quinta-feira, 29 de maio de 2008

Daniel, o amigo dos pássaros



Por: António Centeio

Daniel é um miúdo desinquieto que mais parece uma enguia. Por mais que ralhem pior faz. Tem meia dúzia e poucos anos mas já sabe mais que alguns adultos. Nos dias longos, arma-se de espadeiro, e vai daí, com um bocado de pau a imitar uma cruz, parece um espadachim na baixeza do mar. Meteu na cabeça que as ondas têm medo dele, que em vez de lutar com espécies de gente como ele guerreia com o mar. Não deixa de ser mau rapaz. Tem apenas o feitio dele.
A mãe tem um pequeno bar à beira-mar onde vende um pouco de tudo e mais alguma coisa, porque o marido em devido tempo, marimbou-se para ela e para o filho por causa de uma descoberta que teve com uma matrafona qualquer que lhe soube dar a volta, pouco se importando dos estragos que deixou para trás como de quem ia sofrer com as consequências.
Então não teve outro remédio que pedir licença ao cabo-de-mar que lhe permitisse abrir a barraquita para sustento do seu filho esguio, pedindo em troca a quem manda nas bordas do mar, que tapasse os olhos ao que os homens da capital deliberam, de maneira a que não tivesse de ter um ou dois miúdos crescidos para fazerem de nadador-salvador caso contrário, os trocos ganhos ao fim do dia levavam um corte que mal daria para os ganhos da casa e sustento do filho, para além de ter que pagar os estragos que este entendia fazer quando os veraneantes andavam de férias.
As boladas que o entorpecido mandava de tempos a tempos para cima dos que descansavam, depois de uns meses a trabalhar, acabava sempre nalguma geladeira partida ou pratos, que tinham no seu interior papas para os bebés, voltados de pernas para o ar.
Tudo acabava num valente ralhete de quem era dono do atingido ou em meia dúzia de tabefes, quando não dava origem a algumas correrias pela areia, de maneira que o adulto desse pela grossa a quem fez os estragos.
Como quem não quer a coisa, ou após reconhecido o descuido de algum banhista, a espaços de tempo, lá surripiava um telemóvel, que a coisa até têm uns jogitos, e sempre, lhe dava a graça de falar com desconhecidos. Se o ouvinte lhe perguntasse quem era ou como estava em posse de tal objecto a resposta algarviada era sempre um esmerado conselho «Tem alguma coisa a ver com isso?».
Se farto de falar, ou de lhe cortarem o pio, o mesmo embarcava logo, sem destino marcado, nas águas do oceano.
Fora disto, Daniel é um pacato cachopo que nos dias mais escuros fica sempre nostálgico, fazendo grandes caminhadas junto ao rebentar das ondas.
Tantas, que às vezes atravessa o areal de uma ponta à outra. Em vez de olhar no horizontal olha para a areia, dando pontapés, como que, de debaixo desta, viesse algum telemóvel desaparecido ou amêijoa.
Com o boné metido na cabeça, de pala para trás, sempre que ouve o barulho de alguma gaivota, branca ou cinzenta, abranda o passo para apanhar a mais desprevenida. Tentativas levadas pelo Vento mas que fazem com que nunca desmereça. Um dia satisfez a vontade. Quando repetia as passadas e os hábitos, houve uma que o esperava, nem queria acreditar.
A meia esguelha, o pássaro olhava-o de frente, levando que perguntasse a si próprio, se era verdade o que estava vendo. O raio do bicho, nem uma nem duas. Apenas tinha o corpo meio inclinado como um barco quando assente na calha. Apanhou-a antes que levantasse asa.
Foi quando viu que a pobre ave tinha uma asa partida. Levou-a logo para o «Bar do Cachucho» para mostrar à mãe e lhe pedir, que a dita passasse a fazer parte do património. Sempre chamava mais clientes e curiosos. «As crianças vão querer vê-la, mãe! Sempre compram mais uns geladitos e os trocos aumentam aí na gaveta do cascalho».
«Nem penses meu marafado duma figa! És tonto ou quê? Os clientes até iam pensar que a barraca é algum galinheiro. Põe-te a andar daqui para fora com a porcaria da gaivota. Não a quero ver aqui, nem a ti».
Durante dois dias, a pobre alma percorreu a praia e arredores em busca do desalmado filho que não lhe dava sossego nenhum, pregando-lhe agora uma partida, já que nem lhe disse para onde foi como das razões da ausência.
Não bastava já o «desmiolado do fulano lisboeta ter aumentado os impostos, que arranjou a maneira dos clientes, em vez de comprarem alguma coisa, só se queixarem do aumento e da crise» quanto mais agora lhe desaparecer o miúdo.
Quando se apresentou na esquadra contando o sucedido, os policias em vez de a animarem deram todos numa risota e galhofada que a pobre mulher já não sabia se «estava tonta ou se a estavam a fazer de maluca».
Todos conheciam o raio do rapaz, que de vez em quando teimava em fazer partidas a quem descansava, obrigando os agentes a fazer com que os visitantes desistissem da queixa, senão era uma trabalheira preencher o auto, visto que o bedelho era menor e daqui, os incómodos que daria como os transtornos que causaria aos adultos. Tudo lá se resolvia amigavelmente, sem ninguém ser prejudicado, para acabar tudo em família, depois de aplicados alguns açoites no moço.
Mas quando a «mulher da tasca» como lhe chamam, os ameaçou que ia imediatamente fazer queixa aos superiores, lá se propuseram fazer uma busca ao fugitivo. Levaram mais três dias a encontrá-lo. Estava encaixado dentro de uma gruta, a caminho do início do Barlavento.
Dormia como uma pedra, tendo a seu lado a gaivota, que estava «tesa como um carapau» assim disse o mais graduado, tendo a mãe pedido desculpa de tais transtornos, mas o «corno do cachopo não ganha juízo de maneira alguma».

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D. Josefina, uma dona de casa toda arrumadinha


