quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Lassa princesa cigana de Panjane

Por: António Centeio

Lassa minha amiga cigana, tem um coração do «tamanho do mundo». É capaz de comprar quatro pares de sapatos para apenas usar um e dar os restantes a quem mais deles precisar. Os seus olhos «achinesados» e os seus longos e sedosos cabelos fazem dela uma linda mulher. Sabe como ninguém que o jasmim é a única substancia que faz do perfume uma das «maravilhas do mundo». Às vezes quando conversamos vejo as suas lágrimas a enrolarem-se no brilho dos seus olhos. Uma mulher cheia de contrastes.
Como princesa que é e cigana que se orgulha de ser contou-me que na «fé dos ciganos ainda continua a existir a lenda das lendas: «no passado tinham um rei, que guiava sabiamente o povo numa cidade maravilhosa da Índia chamada Sind. Ali o povo era muito feliz, até que hordas de muçulmanos expulsaram os ciganos, destruindo a sua cidade. Desde então foram obrigados a vaguear de uma nação para outra».
Gosta de caminhar sob as estrelas porque «se pode ler nelas o futuro e as estrelas possuem o filtro do amor para contarem coisas estranhas sobre os ciganos. Os ciganos sabem explicar as coisas nas quais crêem de uma forma muito singular».
A mistura de sangue que lhe corre nas veias: árabe, africano, cigano, indiano, europeu, fazem com que seja um «cocktail» completo. Mulher – criança, rebelde de espírito, doce de alma e imprevisível como uma animal selvagem..., assim é Lassa. Enigmática, um tanto misteriosa e até com uma certa dose de loucazinha, não deixa de ser gostosa.
Esta cigana adorava que o mundo fosse um navio para gostar de estar em cima do mastro para desfrutar de toda a visão do mar, da terra e do céu. Apegada demais à natureza gosta de sentir os seus pés pisarem terra firme, gosta de sentir as ondas batendo no seu corpo, adora respirar o ar puro das planícies, montanhas e vales, adora ainda mais estar longe da cidade e sentir de corpo e alma toda a beleza única e maravilhosa do campo e do mato.
Lassa, princesa cigana de Panjane – como lhe chamavam – nasceu próximo das longas matas onde a felicidade apertava os corações e onde diziam ter passado reis e rainhas. Uma terra que por muitos anos, no tempo dos descobridores europeus e dos primeiros comerciantes árabes, foi conhecida como a “Terra das Almas Perdidas” pelo zumbido arrepiante que a brisa vinda do rio faz, em sintonia com a poeira vermelha que se levantava.
A segunda de três irmãs, estudou sempre em colégios de freiras e sempre se lembra de andar pelas ruas e campos à vontade, a maior parte das vezes descalça, que era como gostava de andar, porque a harmonia singular que tudo tem com a natureza com o espírito, com a alma, com o próprio céu tão aberto e esplêndido lhe deu a sensação de que tudo é uma sintonia que emana das águas mornas e calmas do rio e da brisa leve e árida que sopra.
Panjane é uma cidade linda e calma onde todos se conhecem e onde com as irmãs, saía com uma espingarda de pressão de ar para andarem horas no «mato» à caça de pássaros que depois traziam para casa, não isentando que muitas vezes seus pais não tivessem que sair aflitos procurando-as com medo que lhes tivesse acontecido alguma coisa.
Numa vasta planície, próxima de um rio onde vivem juntos crocodilos e hipopótamos, foi o seu berço e o lugar onde nasceu para no quintal da sua casa passar os seus primeiros anos de infância.
É um lugar único onde erguem-se enormes serras e entre elas se estende um vale estreito onde o riozinho sereno corre, sempre manso. E por detrás destas serras, o sol nasce todos os dias para, mais tarde, dar a lugar a uma lua sempre tão vistosa e brilhante. Sobre o vale, meio solitário, os musgos verdes e as dunas de areia vermelha parecem sempre ter estado ali, tão forte é o seu domínio sobre o cenário completo
Sua mãe, mulher única e maravilhosa, ninguém é igual a ela: doce, forte, corajosa, decidida, com um coração enorme e uma alma que se poderia igualar a de uma santa; seu pai: foi um dos homens mais admiráveis que conheceu. Rebelde, aventureiro, frontal e bastante liberal mas ao mesmo tempo amoroso, justo e muito carinhoso.
Tudo o que hoje é deve ao que aprendeu com este homem que mais do que um pai foi um amigo, companheiro e professor da vida, que lhe deixou bem vincada descendência de cigana e europeia.
Da vida faz o lema “mais vale a lágrima da derrota do que vergonha de não ter lutado”. É uma mulher corajosa, porque só a água quente que salpica África lhe dá fulgor para continuar a lutar pelo que acredita para que todos juntos possam viver essa sintonia viciosa da junção da vida com a natureza.
Lassa é uma mulher que nasceu e cresceu com a liberdade dentro dela e talvez por isso seja como um passarinho sem gaiola que voa a qualquer momento.
Quer morrer na sua África que a viu nascer mesmo sabendo que a vida pode acabar de um momento para o outro como a tempestade que não avisa quando vem, mas não quer morrer enquanto viverem os seus sonhos.

sábado, 18 de setembro de 2010

Vendedor de sonhos

Por: António Centeio

Bernardino encontrou um bocado de terreno – por acaso rectangular, que lhe deu a oportunidade de ter nova vida e realizar o seu maior sonho, que já vinha dos tempos da escola.

