terça-feira, 10 de junho de 2008

O regador de Zinco


Por: António Centeio


Amália, solteira, mas boa rapariga, é uma funcionária exemplar na área de saúde. Mora
num prédio de três andares, daqueles sem “frente” portanto, apenas “esquerdo e direito”. A sua habitação situa-se no “primeiro”.
Pouco frequenta a sua casa, levando-a com que esteja sempre num mimo, talvez por causa das imensas horas que perde no emprego; ou seja: leva três quartos do dia no trabalho e outro em casa, que em abono da verdade, mais não serve senão para dormitório. Mesmo assim, faz questão de a ter sempre limpa e arrumadinha não vá alguma coisa acontecer e depois quem a traga de volta encontre o seu poiso todo desarrumado.
A experiência dos imensos anos que já leva a tratar dos outros ensinou-lhe que quando menos as pessoas esperam a vida lhes prega algumas surpresas. Para não acontecer com ela o que acontece com os outros, tudo pronto para qualquer imprevisto.
Tem uma costela de mulher do norte mesmo tendo nascido no Alto Alentejo, que se saliente, para que não haja confusões «quanto mais para cima, mais trabalhadores são, dos que para baixo nasceram» acrescenta em modos de rodapé mas destacando que «os vizinhos, em conformidade com a geografia, não deixam de ser boas pessoas, apenas tem o seu feitio». Isto, claro, numa de gozo como humor gostam os mais acima de gozar com os sulistas.
No Hall do piso que segue ao rés-do-chão, tinha Amália um pequeno vaso com uma flor tão bonita como a dona. Quando chegava a primeira coisa que fazia era encher de água o seu pequeno regador de zinco – daqueles feitos pelos antigos latoeiros, que segundo a mesma lhe «foi oferecido quando criança para regar o seu pequeno jardim que estava no fundo do seu quintal» cujo espaço ninguém podia mexer – para depois o despejar no seu «encanto».
O destino se encarregou de a trazer para outras bandas e aquilo que foi jardim hoje mais não passa do que um bocado de terra, onde o pai planta de tempos a tempos um batatal, que nos dias que correm faz um jeitão, para além de mensalmente, parte das sobras seguir viagem até à cidade.
Uma miniatura de regador que à vista larga mais parece feita de barro escuro por tão usado ter sido, mostrando na sua execução que está para dar e durar pela forma que foi feita a sua estrutura.
Ainda hoje quando deambula pela sua cidade alentejana, nos seus poucos dias de folga, gosta de passar pela ainda existente oficina, lembrando ao mestre que «a sua obra está um mimo continuando a regar a única espécie florida da região».
A flor, deixava um cheiro na escadaria do prédio que a vizinhança até julgava que alguém pela madrugada espalhava desinfectante para «matar as moscas vindas algures dos contentores que se situam na proximidade do prédio» mesmo sendo despejados todos os dias levam meses sem ser lavados e ao mesmo tempo «haver um cheiro impregnado no ar que mais parece urina». A dúvida é que o aroma era «bem cheiroso» para ao mesmo tempo algo «não bate certo». Nos de cima «costuma cheirar bem mas no primeiro....».
Uma dia destes, pela tardinha quando saía de casa para ir fazer compras ao centro comercial, mal abriu a porta, deu de caras com o lulu do vizinho do segundo de perna aberta em cima do vaso da amada flor, aliviando talvez, aquilo que ao canídeo devia incomodar, encontrando no objecto de forma triangular o melhor sitio para despejar o que deveria ter feito no exterior do edifício ou em último recurso na casa de quem seu dono é.
Estava, para Amália, encontrado o cerne da questão e os contrastes atmosféricos como dos desabafos de quem vive no dito. Como resolver a questão é que a coisa se complicava dado a falta de provas mesmo que tivesse apanhado o malfeitor em flagrante delito.
A demora pela resolução não se fez esperar. Pouco dias passados, seu vizinho de cima chamou-lhe a atenção que «na sua entrada paira um cheiro nauseabundo que mais parece um mictório». Nem foi tarde nem foi cedo.
A resposta à provocação e acusação estava encontrada. Amália ia a abrir a boca para dizer o que sentia como pela humilhação que tinha recebido quando viu descer o filho de quem a imputava de «maus cheiros» quando na verdade era o seu cão que fazia as necessidades no vaso mais vistoso do prédio. Para sua sorte, não houve outros ouvidos pelas redondezas evitando assim testemunhos de uma cena de má vizinhança.
- Olhe lá vizinho, deve estar enganado ou a fazer confusão com quem tem em casa!
Quem ouvia o ralhete ficou embasbacado pela saída de quem pensava tudo aceitar sem nada dizer para se defender.
- A menina (menina, subentenda-se, já que é uma quarentona) sabe o que está a dizer? Veja lá o que diz e a forma como afirma porque me está a dizer coisas muito graves?
Amália, que até nem é gaga, disparou em todas as frentes que mais parecia um caçador nos dias aziagos que de tão danado não matar caça dispara em todas as direcções.
- Pois fique sabendo que este cheiro que lhe entra pelas narinas, como aos outros vizinhos, mais não é do que o mijo que o seu cão aí despeja todos os dias! Se tem duvidas, pergunte ao seu filho se não é verdade porque já apanhei aqui os dois; o seu filho e o cão seguro pela coleira, esperando o primeiro que o segundo despejasse a bexiga.
- Mais lhe digo: até nem sei se o seu filho também faz a mesma coisa?
Olha de soslaio para o garoto e arregalando os seus grandes olhos, pergunta-lhe:
- O que a vizinha está a dizer é mesmo verdade?
Confirmada a acusação e despachado um valente tabefe na cara do petiz, dando a impressão que merecia o peso da mão que lhe assentou em cheio num dos lados da face, deixando-lhe vincados os cinco dedos, voltou as costas de quem o tinha envergonhado, partindo de rabo alçado pelas escadas a fora sem dar qualquer satisfação como pedido de desculpa.
Amália, que tem formação diferente do vizinho do segundo concluiu facilmente que no futuro a cordialidade e boas maneiras seria algo que deixava de existir. Contra sua vontade, retirou o que enfeitava o seu pequeno espaço exterior levando o objecto barroso para a marquise – o princípio de uma relação cheia de azedume.
Ainda bem que a do primeiro raramente vê o vizinho de cima e quando este vê a de baixo nem entra nem sai e se a fita no passeio muda logo para o outro dando a impressão que a primeira é que é culpada da situação. No café do rés-do-chão, da Joaquina, a noticia correu como um relâmpago. Propagou-se de tal forma que o vizinho de cima de tão envergonhado estar nem à rua vem, passando os dias à janela a ver quem passa ou, quem lhe morde na casaca. Como a noticia se espalhou é que intriga Amália mas coisa que pouco lhe importa.

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