Por: António Centeio

Do que me pagam todos os meses dá-me para viver dignamente. Nalguns, sobra noutros falta. Não diz quanto recebe de reforma mas todos sabem, assim é público, uns trocos irrisórios como escarnido é o seu frágil corpo.
D. Josefina, de seu nome, porque de apelidos oriundos de um passado nobre já lhe basta a tristeza. Foi em tempos, que já não voltam, uma mulher séria e trabalhadora. Com olhos de cor do mar e cabelo sedoso, que mais parece barrado de prata, as suas rugas não enganam como atestam que todo o passado foi vivido numa amargura constante.
Recorda a quem a quer ouvir que a força que tem mais não é do que aprendeu nas palavras de Aquilino. Deram-lhe a conhecer que por toda a parte o povo é carneiro de tosquia. Pouco se importa porque nada já tem para se tosquiar mas mesmo assim continua a ser uma mulher ordeiríssima como Barnabé à altura defendido pelo Dr. Lobão por o quererem acusar de incendiário da Serra dos Milhafres.
Uma reformazita miserável que nem lhe dá para comprar a quantidade diária de leite e pão porque os medicamentos levam-lhe o que ela diz dar para viver dignamente. Pobre dignidade e pobre miséria que por aí anda escondida.
Tem vergonha que os outros saibam que vive numa extremosa pobreza pois o orgulho e a vaidade da sua beleza, vinda de outros tempos, não lhe permitem que descure para terceiros o que a vida lhe tem negado.
Não lhe bastava a desgraça que amainou na barraca em que vive, para quem lhe pergunte onde mora, a fim de lhe levar alguma coisita, responda que numa casa sua, de asseio, para os lados dos ‘Moinhos de Vento’.
Agruras de vergonha e de mentiras para que todos julguem que a sua vida é como as pessoas normais, quando na verdade, vive na extrema miséria, levando a sua dignidade a ter que mentir e fazendo crer a quem a conhece que ninguém sabe daquilo que todos sabem: da sua miséria.
Os pobres também tem as suas regras e as suas defesas para além da vergonha de mostrar aos outros o seu próprio mundo como o seu sorriso desdentado. O pior é quando o mundo real finge que não conhece quem dele faz parte.
Nas noites escuras e assustadoras, veste-se de um luto carregado com um xaile mais preto do que o preto, escondendo a cara no meio de um lenço triangulado de vergonha para que não se core por uma qualquer alma viva que são o seu tormento. Mal põe o pé de fora do portal, olha para aqui e bosbulha para acolá. Nada vindo de além, puxa a porta e atravessa ruas e ruelas, travessas e travessinhas. Pé ante pé não carrega nos sapatos apantufados, não vá o Diabo estar nalguma esquina. De muito longe apenas avista o negrume vindo da serrania. Pouco lhe importa.
Conhecedora dos locais onde estão os melhores contentores de lixo, daqueles que recolhem o que de outros sobrou, apanha com o varapau, que a acompanha sempre, as latas e latões para depois as ensacar na recomida saca que em tempos protegeu aquilo que do Chile veio para o amanho da terra.
Chegada ao casario junta o que apanhou ao que já tem vindo a acumular. Mais dia, menos dia da quinzena seguinte, pela calada da noite, aparecer-lhe-á o velho Toinho com a sua carripana, dando-lhe de troco uns míseros cêntimos como pagamento do pouco que levar já que a vida cada vez está pior. Um comerciante que compra tudo e mais alguma coisa, desde que seja: ferro-velho ou peles secas. Engana-se nos pagamentos e finge ser enganado pelos que se julgam manhoso e astutos.
Os desamparados da sorte, ou da sociedade, sabem que podem vender tudo ao Toinho porque tem sempre umas moeditas perdidas no bolso para dar como contrapartida por dez o que vale cem. Mesmo assim, continua a ser um fraco negociante que não há meio de deixar a carroça e a besta que de tantos já ter no pêlo, mais dia menos dia deixa de calcorrear os velhos caminhos fazendo com que o seu proprietário deixe a actividade por falta de rendimentos e transporte.
Vocemecê ainda goza com a miséria dando-me estas moedas preta quando sabe o que me custa e envergonha andar por aí aos caídos!
O comprador cansado da cantilena da velha rabugenta aconselha-a a dedicar-se ao esbulho do alumínio que é mais rentável. Que coisa é essa e onde encontrar seu velho chafurdeiro?
Passado algum tempo, próximo dos prédios que fazem esquina com as ruas, muito alumínio desapareceu para acabar de cessar no dia em que o presidente da edilidade decidiu que haveria de apanhar quem roubava os sinais.
Não queria acreditar no que viu. Valeu a quem os mudava de sítio, ser de estima para quem mandava, caso contrário D. Josefina estaria agora internada nalguma casa de demência, daquelas a que chamam dos doidos.
Porque os apelidos também tem um preço, mesmo que muitas vezes valham mais quem os carrega, o edil fez com que por quem tinha estima, se albergasse, por prazo indeterminado, num dos lares que existem na cidade, onde o conforto consola e a mesa abunda para quem foi recomendado por tão ilustre governante; daqueles sítios onde não há tosquia e de maneira alguma pode haver protestos, quer por quem é servido ou por quem serve. Pena que não seja assim para todos porque os desprotegidos, ou sem carta de recomendação, vivem com pés de barro no meio de uma casa de bronze como a estátua de Nabucodonosor.Ainda o Sol está do lado de lá de Espanha e já está sentada numa velha cadeira, carcomida pelo tempo, olhando para um horizonte vazio. Talvez esperando pelo cair da folha ou pela sombra de uma qualquer noite escura que a embrulhe num lençol branco levando-a para a terra das mindericas como de Minderico continua a ser o seu apelido.

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D. Albertina e o seu desplante


Por: António Centeio

Abel e Afonso são amigos inseparáveis. Moram na mesma rua desde que se lembram de ser gente. Andaram na escola juntos como ao lado um do outro passaram quase quatros nas matas de Moçambique, na década de sessenta.
Em épocas adequadas costumavam ir com as canas de pesca, mais os respectivos apetrechos, para os lados do Dique dos Vinte fazer pescaria para em silêncio falarem de tudo e mais alguma coisa, mesmo que só lhes faltasse falar das suas próprias famílias. Como a coisa não dava para a deslocação, deixaram de pescar para levarem parte dos dias, fazendo longas caminhadas, que isto dos ossos estarem parados tem muito que se lhe diga.
Como lhes disse o médico de família «a ossada foi feita para ser utilizada e se quiserem durar mais alguns anos pratiquem ginastica e longas caminhadas. Se lhes apetecer dar cambalhotas dêem-nas que só faz bem». Das três opções escolheram as passeatas. Sempre correm a cidade e vasculham tudo que é sítio para que nunca estejam parados.
Às vezes sentam-se nos bancos do jardim para ver a rotina de quem todos os dias repete a mesma coisa. Sabem a que hora passa este e para onde vai aquela. Se algum novato ou novata aparece nos percursos da rua, armam-se logo em detectives para seguir os passos a fim de que possam saber de onde vêm e para onde vão. Logo anotado na agenda, a causa deixa de ser importante para passar a anomalia se a dita pessoa deixar de passar pela zona. Das duas uma: foi de férias ou aconteceu-lhe alguma.
São daqueles amigos que se preocupam muito com a vida dos outros, porque lá bem no fundo, nem tempo tem para olhar pelas suas ou dos seus problemas, que também os tem.
O que gostam mesmo de fazer é, em dias escolhidos da semana, na hora exacta do meio da manhã, estarem nas arcadas do Tribunal para depois seguirem os passos da D. Albertina que costumeiramente caminha em direcção da Pastelaria do Bonifácio.
Bem penteada, com o seu cabelo, preso em rabo-de-cavalo, enlaçado numa geringonça qualquer, bem vistosa e elegante, vê tudo e todos sem ninguém lhe ver a cor dos olhos, como o Abrunhosa, porque as lentes dos seus óculos de sol, de tão escuros ser não permite que se vejam.
Descem a rua, chegando antes dela ao local, por via dum atalho que encurta o percurso.
Quando chega ao estabelecimento, já Abel e Afonso fingem que lá estão há muito tempo. Sentados na mesa habitual, aparentam que lêem as notícias estampadas no papel, mesmo que sejam do mês anterior.
Pouco lhes interessa as notícias do pasquim, o que querem ouvir é a cantadeira de quem vai chegar e da forma como pede solicitamente o habitual da manhã – da tarde não sabem eles – já que na parte final do dia a rota dos ditos é outra.
Gostam muito de caminhar até ao Modelo para verem quem chega, o que compram e quem parte. De tempos a tempos encontram alguém conhecido e vai daqui, começa uma cavaqueira que só termina quando a hora da janta de aproxima, descontado o tempo do regresso, porque nenhum deles pode chegar atrasado ao encontro familiar em volta da mesa.
Aconteça o que acontecer, na hora das notícias, toda a família tem que estar junta para em conjunto saberem o que aconteceu nas nossas bandas ou no mundo. Claro, que aqui, cada um vai para sua casa e para junto dos seus.
A espera que fazem a quem passa por debaixo das galerias frontais ao Tribunal, mais não se deve ao facto e à forma como D. Albertina pede o que deseja ao conhecido confeiteiro. Todos os dias se repete a cena para os actos serem diferentes
O que chama a atenção de todos, mas essencialmente dos caminhantes, é a forma espalhafatosa como pede o habitual do dia. Todos ouvem, alguns sorriem e outros criticam as atitudes da madame.
- Sr. Bonifácio, por favor! - Exclama quem acaba de chegar, que nunca se senta em mesa alguma, talvez para que o corpo não se dobre ou não mostre as partes superiores das elegantes pernas, porque a saia ou o vestido deve ter minguado em noites de lua cheia.
- Diga minha senhora, que deseja para hoje? - Dando a impressão que o vendedor não sabe a cantilena do costume.
- Uma Bola de Berlim com creme e um café sem açúcar porque tenho que manter a linha!
- Concerteza minha senhora, assim será feita a vossa vontade! – Para de seguida, velho Bonifácio que já mal pode com os sapatos por causa do passar dos anos sorrir interiormente e olhar disfarçadamente para quem finge ler o jornal do dia.
- Aqui está a sua bolinha com muito creme, que tive o cuidado de guardar para si como a sua bica (“beba isto com açúcar” daqui o café se chamar bica) sem açúcar para não engordar. Bom apetite!
Hora de risota para quem veio por atalhos com o fim de assistir às manias da D. Albertina dando o acontecido ensejo a paródia para o resto da final da manhã e servindo de imitação, levando a que os vizinhos sejam figura pelo que repetem no percurso inverso em voz de folgança.
- Sr. Bonifácio, uma Bola de Berlim com creme e um café sem açúcar!
Nas proximidades do Real, os ex – combatentes já são mais conhecidos pelas suas risotas do que o Papa. Qualquer dia ainda passam a sócios do Bonifácio, de tanta clientela atraírem ao estabelecimento. Todos querem ver com os seus próprios olhos o desplante de tão fina senhora.

