sexta-feira, 5 de março de 2010

Sebastião, sequioso por dinheiro

Por: António Centeio

Sebastião é trabalhador mas um sequioso por dinheiro. Gosta mais de dinheiro de que trabalhar mas a vida passou-lhe a perna obrigando-o a trabalhar mais do que querer dinheiro. Se não trabalhar não tem dinheiro foi a conclusão que tirou depois de feitas as contas. Não sabe se por causa do dinheiro se por causa do trabalho.
Seja como for, trabalha que se farta como um “danado” para que nada falte a quem lhe dá algum a ganhar. Faça calor faça frio, até às tantas da madrugada, o tempo é passado na cozedura do pão que a partir das seis da manhã tem que distribuir porta a porta na sua velha carripana, que por fazer o mesmo trajecto todos os dias até parece que já sabe o caminho. Ainda o Sol está do “lado de lá de Espanha” e as buzinadelas já se ouvem por tudo que é sítio.
As suas clientes têm no barulho do apito um despertador que não engana ninguém, tal é a confiança que depositam no Sebastião. Sabem que o velho e barrigudo padeiro desce a rua, metendo o pão que acabou de sair há pouco tempo do forno em sacos que foram colocados nos puxadores das portas no início da noite anterior.
Todos os dias Sebastião vive da rotina para quando a acabar, passe pela “Tasca do Fausto” a fim de molhar o bico porque a noite foi dura e as receitas poucas. As suas clientes, pagam-lhe, quando pagam, ao fim do mês, depois do “homem do pão” deixar no saco que recolheu a farinha cozida, um bocado de papel pardo com as garatujas do valor. Por norma nunca se engana a favor de quem lhe vai pagar. Se houver reclamações «os acertos são feitos na altura da discussão». Como por norma é sempre uma questão de mais um ou menos um “papo-seco” a coisa não se complica por via de tal. O prejuízo não é por ai além. A ser, que não é, tira-se o prejuízo na farinha para aumentar na sêmea.
O pior que lhe aconteceu foi quando a D. Miquelina estava à sua espera, num dia ventoso, reclamando dos custos para o acusar de não lhe vender a mercadoria. «Não pode ser! Tenho a certeza absoluta que lhe deixo todos as manhãs o seu pãozinho no saco. Juro-lhe por tudo que é santo que nunca lhe deixei sem o pão. Não basta a desgraça que tem em casa por causa da maldita doença de seu marido quanto mais agora lhe tirar um ou dois pãezinhos. Nem pense numa coisa destas! Seria incapaz de tal coisa!». A compradora mais antiga das redondezas afiançava-lhe que «já a alguns dias tinha notado que o saco tinha desaparecido do sitio quanto mais o pão fresco que nunca lhe via a cor. Evaporou-se como o pão que nunca lá esteve. Tive que o substituir por um daqueles que nos dão nos supermercados! Meu rico “saquinho” que tantas recordações tinha dele!»
Conversas daqui, averiguações dacolá, o velho padeiro (careca de todo por causa do calor do forno e das gorduras. Quando da existência de couro cabelo passava com as mãos todas gordurosas pelos fios prateados que ainda lhes restava) jurou-lhe pela «saúde dos filhos» que nunca os teve, conseguir descobrir a razão da reclamação.
«Descanse minha amiga que lhe provarei que não sou o falacioso que julga que eu seja. Dê-me meia dúzia de dias. Mostrar-lhe-ei o contrário». Assim foi.
Passado alguns dias, após acusado do que não fez, com a agravante da possibilidade de vir a ser denunciado publicamente pela vitima do acontecido, daquilo que nunca aconteceu, podendo a levá-lo a que a sua sequiosidade pelo sustento do trabalho fosse diminuir ou a sua imagem descesse pela vala da má fama depois da distribuição e acontecido naquela rua, que por coincidência era a que tinha os melhores clientes.
Estacionou o seu veículo de “Distribuição e Venda de Pão” escondido dos olhares mais curiosos e meteu-se na travessa que passa entre a comprida parede da velha igreja da terra e o terreno baldio que confronta com a casa de fé.
Quase andou para morrer, por não acreditar no que estava a ver, quando viu a “vizinha de frente” da D. Miquelina em pezinhos de lã a sair de sua casa para atravessar a rua. Pouco depois, que nem cinco segundos levou, segundo o vigia, a dita trazia nas mãos o saco de quem se tinha queixado. «Raios me partam, se estou a ver aquilo em que nem quero acreditar?» Estava eufórico de todo pelo acontecido como ao mesmo tempo duvidada daquilo que dizia para si próprio “isto vai ser uma bomba, aí se vai!”
Voltou-se para o pelourinho que repousava no adro da capela e disse: «Isto que vi não pode ser verdade! Amanhã quando contar isto à D. Miquelina vai ser um falatório ou vai cair o “Carmo e a Trindade”». Nas “acusações e defesas” o povo aglomerou-se dando razões a quem acusava. Quando a novidade chegou ao mercado da terra já as coisas iam deturpadas de tal forma que quem «roubava todos os dias o pão à D. Miquelina» devia ser a mesma pessoa que «roubava as flores do interior da igreja e em tempos passados arrombou a caixa de esmolas de S. António». Se não foi, ninguém provou, passou a ser do que estava a ser dito como de outras que seriam ditas. Foram cenas que ainda hoje se fala pelas redondezas.
A vizinha na presença do vendedor e compradora desmentiu tudo mas os argumentos de Sebastião e de uma testemunha ocular, que só existia nas palavras do acusador, foram suficientes para quem desviava o que não era seu confessasse envergonhada, e toda lacrimosa, que a “mudança de sítio” se ficou a «dever às suas dificuldades» como a não ser capaz de sustentar os vícios do calmeirão do filho que «teima em não querer trabalhar e em querer que lhe dê o que não tenho».
Se Sebastião era tido até à data como um «homem sério e trabalhador» a partir do sucedido passou a ser o «melhor padeiro de tudo quanto é sitio».

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