terça-feira, 10 de junho de 2008

Quando o azar persegue quem menos merece


Por: António Centeio

Veio à luz do dia no seio de uma família modesta onde os bons princípios lhes foram incutidos desde pequenino para que soubesse respeitar os outros e estes o respeitassem. Ao mesmo tempo foi bafejado pelo azar quando nasceu, talvez pelos sinos repicarem no momento em que chorou pela primeira vez ou pela imensidão do espaço que esperava o crepúsculo. Galveias foi aos poucos embrutecendo, não pelo que aprendeu mas por força de quem o rodeava. Sempre pediu às pessoas que fosse acusado do que fizesse e nunca o contrário mas os adultos teimavam em impedir a normalidade do oráculo de quem não pediu a ninguém para nascer como nasceu.
A vida fez com que nascesse com o que tinha como Galveias sabe que até fim da sua vida deverá suportar com resignação o peso e incómodo de ser corcovado, vulgo marreco. Aos cinco anos era uma criança alegre de sorriso triste. Talvez já pressentisse o que lhe reservaria o futuro para, a meados da juventude, tivesse saudades do tempo passado.
Ainda criança perguntava à mãe «quando é que vou para a escola para andar com a malinha às costas como os outros meninos?». Respondia-lhe que «está quase meu filho. Falta pouco tempo!» Mas no fundo pensava: «o defeito que o petiz têm desde que nasceu, na escola, não servirá de chacota?» Não estava longe da verdade. O tempo veio mostrar que a sua profecia estava certa.
Valeu ao Galveias os conselhos de quem lhe deu a conhecer a luz do dia como o colocou na ingratidão do mundo. A ajudá-lo, a velha e sempre preocupada professora D. Filipa que o apoiava e estimulava, quando a ela, se queixava das partidas e maldades dos outros meninos. Foi esta mulher de ensino primário que lhe ensinou que a «calúnia é como o carvão, quando não queima, suja». Nunca se queimou mas andava sujo e ofendido pelo seu defeito, ao ponto de ter levado uma vintena e tais de anos a ouvir tudo o que os outros lhe queriam chamar. Por mais que Galveias criasse as suas defesas mais os moinhos deixavam de existir mas o vento continuava a ser o mesmo.
«Marreco para aqui marreco para acolá» todos o gozavam e enxovalhavam. Sempre pronto a ajudar quem lhe pedisse ajuda, mesmo algumas vezes o explorando, não regateava trabalho de espécie alguma a fim que pudesse ganhar alguns trocos para ajudar a mãe nas despesas da casa, já que seu pai entendia levar os dias à sombra quando o Sol o incomodava, mesmo sabendo que a desgraçada da mulher todas as madrugadas levantava-se com o desaparecer das estrelas, metendo a rodilha de trapos no cimo da cabeça para segurar a caixa que tinha o «peixe fresquinho» entregue pelos “Luzes” pouco antes de começar a pregar pelas ruas «olhem a sardinha e carapau acabadinho de chegar!»
A vida é como um circo: cheia de trapalhadas e palhaçadas. Às vezes é preciso lembrar às pessoas que a chuva também é composta de lágrimas misturadas com amargura.
Foi num dia de chuva que Galveias bebeu uns copitos e se pôs a dançar do adro da colectividade da terra. Todos se riam, das tontices do vinho que tinha ingerido ao longo do dia, depois de logo pela manhãzinha ter sabido que tinha «trabalho garantido por seis meses na apanha do melão lá para o lado das Lezírias».
Os seus velhos camaradas de escola riam-se a bandeiras desfraldadas. Um ou outro fizeram-lhe partidas, mas o mais afoito, por razões desconhecidas, aplicou-lhe meia dúzia de lambadas sem razão alguma, levando os restantes comparsas a incentivá-lo a outras coisas mais. O pobre Galveias nem força já tinha para se colocar em cima das suas frágeis pernas. Encolheu-se como um canguru e apenas pedia aos santos que a porrada parasse por ali. Parou uma ova!
Foi malhar no desgraçado até não poder mais. Como não bastasse, enquanto encolhido, com a cabeça no meio das pernas, o outro artista começou a chamar-lhe nomes feios como a mexer-lhe na parte íntima da rectaguarda. As pedras da calçada sorriam de tanto ouvir palmas e elogios para quem originava o triste espectáculo. De Galveias, apenas choro e gemidos.
Como que o diabo se tivesse soltado naquele momento, o escuro da noite tapou a vista a quem deveria ver e abriu a de quem já tinha os olhos todos negros de tanta pancada ter levado. Num ápice, segundo consta, só se ouviu um estalido e um grito de dor. Galveias tinha conseguido tirar do bolso um canivete para o espetar em cheio no coração de quem o agredia. Fez-se luz mas era tarde demais para todos.
Galveias era como um ramo de árvore. Não podia estar separado do tronco senão faltava-lhe a seiva que alimentava a sua alma. Cumprida a pena, nem uma migalha do seu passado encontrou quando regressou à aldeia que o viu nascer. Hoje, anda pelas ruas como uma folha nos dias de Vento. Até quando foi ao cemitério, a campa dos pais tinha um aspecto frio e desolador.


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