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Modernices....


Por: António Centeio

A Dona Carolina e a sua bisneta adoram andar nas grandes superfícies, quer passeando ou comprando o necessário como ainda vendo preços para saberem onde se vende os produtos mais baratos.
A primeira com idade um pouco avançada, já que nasceu na primeira vintena do século passado que até parece nunca ter existido para a segunda porquanto nos diálogos «a bota não bate com a perdigota». Daqui, talvez as razões nos desencontros de trocas de ideias.
Tempo livre é que não falta a ambas mesmo que a idade já pese um pouco para a Dona Carolina.
Vasculham pormenorizadamente tudo à minúcia não vá os «donos da casa» enganar quem vem das redondezas, porque aqui, onde residem, nem sempre o progresso chega tão depressa como na cidade. Até há quem julgue que os do «interior» são uma cambada de aselhas – nem sempre é bem assim.
A bisneta, uma moçoila que já sabe demais para a idade que tem, é uma ávida visitante da Internet, coisa que para a idosa é «algo de outro mundo». Quando anda nas «buscas» e conta com a companhia de quem lhe deu a mãe, o tempo é passado de espanto e gargalhadas.
Quer pelas novidades que a utilizadora mostra como do que a segunda diz advinda das coisas do «outro mundo» que a estar ali no monitor mais não pode ser do que «o mundo anda ás avessas ou eu sou doutro planeta».
Desnecessário se torna explicar a quem já não enxerga bem, mas que ouve lindamente, o que a tecnologia oferece nos dias que correm.
Na parte da manhã percorrem duas áreas comerciais que se situam quase no mesmo espaço para de tarde virem até à parte alta da cidade, local que adoram, não só pelo movimento mas como por tudo que rodeia como das pessoas frequentadoras. Andam as duas pelo meio das prateleiras onde exposto está toda a espécie de produtos como as novidades mais recentes. Algumas até noticiadas na TV.
Quando acontece Dona Carolina ver na televisão a marca de um produto e no dia seguinte encontrá-lo bem frente dos seus olhos, a sua voz ressoa por tudo que é sitio levando a que a mais nova chame-a à atenção para o espalhafato que acaba de fazer. Não porque não goste ou se importe mas porque chama a atenção de quem lá anda que mais não são do que «umas cuscas» segundo a idosa.
Adoram andar de «malinha na mão» a ver o que as outras pessoas compram, para depois passarem pelas «caixas» olhando para quem leva os «carrinhos cheios». Sabem, as duas, pelo espaço ocupado, se as compras são para a «semana» ou para o «mês» como da posição social de quem vai pagar o que comprou.
Não é defeito nenhum, apenas «curiosidade» porque na freguesia estas coisas não acontecem. Logo, nada como «todos os dias na cidade onde até dá gosto viver».
Um dia destes, Dona Carolina precisou de comprar alguns ovos, dadas as suas galinhas terem decidido, por razões desconhecidas, não lhe dar aquilo que precisava.
Que remédio senão comprar no sítio onde passa a maior parte de seu tempo livre acompanhada de quem um dia deixará de poder continuar a fazer o que faz já que a vida se encarregará de mudar o respectivo rumo.
Nada, então, como aproveitar aquilo que se pode. Agarrou numa embalagem de ovos cuja marca conhecia por via da telefonia anunciar como «os melhores ovos do país». Olhou para o dito pacote e vai daí: puxou os óculos que andavam pendurados na ponta do nariz para ler bem as informações que na embalagem constava em letras grandes; não estivesse a ver as letras com as lentes de pernas para o ar. «…ovos produzidos à base de milho, trigo, soja e girassol» – talvez o que o marketing queira dizer é que as galinhas que produzem os tais ovos sejam criadas à base do que lá está escrito.
Não pôde deixar de exclamar em voz bem alta para a descoberta: «mas agora as galinhas deixaram de dar ovos ou já são produzidos em quantidade industrial sem passar pelo rabo das galinhas?»
Na verdade a sua idade avançada, como por tudo o que já passou na vida, permiti-lhe aceitar que nos dias que correm já tudo seja possível, mas agora «esta produção ou publicidade» é que não é lá muito convincente. Tudo tem os seus limites como certas coisas até confundem quem já começa a desconfiar que os «deuses devem andar loucos».
Ainda hoje se está para saber como o primeiro ovo apareceu quanto mais agora já não ser preciso galos que façam com que as galinhas ponham ovos; a não ser que sejam «ovos clonados» como lhe disse uma madame toda mandada para a frente que também andava naquelas bandas.
Na verdade e, aqui para nós, esta coisa de «ovos produzidos….», mais não é do que uma técnica publicitária muito usada pelos entendidos para que consigam vender aquilo que os seus «clientes» produzem e lhes pagam a peso de ouro – a publicidade.
Tanto anunciam que acabamos todos por ir atrás do engodo, quando muitas vezes até sabemos que «a bota não bate com a perdigota. Para complicar a coisa mais, a fiscalização deixa muito a desejar ou só aparece quando não deve aparecer. Como resultado às vezes até nos conseguem vender «gato imita a lebre».
A bisneta, de maneira que não chamasse a atenção de outras pessoas, encosta o seu ombro ao da avó e ternamente diz-lhe ao ouvido – bisavó, são coisas das modernices.

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Partidas do destino








Por: António Centeio

Ainda pequenino, quando seus pais o levavam a passear até ao Paredão gostava de ver o mundo que o rodeava como tudo aquilo que o fazia funcionar. Às vezes perdia-se no tempo para que pudesse mirar o que mais lhe intrigava ou chamava a atenção Na tenra idade, quando tinha duvidas sobre o desconhecido, puxava as calças do pai para que este lhe desse atenção e explicasse por palavras fáceis de compreender aquilo que não sabia. Talvez por estas e outras razões bem cedo começou a mostrar um certa inteligência e um gosto pelo saber como «não pensar noutra coisa enquanto não descobrisse a causa da primeira».
Foi na longa avenida nazarena que pela primeira vez viu uma cigana perseguindo o pai para que lhe deixasse «ler a sina». Diálogo difícil porque o pai não acreditava nestas coisas de «sinas e muito menos na lengalenga das ciganas» que via neste método uma forma de ganhar a vida à custa da curiosidade ou ignorância dos outros, mas a mãe achou graça à desenvoltura da pequena nómada pedindo-lhe então que lesse as linhas das mãos do petiz.
O resultado foi que o casal durante semanas andou às avessas pelo que foi lido. Não levaram a coisa a sério mas Pedro levou. O resto da vida foi passado a remoer o que ouviu em criança. Nunca se esqueceu do que a saltimbanca lhe disse. «Nunca andes de avião porque se o fizeres morrerás». A partir do dia em que tais palavras foram ditas, quem pequeno foi e homem se tornou, fez os possíveis e impossíveis para nunca andar de avião.
De formação académica, dificilmente deixava alguém indiferente. Culto na convivência com os amigos estes espicaçavam-no para não acreditar no oráculo, o que aliás até lhe «ficava mal» visto ser um doutor famoso na região em cuja capacidade e talento os doentes confiavam plenamente.
Acreditava um pouco nas «partidas do destino» como nunca se esqueceu do «olhar esquisito da cigana» para além de «nunca devemos renunciar naquilo em que acreditamos». Por mais que tentassem convencê-lo a viajar de avião, a resposta era sempre negativa. Não bastasse, em termos de humor diziam-lhe os mais chegados «devemos olhar para traz e sorrir dos pesadelos passados».
Quando ia aos congressos da especialidade levados a efeito nos mais variados países usava todos os meios de transporte, menos o aéreo. Foi preciso um colega seu convidá-lo para ser padrinho de um dos seus filhos, cujo baptizado se realizou no Barlavento, para no fim de quase cinco décadas anos Pedro andar pela primeira vez de avião (Lisboa-Faro) .
«Quando se chega aos cinquenta anos, já se conhecerem todos os sentimentos fortes da vida e começa-se a ter outro distanciamento em relação da mesma» dizia-lhe o companheiro de viagem.
A viagem decorreu da melhor forma com o tempo passado na cavaqueira de detalhes profissionais. A situação do país também não deixou de vir à baila como discutiram os colóquios que se aproximavam porquanto tinha terminado a época de férias, altura em que os professores aliviam a agenda. Na mira, estava o mais importante, onde um consagrado neuro-cirurgião ia apresentar publicamente os resultados de um estudo.
O avião fez-se à pista e aterrou com normalidade, levando a que o colega e futuro compadre lhe dissesse que a sina afinal mais não tinha sido que «conversa fiada». Pedro e o amigo foram os primeiros a sair. Por razões desconhecidas ao descer o primeiro degrau da escada Pedro desequilibrou-se, batendo com a cabeça num degrau e vindo de seguida a rebolar pelos restantes, de tal forma, que teve morte imediata. Foi a sua primeira e última viagem e a revelação realizou-se.



