sábado, 30 de agosto de 2008

Lassa princesa cigana de Panjane


Por: António Centeio

Lassa minha amiga cigana, tem um coração do «tamanho do mundo». É capaz de comprar quatro pares de sapatos para apenas usar um e dar os restantes a quem mais deles precisar. Os seus olhos «achinesados» e os seus longos e sedosos cabelos fazem dela uma linda mulher. Sabe como ninguém que o jasmim é a única substancia que faz do perfume uma das «maravilhas do mundo». Às vezes quando conversamos vejo as suas lágrimas a enrolarem-se no brilho dos seus olhos. Uma mulher cheia de contrastes.
Como princesa que é e cigana que se orgulha de ser contou-me que na «fé dos ciganos ainda continua a existir a lenda das lendas: «no passado tinham um rei, que guiava sabiamente o povo numa cidade maravilhosa da Índia chamada Sind. Ali o povo era muito feliz, até que hordas de muçulmanos expulsaram os ciganos, destruindo a sua cidade. Desde então foram obrigados a vaguear de uma nação para outra».
Gosta de caminhar sob as estrelas porque «se pode ler nelas o futuro e as estrelas possuem o filtro do amor para contarem coisas estranhas sobre os ciganos. Os ciganos sabem explicar as coisas nas quais crêem de uma forma muito singular».
A mistura de sangue que lhe corre nas veias: árabe, africano, cigano, indiano, europeu, fazem com que seja um «cocktail» completo. Mulher – criança, rebelde de espírito, doce de alma e imprevisível como uma animal selvagem..., assim é Lassa. Enigmática, um tanto misteriosa e até com uma certa dose de loucazinha, não deixa de ser gostosa.
Esta cigana adorava que o mundo fosse um navio para gostar de estar em cima do mastro para desfrutar de toda a visão do mar, da terra e do céu. Apegada demais à natureza gosta de sentir os seus pés pisarem terra firme, gosta de sentir as ondas batendo no seu corpo, adora respirar o ar puro das planícies, montanhas e vales, adora ainda mais estar longe da cidade e sentir de corpo e alma toda a beleza única e maravilhosa do campo e do mato.
Lassa, princesa cigana de Panjane – como lhe chamavam – nasceu próximo das longas matas onde a felicidade apertava os corações e onde diziam ter passado reis e rainhas. Uma terra que por muitos anos, no tempo dos descobridores europeus e dos primeiros comerciantes árabes, foi conhecida como a “Terra das Almas Perdidas” pelo zumbido arrepiante que a brisa vinda do rio faz, em sintonia com a poeira vermelha que se levantava.
A segunda de três irmãs, estudou sempre em colégios de freiras e sempre se lembra de andar pelas ruas e campos à vontade, a maior parte das vezes descalça, que era como gostava de andar, porque a harmonia singular que tudo tem com a natureza com o espírito, com a alma, com o próprio céu tão aberto e esplêndido lhe deu a sensação de que tudo é uma sintonia que emana das águas mornas e calmas do rio e da brisa leve e árida que sopra.
Panjane é uma cidade linda e calma onde todos se conhecem e onde com as irmãs, saía com uma espingarda de pressão de ar para andarem horas no «mato» à caça de pássaros que depois traziam para casa, não isentando que muitas vezes seus pais não tivessem que sair aflitos procurando-as com medo que lhes tivesse acontecido alguma coisa.
Numa vasta planície, próxima de um rio onde vivem juntos crocodilos e hipopótamos, foi o seu berço e o lugar onde nasceu para no quintal da sua casa passar os seus primeiros anos de infância.
É um lugar único onde erguem-se enormes serras e entre elas se estende um vale estreito onde o riozinho sereno corre, sempre manso. E por detrás destas serras, o sol nasce todos os dias para, mais tarde, dar a lugar a uma lua sempre tão vistosa e brilhante. Sobre o vale, meio solitário, os musgos verdes e as dunas de areia vermelha parecem sempre ter estado ali, tão forte é o seu domínio sobre o cenário completo
Sua mãe, mulher única e maravilhosa, ninguém é igual a ela: doce, forte, corajosa, decidida, com um coração enorme e uma alma que se poderia igualar a de uma santa; seu pai: foi um dos homens mais admiráveis que conheceu. Rebelde, aventureiro, frontal e bastante liberal mas ao mesmo tempo amoroso, justo e muito carinhoso.
Tudo o que hoje é deve ao que aprendeu com este homem que mais do que um pai foi um amigo, companheiro e professor da vida, que lhe deixou bem vincada descendência de cigana e europeia.
Da vida faz o lema “mais vale a lágrima da derrota do que vergonha de não ter lutado”. É uma mulher corajosa, porque só a água quente que salpica África lhe dá fulgor para continuar a lutar pelo que acredita para que todos juntos possam viver essa sintonia viciosa da junção da vida com a natureza.
Lassa é uma mulher que nasceu e cresceu com a liberdade dentro dela e talvez por isso seja como um passarinho sem gaiola que voa a qualquer momento.
Quer morrer na sua África que a viu nascer mesmo sabendo que a vida pode acabar de um momento para o outro como a tempestade que não avisa quando vem, mas não quer morrer enquanto viverem os seus sonhos.
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verde

