quinta-feira, 29 de maio de 2008

D. Josefina, uma dona de casa toda arrumadinha


Por: António Centeio

Do que me pagam todos os meses dá-me para viver dignamente. Nalguns, sobra noutros falta. Não diz quanto recebe de reforma mas todos sabem, assim é público, uns trocos irrisórios como escarnido é o seu frágil corpo.
D. Josefina, de seu nome, porque de apelidos oriundos de um passado nobre já lhe basta a tristeza. Foi em tempos, que já não voltam, uma mulher séria e trabalhadora. Com olhos de cor do mar e cabelo sedoso, que mais parece barrado de prata, as suas rugas não enganam como atestam que todo o passado foi vivido numa amargura constante.
Recorda a quem a quer ouvir que a força que tem mais não é do que aprendeu nas palavras de Aquilino. Deram-lhe a conhecer que por toda a parte o povo é carneiro de tosquia. Pouco se importa porque nada já tem para se tosquiar mas mesmo assim continua a ser uma mulher ordeiríssima como Barnabé à altura defendido pelo Dr. Lobão por o quererem acusar de incendiário da Serra dos Milhafres.
Uma reformazita miserável que nem lhe dá para comprar a quantidade diária de leite e pão porque os medicamentos levam-lhe o que ela diz dar para viver dignamente. Pobre dignidade e pobre miséria que por aí anda escondida.
Tem vergonha que os outros saibam que vive numa extremosa pobreza pois o orgulho e a vaidade da sua beleza, vinda de outros tempos, não lhe permitem que descure para terceiros o que a vida lhe tem negado.
Não lhe bastava a desgraça que amainou na barraca em que vive, para quem lhe pergunte onde mora, a fim de lhe levar alguma coisita, responda que numa casa sua, de asseio, para os lados dos ‘Moinhos de Vento’.
Agruras de vergonha e de mentiras para que todos julguem que a sua vida é como as pessoas normais, quando na verdade, vive na extrema miséria, levando a sua dignidade a ter que mentir e fazendo crer a quem a conhece que ninguém sabe daquilo que todos sabem: da sua miséria.
Os pobres também tem as suas regras e as suas defesas para além da vergonha de mostrar aos outros o seu próprio mundo como o seu sorriso desdentado. O pior é quando o mundo real finge que não conhece quem dele faz parte.
Nas noites escuras e assustadoras, veste-se de um luto carregado com um xaile mais preto do que o preto, escondendo a cara no meio de um lenço triangulado de vergonha para que não se core por uma qualquer alma viva que são o seu tormento. Mal põe o pé de fora do portal, olha para aqui e bosbulha para acolá. Nada vindo de além, puxa a porta e atravessa ruas e ruelas, travessas e travessinhas. Pé ante pé não carrega nos sapatos apantufados, não vá o Diabo estar nalguma esquina. De muito longe apenas avista o negrume vindo da serrania. Pouco lhe importa.
Conhecedora dos locais onde estão os melhores contentores de lixo, daqueles que recolhem o que de outros sobrou, apanha com o varapau, que a acompanha sempre, as latas e latões para depois as ensacar na recomida saca que em tempos protegeu aquilo que do Chile veio para o amanho da terra.
Chegada ao casario junta o que apanhou ao que já tem vindo a acumular. Mais dia, menos dia da quinzena seguinte, pela calada da noite, aparecer-lhe-á o velho Toinho com a sua carripana, dando-lhe de troco uns míseros cêntimos como pagamento do pouco que levar já que a vida cada vez está pior. Um comerciante que compra tudo e mais alguma coisa, desde que seja: ferro-velho ou peles secas. Engana-se nos pagamentos e finge ser enganado pelos que se julgam manhoso e astutos.
Os desamparados da sorte, ou da sociedade, sabem que podem vender tudo ao Toinho porque tem sempre umas moeditas perdidas no bolso para dar como contrapartida por dez o que vale cem. Mesmo assim, continua a ser um fraco negociante que não há meio de deixar a carroça e a besta que de tantos já ter no pêlo, mais dia menos dia deixa de calcorrear os velhos caminhos fazendo com que o seu proprietário deixe a actividade por falta de rendimentos e transporte.
Vocemecê ainda goza com a miséria dando-me estas moedas preta quando sabe o que me custa e envergonha andar por aí aos caídos!
O comprador cansado da cantilena da velha rabugenta aconselha-a a dedicar-se ao esbulho do alumínio que é mais rentável. Que coisa é essa e onde encontrar seu velho chafurdeiro?
Passado algum tempo, próximo dos prédios que fazem esquina com as ruas, muito alumínio desapareceu para acabar de cessar no dia em que o presidente da edilidade decidiu que haveria de apanhar quem roubava os sinais.
Não queria acreditar no que viu. Valeu a quem os mudava de sítio, ser de estima para quem mandava, caso contrário D. Josefina estaria agora internada nalguma casa de demência, daquelas a que chamam dos doidos.
Porque os apelidos também tem um preço, mesmo que muitas vezes valham mais quem os carrega, o edil fez com que por quem tinha estima, se albergasse, por prazo indeterminado, num dos lares que existem na cidade, onde o conforto consola e a mesa abunda para quem foi recomendado por tão ilustre governante; daqueles sítios onde não há tosquia e de maneira alguma pode haver protestos, quer por quem é servido ou por quem serve. Pena que não seja assim para todos porque os desprotegidos, ou sem carta de recomendação, vivem com pés de barro no meio de uma casa de bronze como a estátua de Nabucodonosor.Ainda o Sol está do lado de lá de Espanha e já está sentada numa velha cadeira, carcomida pelo tempo, olhando para um horizonte vazio. Talvez esperando pelo cair da folha ou pela sombra de uma qualquer noite escura que a embrulhe num lençol branco levando-a para a terra das mindericas como de Minderico continua a ser o seu apelido.

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