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Capa e resumo do romance "Nascida Na Terra Do Vento"


"Nascida Na Terra do Vento" retracta o drama e o difícil caminho que teve de percorrer a "Viscondessa da Ribeira de Vidais".
Da fortuna que herdou, gastou-a na luxúria e na vida nocturna para se esquecer do mundo que a rodeava como de quem sempre a serviu com toda a dedicação e respeito.
Talvez por desprezar e humilhar os mais desfavorecidos o destino trocou-lhe as voltas para passar a conhecer o "outro lado da vida": a pobreza, o sofrimento e a humilhação.
Não bastasse, teve que lutar e sofrer imenso para poder criar e educar o seu único filho, fruto de uma grande amor.
O romance encontra-se à venda nas livrarias.
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Capa e resumo do Romance "A Herança de Ana Margarida"



"A Herança de Ana Margarida" é a história real de um casal a quem o destino pregou as maiores partidas.
No dia em que viu uma folha despregar-se de uma árvore, próxima da sepultura onde seu pai estava a ser enterrado, fazendo uma série de círculos para só parar em cima do caixão, Ana Margarida soube logo que o seu futuro nunca mais seria o mesmo.
A maior de todas, foi quando lhe roubaram a filha, de poucos meses, num "Centro Comercial". Depois a vida secreta de Miguel, que quase lhe destruía toda a fortuna por causa das mulheres.
Foi com o dinheiro de Ana Margarida que um dia conheceu Lassa. Nada sabia dela. Apenas sabia que tinha na sua frente uma mulher que lhe corria nas veias uma mistura de sangue: árabe, africano, cigano, indiano, europeu, que fazia com que fosse uma espécie cocktail. Mulher criança, rebelde de espírito, doce de alma e imprevisível como um animal selvagem.
Seria esta enigmática mulher, um tanto misteriosa e até com uma certa dose de loucazinha, que encontraria um dia, alguém, a quem as lágrimas iriam para sempre fazer-lhe companhia com um sabor tão amargo, por não poder ser mãe.
Edição Esgotada
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quarta-feira, 28 de maio de 2008

Gabriel, um trabalhador acusado de assaltante





Por: António Centeio

É, e sempre foi um trabalhador exemplar – nunca gostou que lhe chamassem empregado. Ainda o patrão, não chegou à Fábrica dos Pirolitos e já aguarda a abertura dos portões para poder entrar.
É sempre o primeiro a comparecer na enorme extensão que nas horas de movimento acolhem as camionetas que descarregam e voltam a carregar o vasilhame daquilo que beberam e que outros irão consumir.
Sempre gostou de ser o primeiro a entrar para ser o último a sair mesmo que algumas vezes o patrão lhe tenha que pedir para se retirar porque quer fechar o que abriu.
- Desculpe senhor Alfredo mas a minha máquina tem que ficar como um brinquinho.
Todos o estimam e admiram pela sua entrega e dedicação à fabriqueta, não isentando que não haja este ou aquele que nas suas costas diga mal de quem não prejudica ninguém.
Talvez seja aquele trabalhador que todos os patrões gostariam de ter. Cá fora, da fábrica, todos o conhecem como o apreciam por se preocupar com tudo e todos.
- Então vizinha, a sua Mariazinha está melhor? Estas malditas gripes! Não desanime que melhores dias virão.
Se sabe dalguma desgraça, vai logo perguntar se é preciso alguma coisa.
- Não se esqueça se o seu marido precisar de sangue, quando for operado, estou pronto a dar do meu».
Quando a sua vizinha do terceiro sentiu as dores de parto, foi ele que a levou para o hospital de madrugada – o marido estava num curso qualquer de formação. Desapareciam as estrelas do Céu e já regressava na sua velha carripana, do tempo da guerra a caminho da Fábrica Peninsular de Pirolitos.
Bela dia, estava a trabalhar quando um agente de autoridade compareceu na dita, notificando-o para se apresentar na esquadra.
- Eu, ir à esquadra? Mas não fiz nada!
O polícia que o conhecia, disse-lhe para não se enervar que tudo se resolveria a contento. Com a breca, isto é que não estava previsto. «Notificado para ir à polícia?» Não pode ser verdade!
Para quem anda dentro das esteiras devia ser coisa complicada ou então algum engano.
- C’um raio!...Não te preocupes filho duma zíngara, não há-de ser nada de grave, disse o patrão para lhe acrescentar – cá estarei para te ajudar a desfazer esse enredo. Não te conhecesse há um carradão de anos; agora como te conheço, descansa que até vou contigo para sossegares.
A chefe da esquadra, por acaso uma bela moçoila, que até sempre viveu no bairro do agora notificado, conhecia como ninguém o Gabriel, daqui esta burocracia, mais não ser que um mau entendido, vinda de outras bandas.
- Sente-se ali naquele cadeira, vizinho Gabriel, para de seguida puxar por um enorme calhamaço:
- Diz aqui, que a sua viatura participou num assalto a uma ourivesaria lá para os lados do Algarve! Claro que isto mais não é do que uma enorme confusão, mas das grandes, atirou-lhe como informação a graduada.
O pobre Gabriel, quando ouviu o conteúdo do averbamento até mudou de cor ao ouvir do que era acusado.
- O meu carro? Mas não pode ser verdade, senhora chefe!
- Ó vizinho deixe-se lá dessas coisas e trate-me como sempre tratou. Qual chefe qual carapuça. Vizinha e acabou.
Apresentado o relatório, cedo se verificou que algum amigo do alheio, falsificou a matrícula do carro dos larápios. O azar calhou ao Gabriel.
Como um relâmpago, resolveu-se logo a questão.
- Gabriel, que o seu patrão entregue fotocópias do boletim de ponto e que faça uma declaração em como no tal dia esteve a trabalhar.
Chamado que foi o patrão, mais disse:
- Ainda provo mais: trago a gravação da máquina que filma a entrada e saída dos carros na minha própria fábrica; lá, tem que estar de certeza absoluta, o do Gabriel.
No fim do dia estava desfeito o equívoco e desvendado a causa da notificação, acrescida na resposta, de um apêndice em que a entendida fazia ver por A mais B que tudo não passava de uma esperteza usual de quem anda no gamanço.
- Irra! Que ninguém pode dizer que está bem, desabafou Gabriel quando viu o auto encerrado. Há dias que um homem não pode sair de casa.
Isto é que se riu o empregador, abraçando o empregado, enquanto lhe dizia:
- Vai para casa descansar que hoje já tiveste a tua parte e, de que maneira!...