sábado, 23 de agosto de 2008

O Equinócio


Por: António Centeio

O mar sempre me seduziu mas a sua grandeza e o seu poder infinito atemoriza-me. Sentado na areia olho o horizonte para ver o encontro do mar com o céu. Às vezes apetece-me dominá-lo, mas depois: penso que posso ser dominado por ele. Neste momento descubro a minha pequenez perante a grandeza da natureza.
Em Setembro os dias são mais pequenos e o sol está mais alto. Pouco me importa. Só o nono mês dá a magia de assistir ao Equinócio. O deslumbramento de poder ver a elevação das ondas são momentos sublimes e inesquecíveis. Com o vento a soprar do mar até as gaivotas com os seus gritos parecem assustar-se com a força do vento e do bater das ondas.
Sentado numa pequena rocha olho para o mar. Sem querer sonho com o encantamento do oceano. O bater das ondas e a espuma que branqueia todo o areal diminui-me como ser humano. Só esta época de marés – vivas dá os momentos de ilusão que preciso para poder viver. Sinto a minha alma ser trespassada por uma brisa marítima que de tanto a água bater nos rochedos se transforma em nuvens acabando por me enrolar na imensidão da sua orla.
Então nas suas profundezas tento descobrir onde se junta o mar e o céu. Embrenhado que estou vejo que o dia acabou. Em vez de continuar a ver o céu, a lua vem ao meu encontro. Como é maravilhoso o crepúsculo num dia de equinócio. A leveza da força do vento faz-me ouvir o interlúdio do bater das conchas perdidas para de seguida me trazer a maciez das algas marinhas vindas das brumas do mar. O adeus do Sol e o encanto da Lua desperta-me a alma deixando-me triste para recordar que um dia tudo terá um fim.
Depois, na mutação da vida tudo voltará a nascer. No regresso ao cais com o brilho da Lua relembro-me que no dia seguinte algo de novo vai nascer. Lá longe, no horizonte, algo como a cor das chamas vai surgindo aos poucos para depois se transformar numa grande «bola» iluminando quem da faina regressa. As gaivotas alegram-se pelo reencontro dando os bons dias a quem lhes traz aquilo que a força do Equinócio lhes tirou momentaneamente. Pena ser por pouco tempo porque nesta noite até as estrelas sorriem.
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sábado, 16 de agosto de 2008

