quinta-feira, 29 de maio de 2008

D. Albertina e o seu desplante


Por: António Centeio

Abel e Afonso são amigos inseparáveis. Moram na mesma rua desde que se lembram de ser gente. Andaram na escola juntos como ao lado um do outro passaram quase quatros nas matas de Moçambique, na década de sessenta.
Em épocas adequadas costumavam ir com as canas de pesca, mais os respectivos apetrechos, para os lados do Dique dos Vinte fazer pescaria para em silêncio falarem de tudo e mais alguma coisa, mesmo que só lhes faltasse falar das suas próprias famílias. Como a coisa não dava para a deslocação, deixaram de pescar para levarem parte dos dias, fazendo longas caminhadas, que isto dos ossos estarem parados tem muito que se lhe diga.
Como lhes disse o médico de família «a ossada foi feita para ser utilizada e se quiserem durar mais alguns anos pratiquem ginastica e longas caminhadas. Se lhes apetecer dar cambalhotas dêem-nas que só faz bem». Das três opções escolheram as passeatas. Sempre correm a cidade e vasculham tudo que é sítio para que nunca estejam parados.
Às vezes sentam-se nos bancos do jardim para ver a rotina de quem todos os dias repete a mesma coisa. Sabem a que hora passa este e para onde vai aquela. Se algum novato ou novata aparece nos percursos da rua, armam-se logo em detectives para seguir os passos a fim de que possam saber de onde vêm e para onde vão. Logo anotado na agenda, a causa deixa de ser importante para passar a anomalia se a dita pessoa deixar de passar pela zona. Das duas uma: foi de férias ou aconteceu-lhe alguma.
São daqueles amigos que se preocupam muito com a vida dos outros, porque lá bem no fundo, nem tempo tem para olhar pelas suas ou dos seus problemas, que também os tem.
O que gostam mesmo de fazer é, em dias escolhidos da semana, na hora exacta do meio da manhã, estarem nas arcadas do Tribunal para depois seguirem os passos da D. Albertina que costumeiramente caminha em direcção da Pastelaria do Bonifácio.
Bem penteada, com o seu cabelo, preso em rabo-de-cavalo, enlaçado numa geringonça qualquer, bem vistosa e elegante, vê tudo e todos sem ninguém lhe ver a cor dos olhos, como o Abrunhosa, porque as lentes dos seus óculos de sol, de tão escuros ser não permite que se vejam.
Descem a rua, chegando antes dela ao local, por via dum atalho que encurta o percurso.
Quando chega ao estabelecimento, já Abel e Afonso fingem que lá estão há muito tempo. Sentados na mesa habitual, aparentam que lêem as notícias estampadas no papel, mesmo que sejam do mês anterior.
Pouco lhes interessa as notícias do pasquim, o que querem ouvir é a cantadeira de quem vai chegar e da forma como pede solicitamente o habitual da manhã – da tarde não sabem eles – já que na parte final do dia a rota dos ditos é outra.
Gostam muito de caminhar até ao Modelo para verem quem chega, o que compram e quem parte. De tempos a tempos encontram alguém conhecido e vai daqui, começa uma cavaqueira que só termina quando a hora da janta de aproxima, descontado o tempo do regresso, porque nenhum deles pode chegar atrasado ao encontro familiar em volta da mesa.
Aconteça o que acontecer, na hora das notícias, toda a família tem que estar junta para em conjunto saberem o que aconteceu nas nossas bandas ou no mundo. Claro, que aqui, cada um vai para sua casa e para junto dos seus.
A espera que fazem a quem passa por debaixo das galerias frontais ao Tribunal, mais não se deve ao facto e à forma como D. Albertina pede o que deseja ao conhecido confeiteiro. Todos os dias se repete a cena para os actos serem diferentes
O que chama a atenção de todos, mas essencialmente dos caminhantes, é a forma espalhafatosa como pede o habitual do dia. Todos ouvem, alguns sorriem e outros criticam as atitudes da madame.
- Sr. Bonifácio, por favor! - Exclama quem acaba de chegar, que nunca se senta em mesa alguma, talvez para que o corpo não se dobre ou não mostre as partes superiores das elegantes pernas, porque a saia ou o vestido deve ter minguado em noites de lua cheia.
- Diga minha senhora, que deseja para hoje? - Dando a impressão que o vendedor não sabe a cantilena do costume.
- Uma Bola de Berlim com creme e um café sem açúcar porque tenho que manter a linha!
- Concerteza minha senhora, assim será feita a vossa vontade! – Para de seguida, velho Bonifácio que já mal pode com os sapatos por causa do passar dos anos sorrir interiormente e olhar disfarçadamente para quem finge ler o jornal do dia.
- Aqui está a sua bolinha com muito creme, que tive o cuidado de guardar para si como a sua bica (“beba isto com açúcar” daqui o café se chamar bica) sem açúcar para não engordar. Bom apetite!
Hora de risota para quem veio por atalhos com o fim de assistir às manias da D. Albertina dando o acontecido ensejo a paródia para o resto da final da manhã e servindo de imitação, levando a que os vizinhos sejam figura pelo que repetem no percurso inverso em voz de folgança.
- Sr. Bonifácio, uma Bola de Berlim com creme e um café sem açúcar!
Nas proximidades do Real, os ex – combatentes já são mais conhecidos pelas suas risotas do que o Papa. Qualquer dia ainda passam a sócios do Bonifácio, de tanta clientela atraírem ao estabelecimento. Todos querem ver com os seus próprios olhos o desplante de tão fina senhora.

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