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Não chora pelo presente nem pelo futuro mas pelo passado


Por: António Centeio


Patrícia, de seu nome, veio da terra das mil e uma flores. De cara como uma concha, olha para tudo que a rodeia. Quando se senta nos bancos que de frente estão para o rio, que tanto gosta de ver, seus olhos de gente grande espantam-se com o que vêem.
Do lado de lá, duas facetas antagónicas sobressaem. De um lado, o verde campo, o cantar dos galos, o alvoroço das galinhas e o amanho da terra. Mãos experientes tratam o que anteriormente foi posto nas suas entranhas para que mais tarde alimente quem plantou; do outro, a majestade da serra e a grandeza do silêncio que dela faz parte.
Existe no seu olhar, qualquer coisa de aventureira e de empreendedora. Quando for grande quer ter um bocado de terra para que nela, tudo um pouco possa plantar, a fim de poder fazer a colheita do que precisar.
Nos fins de tarde em que o Sol teima em ficar vermelho e consegue divisar através das folhas dos salgueiros, que fazem sombra sobre a água, olha para quem do lado oposto, está.
O verde das árvores e do prado deixam-na encantada. A casa de colmo com telha-vã, que no meio do verde se situa, recolhe o que apanhado foi para ao mesmo tempo fazer sombra a quem debaixo se recolhe.
Tem em cima da tropeça, uma grande alguidar de barro vidrado com a cor do meio em que está colocado. Dentro do mesmo, encontra-se várias peças de roupa, alguma de quem no dia anterior cavou o sustento. De corpo encurvado, com as pernas abertas para equilibrar o corpo, ensaboa-a para depois a esfregar, passando depois à torcedela.
Bem longe, ou bem perto, não sabe enxergar; os cornos da lua vão dando sinais que algo caminha para o fim. São horas de acabar o que faz falta e caminhar para a margem onde se situa a casa que chama de habitação. Bem perto desta, dois paus, que foram ramos de algum salgueiro, seguram um comprido e velho arame, carcomido do orvalho, que serve de estendal.
Peças de roupa são estendidas. Daqui a pouco e logo terminado, os tecidos molhados, que pelas cores contrastadas com o verde e o sol, parecem giestas em flor. Regressa então – sempre de cara amochada para a terra, que de tão pisada estar, já conhece os passos de quem a calcorreia – para a casa do fundo.
Pouco falta para que da amostra daquilo que deveria ser uma cantimplora, algum fumo começa a elevar-se para se juntar ao cinzento perdido que no ar ameaça chegar. Deve ser a hora da janta, pensa Patrícia, para se levantar e seguir para o adro da igreja.
Só daqui consegue ver tudo que a sua vista alcança. À sua direita, depois de bater com uma mão no pelourinho, encosta as pernas ao pequeno muro que a separa da baixeza, mesmo tendo a curta distância, do seu lado direito, a velha palmeira; um pouco mais longe uma chaminé, feita em tijolo burro de uma qualquer fabriqueta, que no passado deve ter destilado muito fruto de figueira.
Bem longe, vê que a bola do Céu vai desaparecendo aos poucos, mas com uma cor esquisita, dando-lhe a impressão que algo vai acontecer ou como que: o mundo ou a terra, já não seja o que foi. Não corre uma brisa nem sombra de nuvens no azul, que muito distante se quer estrelar. Ainda está quente a pedra do chão.
Por causa do calor da tarde anterior, até a erva está seca pela falta do orvalho da madrugada. De repente o Vento sopra, fazendo com que o que devia ser uma brisa, comece a se transformar num vento forte e assustador.
Vindo por detrás da serra, um negrão se aproxima, a passarada está num alvoroço. Até parece que as folhas se desapegam dos ramos que são a sua segurança nos dias quentes.
Ao voltar-se para a cruz que um pouco à sua frente está, repara que mudou de cor. Será impressão sua? Não é! O que vê é o início do aproximar da época fria, que se aproxima antes do tempo, que em tempo foi determinado.
Desce a correr o que subiu vagarosamente para de despedir da margem do rio que a susteve enquanto via coisas do lado de lá.
Chegada a casa, caiem os primeiros pingos grossos de uma chuva que durante meses molhará a calçada das Lapas como fará subir o nível do rio. Também a altura em que tudo que esteja cercado por orlas de árvores, ficará triste ou abandonado; tempo em que a solidão torna tudo cinzento para quem não tem onde ir.
Patrícia, sente as lágrimas que lhe correm pela face como as gotas que caiem em cima das telhas da sua casa, vindas das nuvens que há pouco vieram do lado escondido da serra. Chora, não pelo presente ou pelo futuro mas pelo passado; do tempo em que via a Ribeira da Peneda, vinda algures das entranhas da penhasco com o mesmo nome ou da Soajo. Também se lembra das quedas de água, das fragas graníticas, dos prados onde via garranos selvagens a pastar e o encantamento de alguns bosques.
Como Patrícia tem saudades de ver os campos de espigueiro? De trepar para se maravilhar das almas genuínas nas pontes de pedra; de ouvir histórias de homens que «o foral determinava que os fidalgos ali não pudessem demorar mais que o tempo de um pão saído do forno esfriar».
Nunca se esqueceu das palavras conselheiras do tio Álvaro «Um dia chegará a hora de partires. Antes dessa madrugada, quando andares pelas ruas, quando te cruzares com as pessoas e olhares para as suas casas, que a tua memória tudo guarde porque nunca mais tornarás a pisar as tuas raízes». Assim se cumpriu.
Não está arrependida de viver onde vive. As Lapas e o lado-de-lá do rio que nasce para os lados da Zibreira fazem com que sonhe com o dia em que terá um bocado de terra. Nessa altura então plantará aquilo que gosta de ver nos dias que se senta nas bordas do rio que por pouco não banha o seu poiso. Afinal é uma mulher do norte, de rija têmpera como o granito.
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O mistério da mala de cartão