Fabiana encontrou o filho que desejava


Por: António Centeio

Fabiana sempre foi uma mulher determinada. Nunca deixou de acreditar que não morreria enquanto os seus sonhos vivessem como sempre soube que um dia quando estivesse próxima de ser mãe estaria preparada na hora do parto para receber o maior privilégio que a vida dá às mulheres mesmo que nesse sublime momento a vida e a morte estejam sempre juntas.
Nunca teve medo de enfrentar os desafios que a vida coloca na frente das pessoas sejam ou não uma prova e um desafio ao ser humano para mostrar se é ou não capaz de contornar os obstáculos.
Fabiana nunca teve medo de nada. Sempre teve uma coragem que até ela própria se admirava. Não tivesse sido criada nos confins do mundo e no cume de uma serra onde o frio seco entra nas entranhas que até quase gela o coração. Às vezes o Vento assustava-a para que não dormisse demais e estivesse sempre desperta.
A dor e a amargura fizeram-lhe sempre companhia, levando-a com que muitas vezes debaixo do banco em que se sentava as suas lágrimas corressem numa direcção que nem ela própria sabia onde terminava. As lágrimas são algo que ninguém pode roubar.
De tanto ir à cidade onde a aragem era sempre seca e fria ficou a saber que entre Norte e Sul havia em determinada altura das estações que a terra una que faz parte do seu mundo está cheia de contrastes. Prometeu a si mesma, logo que possível, mais dia menos dia desceria até encontrar um local onde pudesse completar os ciclos da vida.
Parou nas proximidades do Tejo já que as recomendações indicavam ser aqui o seu “porto seguro” como sentiu sinais de encontrar encontraria alguém que a ampararia enquanto não conhecesse a terra que iria pisar tantas vezes no futuro.
Mal entrou na localidade viu no alto o Castelo do burgo. Seria a primeira coisa que queria conhecer quando visitasse a cidade. Assim foi.
Quando o percorreu – talvez um sinal do destino – encontrou aquele que viria a ser a sua alma gémea, não sabendo ambos no “momento de encontro” que iriam trabalhar no mesmo local como ser colegas de profissão – ironias do desconhecido.
Da grande amizade nasceu um grande amor que durante alguns anos fez com que se conhecessem profundamente para depois de realizado o acto solene desejassem o maior sonho de Fabiana: ser MÃE.
Começou aqui um dos ciclos mais difíceis da sua vida. Por mais tentativas que fizesse não conseguia engravidar como nunca conseguiu descobrir as causas de tal infortúnio. «Esterilidade» alguém lhe disse. Desistiu, como também seu marido, que um dia lhe prometeu meia dúzia de filhos para todos juntos à mesa galhofarem e serem “todo um só”. A família estava acima de tudo.
No interior de sua casa, algures num dos muitos caminhos que levam outros caminhos às “Lapas” tudo era dor e amargura. Nas noites frias mas húmidas, sentados os dois depois de um dia de labuta o silêncio imperava. Até as suas gargantas se tornavam secas de tão pouco falarem para apenas ouvirem o uivar do Vento forte das noites geladas.
Levavam horas e horas os dois sentados em dois singelos bancos de madeira mexendo com uma atenaza as brasas da sua lareira que iluminavam a chaminé. Apenas falavam em pensamento ouvindo os estalidos da madeira que faiscava ao despregar-se as lascas ou abraçavam-se em silêncio para quando os corações chorassem as lágrimas caíssem nos seus ombros.
