terça-feira, 22 de junho de 2010

PRÓXIMO DO AZUL TUDO É UMA ETERNIDADE

Por: António Centeio

Eram nove e quinze quando cheguei à estação de comboios. Tirei o bilhete com destino à Gare do Oriente. Quando me encontrava no cais do embarque olhei para o céu. Estava carregado de nuvens escuras. O horizonte deixou-me triste. Deixava para trás toda uma vida cheia de recordações. A minha voz interior dizia-me que jamais sentiria a essência dos momentos sublimes até aqui vividos como a minha alma sentia um vazio no abandono das suas raízes.
Iniciada a viagem, os meus olhos choraram porque só eles souberam transmitir à mente a grandeza e perfeição de beleza da extensa planície ribatejana. Apenas o meu coração pulava de alegria. Sabia aquilo que o esperava – o momento do encontro. Tão poucos quilómetros de distância mas que se tornavam penosos. Como o mundo é pequeno!
À muito que tinha conhecido Ana. Falávamos várias vezes durante o dia dos nossos problemas. Aos poucos fomos ganhando uma profunda amizade. Conhecia a cidade como a «curva das canas» porque, quando da sua infância, passava pela mesma diáriamente a caminho da escola. Bem cedo foi viver para Lisboa. O que aprendeu, fez com que me ensinasse o significado «estamos em on–line» (era a palavra mágica para iniciarmos a nossa intimidade). Todos os momentos livres que tínhamos eram para estarmos em «on» – Queríamos mais, sempre mais. Ensinou-me a entrar no mundo do «mirc» como saber quem pode estar por detrás de um «nick» ou ouvir a sua voz no «icq».
Ana sabia mais do que ninguém de que “ tudo se relaciona com o mundo das ideias para podermos estabelecer dois planos. Um deles processado directamente com a actividade literária. O outro era a teoria e a ideia, porque entendia que a ciência dos princípios é a ciência dos que investigam as causas ou as razões últimas das coisas”. Eram estes princípios filosóficos que a levavam a ter pensamentos profundos para que se inquietasse quando raciocinava, levando-a assim a estar sempre desconfiada para com o seu «mestre» como me chamava.
Usávamos muito para ‘discussão’ o «Livro de Sofia». Um longo livro que acabou por nos dar a hipótese de fazermos análises profundas sempre que nos encontrávamos.

Ana, sabia que pela sua falta de confiança em mim (por ser mais velho do que ela na idade) e ao contrário do que julgava, aumentava entre nós dois uma misteriosa energia que nos unia. “Alturas há, que até estranhamos os nossos próprios instintos”. Até «Dudu» o seu gatinho de estimação nos avisava para “estarmos preparados para as supresas da vida”.
“Devemos estar preparados para as supresas da vida....”. Ana sabia que «cada um» deve buscar o seu tesouro e que o encontre. Os sinais farão o resto, porque “todos os dias são iguais e, as pessoas deixam de perceber as coisas boas que aparecem nas suas vidas porque não sabem perceber o sinal quando o Sol cruza o Céu” ou quando a sua «Outra Parte» lhe confia toda a “sua vida para que compreenda que nada tem a esconder” desejando apenas a “compensação da total entrega”. Coisas que, Ana, tinha dificuldade em enxergar.
Um dia viria a saber que a amizade que íamos cimentando quando teclávamos ou quando percorríamos a grande avenida, que secretamente o “brilho da bola do Céu” estava fazendo – sem que nós soubéssemos – fórmulas secretas para “que as nossas almas mais tarde ou mais cedo se aconchegassem”.
Das quatro estações, guardamos para a mais fria aquela que seria o início de uma vida. Só Ana sabia dizer aquelas palavras que entram dentro de nós e que nos dão arrepios – não fosse ela poeta.
Meu Deus, quanto é difícil iniciar uma nova vida deixando para trás toda uma outra que foi construída palmo a palmo?
Dizia-me sempre “ sê racional e nunca penses com o coração, porque este é traiçoeiro”. Nunca gostei de racionalismo. Segui sempre o meu coração e a minha intuição. Nunca me enganaram. Construímos aos poucos o «nosso mundo» num paraíso voltado para o mar. Nas manhãs domingueiras, sentávamo-nos os dois na varanda da nossa casa, horas e horas, vendo a força do mar. Sentíamos no Vento aquilo que só o mar sabe transmitir. Do seu interior «vinham» vozes estranhas que nos diziam para vivermos o nosso dia como fosse o último. Era um segredo entre nós três. A magia da Lua Cheia encantava as nossas almas ao ponto de nos embalar para o infinito. Na elevação, a força do vento e do amor faziam com que soubéssemos que próximo do azul tudo é uma eternidade.
Nasceu numa noite com a essência do Quarto Crescente para que jamais fosse esquecida. Até os passarinhos louvaram com o seu chilrear o nascimento do nosso fruto. Os grilos juntaram-se em coro para dar as boas vindas a quem tinha chegado.
Para que as flores que rodeavam a nossa casa não se sentissem tristes demos-lhe o nome de uma delas. Jamais estas deixaram de fazer parte da vida de nós. As margaridas tinham outra vida quando viam a imagem celestial que as acariciava diáriamente. A Alma do Mundo aceitou nos mistérios da vida a nossa entrega. À medida que as luas passavam Margarida, transformava-se numa pessoa com uma enorme compaixão. Os olhos dos nossos olhos brilhavam para a vida.
Naquele dia as gaivotas estavam agitadas. O mar estava aborrecido. As ondas batiam com raiva nas rochas. As nuvens faziam no céu símbolos que pareciam um chamamento para os nossos olhos. Não compreendíamos o que as mensagens nos queriam transmitir. Quando menos esperávamos, do céu ouvimos o bater de dois «trovões». Neste momento, Ana, sentiu uma dor profunda no seu coração. Voltando-se para mim com as lágrimas correndo pela sua face e uns olhos que reflectiam amargura apenas teve força para me dizer “ querido, tiraram-nos algo. Sinto uma enorme dor dentro de mim” para cair de seguida completamente pálida.
A Alma do Mundo tinha-nos levado o fruto do nosso amor. Só neste momento descobrimos o que queriam dizer as vozes interiores quando nos diziam para “ vivermos o nosso dia como fosse o último”.
Numa manhã fria, enquanto o vento abanava os ciprestes que iriam rodear a morada da Margarida, o vento fluiu para nos encaminhar para o silêncio das paredes frias que nos iriam acompanhar para o resto da nossa vida tirando a razão de viver a dois seres que se amavam para que um dia fossem recordados por alguém que foi feito com tanto amor.