Por: António Centeio


Todos os meses fazem a sua viagem habitual até Vila Velha de Ródão. O velho automóvel já está habituado às subidas da serra. Nunca se queixa do esforço que lhe exigem como do peso que leva, talvez por a “A-23” fazer deslizar as suas rodas sem qualquer solavanco como nos tempos que saiu do “stand”.
Os ocupantes já não passam sem a beleza estonteante da serra como da paisagem que cativa quem a saiba apreciar. Depois, os cheiros que vem do interior da terra e das árvores fazem com que a viagem demore mais tempo do que é habitual. Paragem obrigatória é na primeira “Área de Serviço” para no sossego mais uma vez ser contemplado aquilo que «só do alto se pode ver». O arvoredo que confere a tranquilidade; a zona serrana que permite um profundo envolvimento com o meio, possibilitando desfrutar paisagens abertas, algumas majestosas em contraposição com espaços estreitos para visualizar ao mesmo tempo a união entre o azul do céu, por vezes também a neblina branca.
Disseram-lhes em tempo, que nesta pacata vila se costuma vender «os melhores queijos do país» feitos manualmente por mãos hábeis levando a que os seus produtores não precisem de andar por tudo que seja sítio a vendê-los. A fama do que sabem fazer permite-lhes apenas aguardar a chegada de quem de tão longe vem.
Argumenta, quem os faz, com uma pouco de razão, que a publicidade dos seus clientes é suficiente para «não chegar para as encomendas». Daqui aconselhar a quem não conheça o negócio que «nunca se aventure a fazer qualquer tipo de viagem sem contactar» quem tão bom queijo faz e vende, caso contrário, poderá chegar à localidade situada na encosta da serra e não trazer os seus queijos.
Quando acontece, depois de apresentadas as desculpas de quem tão bem sabe fazer os “salgadinhos e picantes” nada se fica a perder. A quem não conhece a “Ródão” um dos filhos faz de guia turístico mostrando tudo que seja digno de se ver nas redondezas como a barragem que água recebe vinda do “Tejo” explicando ao mesmo tempo que a “ dos Montes Ibéricos” calma é em toda a sua expansão para fazer com a sua largura uma das mais bonitas albufeiras, permitindo a quem saiba, deleitar-se com a beleza da pacata vila que fica nas costas de quem olha para a barragem. Simplesmente uma soberba paisagem. É assim que os “Queijos da Vila de Ródão” como de quem os faz se tornaram famosos levando a que diariamente dezenas de forasteiros visitem a localidade. É assim que se negoceia. Se não há matéria-prima para vender oferece-se a quem se deslocou alguns passeios como. Nada se perde, tudo se vende.
Foi numa destas viagem que o casal e respectivos acompanhantes ao aproximarem-se da “D’Ródão” viram à distância, estendida na berma da estrada uma velha e comprida mala de viagem, daquelas de cartão. Deduziram que a mesma tivesse caído de algum carro, daí, terem parado e apanhando-a para a levarem para o “porta-bagagens” do velho “Fiat” com o objectivo de ser averiguado quem seria o dono ou….verem o seu conteúdo já que algo indicava que vazia não estava.
«Quem sabe se não terá dados para se escrever um romance» disse um dos que se apearam, talvez por ter lido dias antes “Para lá da Porta Secreta” – livro de um escritor e contador de histórias, chamado “Centenius”. «Que fazer com o raio da mala, de tão velha se encontrar até parece ser do tempo da guerra?» perguntavam uns aos outros. Olhando para as redondezas o que viam era: fumo branco a sair da chaminé da fábrica, agora “vivalma” nem sombra.
Foi quando alguém de lembrou «Vamos levá-la. Em casa vamos abri-la e logo se verá o que tem ou de quem é». Assim foi. Feita e armazenada a encomenda do mês, no porta-bagagens que levou o queijeiro a espantar-se com tal relíquia, como a dizer alguns piropos menos impróprios para a situação do achado, voltaram para a cidade de onde tinham partido horas antes.
Mal estacionaram a viatura na garagem, a fim de se descarregar as compras, como o achado, depois de fechado o portão não fosse algum curioso pasmar-se com o que visse ou desse com a «língua nos dentes» a mala foi colocada em cima de uma mesa. «Até parece que achamos um tesouro» disse a dona da casa para se rirem numa forte gargalhada.
No momento em que meteram uma faca para rebentar as fechaduras da mala de cartão, de tão ferrugentas se encontrarem, ouviu-se logo um estalido que indicava a abertura. O silêncio que pairava permitia ouvir barulhos esquisitos que mais pareciam pessoas espreitando pelas fendas do portão como os miseráveis pescadores narrados no livro “A Pérola”. O incumbido de abrir o tesouro fez render a expectativa; o silêncio fez barulho; olhos vindos da escuridão esperavam pela descoberta obrigando a que o viajante mais novo gritasse «Deixe-se de lerias e abra é essa porra!». Ao mesmo tempo ouviram, vindo do cimo, um forte estrondo – era a inquilina do andar superior a partir no chão um tomate congelado.
Todos mudaram de cor, exclamando em coro «a mala está assombrada». Recompostos do susto a mala foi aberta. Apenas continha: duas velhas e sarnentas fotografias de aviões da “Segunda Grande Guerra”; três ou quatro bocados de papelão, do tamanho de uma caixa de fósforos, que indicavam: ser o escriba um forreta ou um qualquer “manga-de-alpaca” já que neles constava os gastos feitos em “compras para casa no mês de Julho” do longínquo ano de mil novecentos e cinquenta e dois.

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Adalberto, um amigo porreirão



Por: António Centeio

Adalberto é um patusco e amigo da galhofa. Garganeiro, por defeito, não deixa de ser boa pessoa. Amigo de seu amigo está sempre pronto para a brincadeira. Leva os dias vagueando, no bom sentido, pelas ruas e ruelas da cidade, falando com este ou com aquele.
Pergunta a uns como vai a agricultura, a outros como vai a família e aqueloutros como vai a situação, porque segundo os seus conhecimentos, a coisa vai preta por causa da crise que o mundo atravessa, ou que atravessamos por via das asneiras dos outros. A haver, será sempre dos outros e nunca de nós.
Excepção, nos dias úteis, é o dia seguinte à segunda-feira. Dia de romaria e cavaqueira. Levanta-se bem cedo para assistir ao iniciar do dia e a fim de poder ver a montagem dos vendedores ambulantes no espaço a que alguns chamam de «Mercado Semanal». Nas redondezas do espaço ouve dizer: «um terreno valioso como este, de tão bem estar situado e com uma enorme ocupação semanal vendedores que nem factura passam mesmo sendo obrigatório) ser utilizado para outros fins ou encher a carteira a algum especulador? Nem pensar!».
Adalberto percorre de seguida com a sua calma de alentejano todo o espaço. Ouve aqui e acolá, para além ajuizar com velhos amigos o que antes ouviu. Assim pode ouvir o botar palavra de terceiros como fazer o seu próprio juízo, que nos dias que correm é preciso muito, se tomada em atenção for a idade da pessoa como dos que lhes juntam.
Por volta da metade do meio-dia, conforme os ponteiros das horas, vai arrancando a caminho de onde alguém o espera para lhe dar o merecido, obtido que foi das receitas dos rendimentos adquiridos em tempos passados por conta de outrém
Um sabichão disse-lhe: «pelo andamento que a coisa leva, qualquer dia nem para a sopa já chega». Quando pensa nas palavras do entendido, torna-se num desalmado e ralha com tudo e todos que o rodeiam, dando a impressão que são os culpados, mesmo que a sua velha Carminda, companheira que é há um ror de anos se compadeça sempre das malcriadices que vem da boca de quem tanto sabe.
Quando nas noites de tertúlia livre em que os vizinhos do bairro convivem na roda da mesa da sueca falando daquilo que todos falam, a noite passa a ser agoirenta para ficar também sem estrelas porque o «futuro está ameaçado por quem manda poupar mas não rentabiliza o que na sua posse está» ou não rentabilizou em devido tempo aquilo que deveria ser o sustento e de quem trabalhou tornando assim, a posteridade dos mais novos como um mergulho em águas baixas do rio.
Destes debates, o resultado, segundo os pareceres do Adalberto, foi ficar sem efeito a excursão, e as futuras, que estava marcada para o mês do ano com menos dias, aconselhando a quem o ouvia, que «estas passeatas deixam de ter efeito imediato para serem substituídas pelas Termas do Cartaxo».
Mais do que nunca, temos que começar a sermos forretas, já que no presente, até os bancos já estão a dar um “chouriço a quem lhes der um porco”.
A conclusão, como lógica do amigo patusco e galhofeiro, é que o futuro está a ficar preto demais para quem trabalhou e foi obrigado a dar à entidade responsável o «guardar uma parte daquilo que não queria para que da poupança um mealheiro tivesse nos dias de fim de vida». Aos que argumentam o contrário, que se cuidem, porque os saloios costumavam dizer: «Quando começares a ver as barbas do vizinho a arder mete as tuas de molho».

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Em busca do tesouro




Por: António Centeio


Xana era uma mulher vistosa até ao dia em que num acidente de automóvel ficou com mazelas, deixando-lhe deformações físicas. Nunca mais foi a mesma. Sua beleza exterior deixou de ter aquele encanto que tanto admirava e se orgulhava. Criou em si própria complexos, que quando olhavam para ela ficava nervosa. O médico acompanhante, e jovem como ela, dizia-lhe para consolo da sua alma “são apenas complexos”. Não estava longe da verdade. Continua sendo a mulher linda e encantadora que conheci, e por pouco, quase me apaixonava por ela.
O tempo é como uma “ borracha”, tudo apaga. Hoje é uma pessoa comum e já não liga quando a olham. Sempre foi uma mulher empreendedora. Mesmo sendo impossível deter o rio da vida e sem um centavo no bolso, mas com uma fé infinita, Xana, continua a ser aquela mulher que sempre admirei, tanto em corpo como em alma. Abriu uma clínica médica onde existem as mais variadas especialidades. De tal forma que tem o seu futuro garantido. Anterior ao acidente, costumava dizer-me que existe uma linguagem universal que está além das palavras. Se nós aprendermos a decifrá-las com esta linguagem conseguiremos decifrar o mundo. Tudo é uma coisa só, dizia ela.
Sempre disse que nunca se casaria. Achava o casamento um contrato burocrático com um pouco de hipocrisia à mistura. Mas o seu companheiro é algo que Xana muito preserva. Como a vontade é coisa que não lhe falta, busca algo que deseja e acredita. Agora dedicam-se os dois à filosofia com a companhia dos amigos mais chegados, nos quais me incluiu. São noites que perdemos mas justificadas pelo tempo utilizado.
Usamos para discussão o livro de Sofia. Um livro que demora a acabar mas que nos dá a hipótese de uma análise profunda.
Às vezes temos a impressão que há uma misteriosa energia que nos une ao mesmo tema. Alturas há, que estranhamos os nossos próprios instintos. Até Dudu a mascote de Xana, que nos faz companhia dá sinais para estarmos preparados para as surpresas da vida. Paulo, filosofa para que cada homem busque o seu tesouro e o encontre. Os sinais farão o resto, porque todos os dias são iguais, e quando todos os dias ficam iguais e, as pessoas deixam de perceber as coisas boas que aparecem nas suas vidas, não sabem perceber o sinal quando o Sol cruza o Céu.
Numa noite destas, Xana e Salém disse-nos que em determinado momento da nossa existência perdemos o controlo das nossas vidas e ela passa a ser governada pelo nosso destino. Numa altura da vida tudo é claro, tudo é possível, não temos medo de sonhar e desejarmos aquilo que gostaríamos de realizar. Olhem para mim: “1.72 de altura, uma vida de sofrimento e dor, sem filhos mas vivendo com um homem que me ama e amigos puros como vocês, onde alguns ainda sentem uma paixão por mim, não me devo sentir feliz?”
Então não é que descobrimos que a vida é constituída por símbolos, mensagens, sinais. São estes que nos regem a vida e nunca nos apercebemos porque não os vemos. Algumas vezes apenas os sentimos, como Xana, quando saiu de casa. Sabia que algo lhe ia acontecer no dia que ia buscar o seu diploma profissional a Lisboa. Desconfiou da emoção do papel que lhe daria o resultado do esforço exausto durante quase sete anos, mas não acreditou. Quando próximo de Aveiras viu vir um veículo pesado contra o seu carro então é que se lembrou daquilo que não sabia o que era mas que agora sabe.