Tantas e tantas vezes que o gélido tempo não os deixava sair junto das chamas para que as suas refeições fossem apenas pobres fatias de pão banhadas com um fininho fio de azeite que uma pobre alma sua vizinha, mais apoquentada pela dor que a necessidade dos dois, lhes oferecia quando ia ao “lagar de azeite”. Para além do azeite que dava sussurrava aos ouvidos de quem precisava pelo que aprendeu com o passar dos anos «não
devemos morrer sem vivermos os nossos sonhos».
Não que vivessem miseravelmente mas aquela dor de não poder amar algo vindo das suas entranhas sufocava-a interiormente. A comida enrolava-se e fazia um nó na garganta. Só o azeite fazia escorregar o pão amargo de tão dorido ser como a dor que tinha dentro dela.
Quantas vezes não sentiam a cair nos seus dobrados joelhos, lágrimas dolorosa por estarem a pensar a mesma coisa sem dizerem um ao outro aquilo em que pensavam? Quantas vezes não olhavam para a longa e alta parede da chaminé pintada de branco com uma barra amarela para verem o berço que lá estava pendurado esperando que alguém no seu interior se deitasse?
Nas noites de luar, às vezes vinham, sem saber como, abeirarem-se da pequenina janela voltada para o pátio olhando para a laranjeira que lá estava. Até parecia que tinha sido plantada de propósito há muitos anos com troncos fortes e arqueados esperando por duas grossas e seguras cordas para servir de baloiço a alguém levezinho como uma arvela.
Por baixo da mesma um pequeno rebaixamento redondo fazia a terra escura com uma maciez que a tornava balofa. Se alguém caísse em cima dela não se magoasse mas talvez se sujasse.
Os dois só davam sinal de vida quando umas agoirentas corujas vindas das catacumbas das “Lapas” sobrevoavam o telhado a caminho do cemitério e num cantar medonho e arrepiante os fazia encolher quando ecoavam sons aziagos. A noite ficava adormecida nas profundezas do silêncio porque tal ave, diziam os mais antigos, simbolizava o mal, a desgraça ou o caminho que ligava à morte.
Bendita a manhã de uma terça-feira em que foi ao mercado semanal. Na sua frente caminhava uma pobre mãe que mais parecia uma galinha com a sua ninhada de pintainhos. Toda desfraldada com uns cabelos que desconheciam o pente, sete pequeninos filhos descalços magros e escanzelados seguiam o seu encalçe para ouvirem continuamente da sua protectora pragas amaldiçoadas mais parecendo que lhe tinham pedido para vir a este mundo.
«Enquanto eu tanto desejo uma criança esta pobre mãe tem-nos demais. Não há justiça neste mundo» pensava Fabiana para logo ouvir de seguida da fria mãe: «não haverá neste mundo ninguém que queira tomar conta de vocês?»
Para quem sempre acreditou que nunca morreria enquanto os seus sonhos vivessem, um sonho dos seus sonhos realizou-se. Foi tudo apenas uma questão de tempo para a adopção.
Hoje, uma das crianças é a razão da felicidade do casal que em tempos até pensava que a humidade que corria pela parede da chaminé por causa do calor do lume eram lágrimas de alguém que lá em cima chorava por ver tanta tristeza.
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sábado, 9 de agosto de 2008