Entalado se encontrava entre prédios, de ambos os lados e separados por uma longa e moderna avenida. Este bocado de terra, propriedade de um velho especulador que pensava em vende-lo a algum construtor ávido em sacar uns cobres aos futuros compradores permitiu a expansão do negócio de quem em criança já tinha queda para o negócio.

Ainda andava na escola e já trocava lápis por esferográficas, sebentas por livros ou rebuçados por explicações nas áreas em que os colegas eram menos entendidos. A sua inteligência e capacidade de captação faziam dela um aluno com capacidades acima da média. Soube, sem ninguém lhe dizer ou ensinar que explorando este dom natural poderia usufruir de proveitos em seu beneficio.

Desde menino que dizia a todos que o rodeavam «quando for homem vou ser um grande comerciante». Ao contrário dos outros, terminado os trabalhos da escola ia logo de seguida para a mercearia do Bonifácio tentando entender como este trabalhava com o «Deve» e «Haver» coisa, que em abono da verdade, não levou muito tempo a descobrir que uma das parcelas, tendo uma certa forma, queria dizer que o sobrante era lucro, logo: «meter ao bolso ou para aplicação futura».

O seu mestre e confidente ensinava-lhe as artes do ofício porque via no pequeno Bernardino qualquer coisa diferente dos outros.

Ia à livraria da velha Carmelita em busca de livros que espantava os mais velhos. Segundo os boquiabertos, só serviam para os «manga-de-alpaca». Pouco se importava para lhes responder de seguida que o «nos livros é que se aprende. Pobre do homem que não gosta de ler livros». Pasmavam-se com as respostas do pequenote, que de rabo alçado metia o que tinha procurado, debaixo do braço, seguindo a caminho da sua velha casa, situada algures no cimo de uma íngreme rua; a meio encontrava-se a “Pharmácia dos Vidais”. Nesta casa de higiene e saúde, todas as noites, depois do jantar, se reuniam para a cavaqueira habitual os reformados e maldizentes.

Fez-se homem e nunca se esqueceu do que aprendeu na loja do vizinho como no passar do tempo porque as conversas de dinheiro tem uma certa magia. O ter pouco e duplicá-lo era algo de difícil mas não impossível. Bastava que houvesse uma relação de entendimento ou uma astúcia a puxar para o manhoso.

Uma dos princípios que aprendeu, mas que nunca esqueceu é que em termos de negócios não pode haver sentimentos. Isto não quer dizer que exista o direito de passar por cima de terceiros. Tal coisa nem pensar porque o destino prega partidas e o coração do Bernardino era para ganhar dinheiro e dos ganhos repartir pelos mais carenciados. Assim seria e assim continua a ser. No último mês do ano, nunca se esquece de ir visitar as crianças a quem a sorte passou ao lado.

Seria neste bocado de terreno, depois de feito um «estudo de mercado» à maneira de Bernardino que concluiu facilmente: pelo movimento de pessoas que circulam diariamente na avenida; os residentes como ainda os visitantes, o chamariz para o inicio do seu sonho era, nem mais nem menos, que a instalação de um “Stand de automóveis usados”. Bem o pensou bem o fez.

Mesmo sendo provisório, isto é, enquanto o especulador não vendesse, o terreno, podia vender alguns carros em segunda-mão e fazer sonhar quem não os pode ter. Do mais caro ao mais barato, de tudo um pouco o Bernardino lá tinha para vender. A quem quisesse comprar e dinheiro não tivesse, o negociante tinha conhecimento quem podia emprestar sem algum risco correr para quem o vendia.

O tempo foi seu aliado e com a sua astúcia, nem cinco anos passara, altura em que foi vendido o terreno, Bernardino tornou-se o mais conceituado vendedor da cidade como aquele a quem permitia que os clientes pudessem sentar-se dentro dos espadas mesmo sabendo que na verdade poucos teriam dinheiro para comprar o melhor “carro do mundo”.

Que conste, nunca enganou ninguém. Sabido é também a garantia dos veículos vendidos. Só acaba quando tudo tem que acabar; noutras palavras: se o condutor estimar aquilo que é seu, o mesmo só começa a dar problemas quando – como nós – a vida da coisa começa a caminhar para o fim. Tudo se cansa e tudo acaba, até as peças dos automóveis.

Hoje, o miúdo que se interessava pelo «Deve» e «Haver» é dono do rés-do-chão onde se situa o prédio que em tempos passados mais não era do que um terreno descampado.

Não lhe bastasse, de vendedor de automóveis passou a sócio maioritário da firma que importa os melhores carros do mundo para a região, carros estes, que seguindo a óptica de quem os vende, não está ao acesso de qualquer gato-pingado.

Porque o seu lado humano nunca o abandonou nem a frieza dos números fez com que se esquecesse dos outros; muito menos das crianças que nada tem, Bernardino tira anualmente dos lucros uma grande fatia para que em partes iguais seja distribuída pelos vários lares de crianças carenciadas e abandonadas das redondezas. Ainda se dá ao luxo na noite de Natal, vestir-se de velho barbudo. Com um saco às costas distribui prendas como se fosse aquele que as crianças tanto adoram. Até no ajudar os outros sabe vender sonhos.