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Lindo dia de Sol




Por: António Centeio




Quando acordou já era dia e um lindo sol coloria tudo ao seu redor. Para Sandra, o problema era com atravessar a floresta. O silêncio da floresta intrigava-a como os perigos que existiam no seu interior. Mas sabia que uma pessoa sábia tenta resolver os problemas antes que eles surjam. Descobriu que a noite é apenas uma parte do dia. Foi então que iniciou o percurso que tinha que fazer. Acreditava que algo a acompanhava nos seus passos. Nunca se esquecia de todas as armas que o homem foi capaz de inventar, a mais terrível – e a mais poderosa – era a palavra. Quem era e o que fazia sabia, muito bem. Mas há coisas inevitáveis que temos que aceitá-las como são ou então descobrir o segredo em como contorná-las para que não se avolumem mais. Tinha uma enorme Fé. Ensinaram-lhe desde pequenina que precisamos de confiança e, a confiança chama-se Fé. A fé é um mergulho numa noite escura. Acabou por atravessar a pequena floresta que a separava do chamado mundo civilizado.
Desde pequenina a minha «aluna» demonstrou sempre que, história ou filosofia seria o destino da sua licenciatura (como adorava as estrelas e o seu encanto). Acabou por escolher a última. Dizia sempre que nos mistérios do azul recebia as mensagens daquilo que acabou por seguir. Sandra era um encanto. Rompia pelos pensamentos uma áurea de inteligência para no brilho dos olhos resplandecer algo de misterioso. Toda ela era uma argúcia da natureza (só eu, a sabia compreender). Bem cedo descobri que nesta aluna que a sua capacidade em acreditar nos sinais era algo fora do comum. Previa para ela um grande futuro – nunca me enganei. Sinto-me feliz pelo tempo que despendi com Sandra.
O nosso encontro acabou por ser sublime porque o encontro de duas almas gémeas é maravilhoso. Sandra, sabia – mais do que ninguém, compreender os sinais. Nos encontros que costumávamos ter no silêncio da cabana com os nossos mensageiros acabavam sempre na aproximação de dois corpos espirituais. A essência da beleza e da Alma do Mundo não nos deixava ir mais além. Era o segredo de duas pessoas que buscavam a sabedoria no meio dos sinais e das estrelas.
Muitas vezes com a sua cabeça apoiada nas minhas pernas lamentava que a sua maior mágoa interior era saber que neste mundo materialista as pessoas nem sempre entendem a nossa linguagem.
Como gostava de Sandra!
Nestes momentos éramos duas pessoas numa só. O outro mundo, só compreendia palavras como ambição, riqueza e sucesso. Mal sabia que o futuro lhe reservava uma grande surpresa. Nas tardes chuvosas e de trovoadas assustadoras eu costumava ouvir o seu pequenino coração chorar. Chorava, porque nas profundezas do seu ser era sensível. Sentia-se insignificante para acabar com o sofrimento dos mais carenciados. A dor dos outros entrava nas suas entranhas. Como compreendia o seu grande coração.
Sentia-se uma privilegiada por estar comigo e me ter encontrado. Adorava-me e considerava-me um mestre. As suas primeiras palavras foram que “o amor é uma ponte que permite passar do mundo visível para o invisível”. Disse-me que estas palavras mais não eram do que uma homenagem a um grande escritor brasileiro que com a sua pena e sabedoria lhe tinha tocado no fundo do “ coração”.
Respondi-lhe que é preciso termos confiança na capacidade que cada pessoa tem para se ensinar a si mesma.
Sandra encontrou o seu caminho. De tanto amar Yorhge – como sabia e podia – só podia receber confiança e segurança. A vida é feita de sonhos e ilusões. Passado pouco tempo casaram-se. Yorhge era um homem experiente e um pouco mais velho do que ela. Mas soube recompensar Sandra com paixão e amor.
A vida prega partidas. Yorhje era um homem ambicioso. Correu riscos e seguiu certos caminhos que lhe dariam no futuro tanta amargura.
O sonho diluía-se. Sentia que o amor caminhava para o abismo. A ganância de querer sempre mais e mais acabou com aquilo que sonhara. Ainda bem que não tivera filhos.
O seu futuro estava ameaçado.
Nos meus ombros, as suas lágrimas corriam, sentindo eu, que a amargura estava a entrar nas profundezas da sua alma. A minha alma sentia a dor da minha aluna. Estava a sofrer em mim aquilo que Sandra sentia. Éramos como duas almas gémeas, a dor de um, era a de outro.
“Ajude-me a suportar aquilo que me consome” clamava! Como chorávamos os dois.
Eu semeei os meus sonhos no chão que agora pisas; pisa suavemente, porque estás a pisar os meus sonhos, disse-lhe.
Viajamos os dois para onde pudéssemos cheirar a maresia no mar e o gosto do sal na boca. Foi então que os seus olhos brilhantes sentiram um momento intenso. Atraída por outros olhos viu que as palavras de Francesco Alberoni correspondiam à verdade. Vacilou um momento mas o homem que estava na minha retaguarda era o amor da sua vida.
Vinda de Samora Correia encontrei-a em Lisboa nas proximidades de um grande centro comercial. Contou-me que tinha três filhos e viajava pelo mundo. “O mundo é como as estrelas, sempre em mutação” dizia-me ela. Afinal tinha aprendido alguma coisa comigo.
Acreditava na presença daquilo que sempre acreditou. A todo o momento pensava em mim. Recordava com nostalgia as noites que passávamos na sua casa.
Naquelas noites frias junto da lareira onde me pedia docemente “senta-te no sofá, porque só nele, com a companhia do calor das brasas, podes sentir o som das melodias que as cordas do meu violino tanto sensibilizam o teu coração. Para ti mestre, que tanto adoro, dedico-te as memórias do tempo”.
Como ela sabia executar “Lara’s Theme”. Tinha o “ dom” de me sensibilizar. Sabia o sentir do meu coração e aproveitava todas as oportunidades da vida para que estas demorassem muito tempo a voltar. Por tudo que lhe ensinei e pelo que fiz por ela, com os olhos fixos em mim, as suas lágrimas corriam pela sua face, cuja pele já demonstrava que o passar dos anos deixam as suas marcas. Mas a sua beleza feminina interior continuava sendo a mesma.
Mestre, como me chamava Sandra, dou-lhe como presente, ser o mestre de Petrus – seu filho predilecto, pela sua gratidão e pelo facto de existir como ter vindo ao meu encontro e ter esperado tanto tempo por ele.
Leve-me consigo – disse ela. Ensine-me a caminhar pelo seu mundo. Viajámos os dois no tempo, no espaço. Sandra viu campos floridos e cidades que flutuavam em nuvens de luz. No campo de trigo, ela compreendeu que os símbolos sagrados estão num dos Pólos da Terra. Precisamos de encontrar o nosso caminho mas sem nunca termos medo de o atravessar.
Lembrar-me-ei de ti a vida inteira, e tu lembrar-te-ás de mim, como das coisas que teremos sempre porque não podemos possui-las.
É preciso ajudar a construir, é preciso ensinar as pessoas a ensinarem-se a si mesmas. É pena que não seja da tua idade. Teríamos sido um grande casal. Não me esqueças nunca!


