entranhas de quem por tantas vezes passou nela porque quando se viaja em direcção a um objectivo é muito importante prestar atenção ao caminho. O caminho é que sempre nos ensina a melhor maneira de chegar e enriquece-nos enquanto o estamos a cruzar.
Tinha a grandeza e a fama de ter uma mãos maravilhosas para que os seus pacientes não a ignorassem, mas a independência que queria nutria por ela a falta de uma liberdade nunca retirada. Esta capacidade de manter a sua personalidade foi a raiz profunda para que o homem nunca pare de sonhar. O sonho é o alimento da alma como a comida é o alimento do corpo. Muitas vezes, na nossa existência vemos os nossos desejos “frustrados” mas é preciso continuar a sonhar, senão a nossa alma morre.
Resta-me a esperança que OTIS se lembrará sempre de mim e que encontre na sua sabedoria e esperteza o mistério em como nos havemos de encontrar no brilho das estrelas e no encanto da lua. Lua esta que sabia reflectir na pequena janela do telhado a beleza do amor. Hoje resta-nos o silêncio para a meditação da solidão.
Timor era a sua meta para me deixar, mas nunca a atingiu porque afinal o sofrimento bem perto estava de sua casa e não havia necessidade de ir para Nascente.
Estranhos caminhos estes que a peregrinação nos dá. Tudo ficou distante no dia em que a voz nos atraiçoou e que as lágrimas foram apenas o elo de ligação para uma amizade que continua suspensa por uma questão de feitio.
Descobri que posso nascer quantas vezes quiser até os meus braços serem suficientemente grandes para abraçar a terra por onde andei e um dia voltarei. Afinal todos os caminhos são mágicos se nos levarem aos nossos sonhos.

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