Leilla, uma estrela no deserto


Por: António Centeio

Tinha uns olhos pretos como uma azeitona que assentes num branco límpido faziam lembrar o branco do casario nos montes nas planícies alentejanas. Apenas o seu olhar mostrava estar sempre numa agitação de tristeza. A sua pele com uma cor a puxar para o cálido do deserto e o seu cabelo escuro fazia com que fosse uma criança bonita.
Com uma doença esquisita desde a sua nascença, levava já nos seus dez anos muitos dias passados no parapeito da janela do seu segundo andar ora vendo quem passava ora vendo outras crianças brincando no recreio de uma escola frontal à sua casa que fazia extrema com a rua movimentada. Tão movimentada que: carros, bicicletas, animais e outros meios de transportes puxados pelo homem, a poeira do ar – por causa do movimento e das confusões – fazia da comprida artéria uma babilónia de coisas que tanto alegrava quem não podia nela circular ou brincar.
Depois a elevada temperatura, as vozes misturadas que mais pareciam uma orquestra desafinada, as buzinadelas estonteantes dos carros e a gritaria das crianças faziam deste lugar um sítio encantador alheando as crianças dos perigos que as cercavam.
Às vezes até o menino do golfinho por andar sempre com o desenho do mamífero estampado na camisola, passeava ao ombro o seu saguim dando estes guinchos delirantes. Costumava arreganhar os seus pequenos dentes, brancos como os icebergues, para assustar quem distraídamente circulava. O menino do golfinho tinha uma missão: passar de vez enquanto por baixo da janela de Leilla. Depois assobiava num som agudo, para quem estava em cima, ouvisse e visse que nos seus ombros ia aquilo, que numa troca de olhares, fazia macaquices de propósito para quem não podia brincar.
Eram estes curtos e mágicos momentos que os dois pequenos seres sabiam ser exclusivo de ambos. O dono do macaco nunca soube dos motivos da “criança não brincar com o seu bicho”. A única coisa que sabia era que a amiga do seu bicharoco tinha «
uns olhos lindos como as estrelas do deserto».
Por não poder andar e ser como as outras crianças ouvia e via coisas que os adultos não viam ou fingiam não ver. Pela altura e posição que tinha a seu favor estava todos os dias numa situação de privilegiada. Às vezes sua mãe, para não a contrariar, fazia-lhe quase todas as vontades. Uma delas era dar-lhe o almoço na boca mesmo que muitas vezes não soubesse o que estava a comer, tal era a sua curiosidade para ver as brincadeiras das outras crianças. Os seus olhos estavam sempre voltados para quem brincava.
De tão pequena ser sua boca nunca se abria para qualquer lamento. Sofria interiormente mas evitava que sua mãe se apercebesse. Já a tinha visto muitas vezes chorar e ouvir palavras confusas, ditas num turbilhão de frases sem nexo, mas compreendendo que a sua doce e protectora sofria por nada poder fazer.
A mãe olhava-a bem nos olhos e via que as suas azeitonas brilhavam num choro cujas lágrimas nunca escorriam pela face mas enrolavam-se naquilo que um dia a sombra da terra taparia para sempre.
O desgosto de ambas era morarem num bairro daqueles, onde as disputas da lei do mais forte eram as coisas mais normais deste mundo, fazendo com que muitas vezes a desordem se instalasse na zona e onde nem a policia mostrava vontade de ir, não pelos residentes mas pelos negócios escuros que lá se faziam aos olhos do dia não havendo interferência de ninguém, excepto daqueles que viviam dos rendimentos dos produtos que vendiam. Um desassossego que importunava quem lá morava como amedrontava quem visse e falasse.
Muitas vezes as raimonas da bófia como lhes chamavam os traficantes do bairro, visitavam as ruelas mais escuras mas sempre vigiadas por quem encostado às velhas e sujas paredes fingia nada ver ou perceber para servirem de pombo-correio a quem percebia dos sinais que se perdiam nas noites.
Todos sabiam no mundo em que viviam mas todos tinham feita a promessa «nada saber para os estranhos» de modo a que o silêncio por não ser comprado era ameaçado. «Um inferno este bairro. Se tivesse dinheiro comprava uma casa numa zona sossegada e civilizada nos subúrbios da cidade» dizia muitas vezes a mãe solteira para o seu rebento quando via confusões e a retirava da janela.
Até ao dia em que esta lhe pediu para lhe fazer um pudim de leite-creme. A mãe que não queria que nada faltasse a Leilla porque sabia que a sua vida seria curta, o seu maior desejo era fazer com que se sentisse feliz. Num instante, correu para a mercearia mais próxima para comprar o que tanto iria adoçar a boca da coisa mais querida que tinha neste mundo.
A força do mal estava atrás da porta e quando nada indicava rebentou uma confusão de fugitivos e fardados para num abrir e fechar de olhos, os tiros e balas cruzarem-se por percursos desconhecidos para quem já conhecia as sinuosas ruas e esconderijos dos malfeitores.
Uma bala maldita perdeu-se no alvo a atingir para fazer um ricochete embatendo de seguida na testa da pequena criança que nada dizia aos outros mas que tudo via.
A mãe quando chegou a casa com o leite satisfeita de mais um capricho ir dar a quem tudo merecia, encontrou no soalho gasto, de tanto pisado estar, sua filha banhada de sangue.
Branca e transpirando como uma desalmada, apenas viu o pequeno corpo de Leilla com os olhos muito abertos olhando para o Céu. Ficou-lhe para sempre a imagem dos pequenos braços abertos alongados no chão dando a impressão que esperava a mãe para lhe dar o último abraço. Abraço este que não recebeu mas que deu a quem tanto amava.
Então num relance, levantou-se e olhou para onde a filha sempre olhava
mas ninguém viu como nada ouviu.
Ainda hoje, está por saber como o Sol deixou de entrar em casa ou se alguma tempestade do deserto lhe entrou pela casa adentro levando-lhe quem tudo era para ela.
Com uma profunda fé, mas ao mesmo tempo sentindo uma revolta interior abalada por desconhecer os desígnios divinos prometeu a si própria que a partir do momento que deixou de ver e ter a sua pequenina todos os dias estará à janela olhando para onde olhava Leilla com a esperança de um dia poder ver no meio de quem brinca alguma estrela ou alguma sombra que a leve a julgar que aquilo que era seu voltou.
Se nada disto acontecer então que a sombra escura a leve para junto de quem já não tem. Nas noites de solidão, lembra-se do calor que dava a quem tanto precisava para se aconchegar no peluche cheio de borboto de tanto mimado ter sido.

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