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Zacarias


Por: António Centeio

Homem de seus quarenta e poucos anos, sempre vestido de preto, expressão triste, faz-se acompanhar de um bengali. Passa os dias sentado num banco do jardim que confronta com a avenida, talvez a mais antiga da cidade. Entre o corpo e o braço um enorme calhamaço o acompanha sempre para que nos tempos livres puxe dos óculos, cujas lentes de tão grossas serem faz admirar quem para elas olha ou vê o taciturno cidadão na leitura.
Tardes e tardes debaixo da mesma árvore, esquecendo-se que está num sítio público, tal é a ânsia em ler aquilo que o escritor ou outro qualquer entendido escreveu. Dos poucos que tem acesso ao timbre da sua voz, sabem que não é um homem qualquer mas sim alguém com uma enorme cultura, porquanto as respostas que costuma dar todas elas são filosóficas.
Torna-se uma figura esquisita pela escuridão que o acompanha como na forma estranha de se vestir. Meses e meses com o mesmo tipo de roupa, que em abono da verdade, de suja não tem nada. Sempre limpa e bem vincada. Alguém deve tomar conta da mesma. Usa um perfume, cujo aroma indica que não deve ser qualquer mixórdia.
Todas as noites vagueia pelas ruas da cidade. O seu andar torna-se esquisito, por causa da sua forma de andar como pelas enormes passadas que dá, tornando difícil a quem tem o privilégio de o acompanhar, aguentar a sua pedalada.
Homem de poucas falas, mais ouvinte que pregador, as respostas são todas quase dadas em poesia ou frases tão invulgares, mas cheias de sabedoria que torna difícil a quem o quiser convencer de que aquilo que disse não é correcto. Contra argumenta com conjecturas que nos deixa sem fala.
Recita com suavidade a razão da lógica a quem se lhe oponha na contraposição dos factos. Sabe justificar que desde os primórdios sempre «houve e haverá o domínio da minoria sobre a maioria»; que o mestre «não escreveu mas outros transcreveram aquilo que ouviram»; que o homem «aceita o vulgo mas critica o conhecedor». Suaviza com parábolas as «dores daqueles que vivem de lamentos e crêem na fé quando na verdade lhes se ajusta a educação para socializarem-se na hipocrisia». A prova está: quando olham para ele, vendo no seu corpo aquilo que este recolhe e esconde, para o julgarem aquilo que não é mas que querem que seja. A sociedade é uma palhaçada. Vive de aparências quando deveria viver de realidade. Se Zacarias mandasse, obrigaria toda as pessoas a estudar filosofia.
As suas críticas tornam-se suaves para quem as ouve. Sabe comentar as razões dos responsáveis da edilidade sem nunca pronunciar o nome de quem quer que seja. Deixa a quem o ouve a duvida e o pensamento aberto para se entreter como num jogo de xadrez se por acaso se refere a fulano ou beltrano. Certo é que as suas teses não encontram discórdias de tão bem serem legitimadas. A ser juiz, seria tolerante, porque antes de condenar ou julgar vai ao cerne da causa e só depois de compreender a atitude de quem praticou o acto é que faz o julgamento, noticiando, então, a quem seu par ou ouvinte está a ser.
Só regressa a casa depois de ter percorrido as principais artérias da urbe. Nunca se deita antes das três da matina. Conhece os barulhos vindos dos lugares mais esquisitos como no silêncio da noite consegue ouvir rumores das conversas íntimas – que quem as diz, se esquece que no silêncio do escuro até o vibrar de uma corda de violino tem outro som. Conhece de ginjeira os vadios e os locais onde se trafica como dos que se escondem por debaixo dos degraus de escadas, dando o seu charrito.
Todos os conhecem mas ninguém o incomoda. Talvez por ser um homenzarrão que assusta todo aquele que se julgue musculoso. Zacarias é um homem pacífico e educado para além de ter uma cultura acima da média.
Se algum mais íntimo lhe pergunta a razão porque anda sempre vestido de preto, se não lhe faleceu, que se saiba, alguém próximo, responde com frases ditas de uma forma que até parece que está a ler as palavras que estão escarrapachadas no livro.
«Meu caro e ilustre amigo, à sua pergunta respondo-lhe citando o meu velho mestre – não diz o porquê do “mestre” ou quem o é – Steinbeck «É extraordinário a forma por que uma pequena cidade toma conta de si própria e de todas as suas unidades. Se casa homem e mulher, jovem ou criança, agir e se conduzir segundo um padrão conhecido e não ultrapassar as barreiras, e não quiser ser diferente dos outros, não fizer experiências novas e não adoecer e não puser em perigo a tranquilidade e a paz de espírito ou o fluir incessante e ininterrupto da cidade, essa unidade pode desaparecer e nunca mais se fala dela. Mas basta um homem abandonar os conceitos normais ou os padrões conhecidos e seguros, para os nervos dos cidadãos vibrarem de nervosismo e a comunicação percorrer todas as fibras nervosas da cidade. Nessa altura, casa unidade está em contacto com o todo» – Respondi-lhe de vosso agrado?»Se todos sabem, porque o vêem o assim vestido e poucos ouvem os seus discursos predilectos gravados na sua memória como os seus argumentos que raramente encontram oposição válida, porquê então lhe perguntar a razão do que é público? Quanto muito, Zacarias não é melhor nem pior do que todos nós.É apenas diferente.

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Um dia invernoso




Por: António Centeio

O dia está chuvoso e frio. A chuva incomoda-me. O frio quebra-me os ossos. Ando encolhido sem saber a razão. Olho para o Céu e vejo tudo escuro. O Vento teima em não dar forma certa de cair a chuva. Não sei o que fazer. Apenas sei que me apetece ir para a rua aproveitando o espaço livre pela falta de quem anda todos os dias na rua quando o Sol brilha.
Resido num andar situado no meio de uma longa avenida que me permite ver extensamente parte do que a rodeia ou dela faz parte. Às vezes até me deixa ver aquilo que não devo ver, porquanto na escuridão da noite, algumas janelas iluminadas no seu interior, permitem ver o que não espero e muito menos pretendo. É para mim, a melhor avenida da cidade, cujas noites de Verão me fazem calcorrear os longos passeios da mesma, quer para cima quer para baixo, quando no silêncio da noitada faço as minhas caminhadas.
Mas neste dia invernoso algo se apodera de mim e tenho que ir para a rua. Algo como um pressentimento que só a natureza nos sabe fazer sentir. Penso duas vezes o que devo fazer para ao mesmo tempo confessar a mim próprio, que no momento da decisão, detesto ter incertezas ou dúvidas, mesmo sabendo muitas vezes que estas duas coisas, para além de distintas, são na verdade, a solução do problema que me apoquenta.
Corro os cortinados, desligo a luz e visto o meu impermeável que me irá proteger de algum imprevisto. Levo também o meu chapéu-de-chuva e faço-me ao caminho. Começo a descer a Avenida, também conhecida como “Avenida doPatacão”. Das sacadas, pinga gotas de água grossa. Olho para esta ou aquela montra que no escuro embelezam o local com as mais variadas cores.
Como o dia está invernoso os carros circulam menos para o silêncio acompanhar-me com a possibilidade de elevar o meu pensamento para o desconhecido enquanto ouço a chuva a cair na calçada. Olho para uma ou outra montra mas o conteúdo comercial não prende a minha atenção por causa da época consumista que a sociedade atravessa.
Continuo a descer a artéria. Sem dar pelo tempo passado e pela distância percorrida começo a ouvir o rebentar das ondas. Estou próximo do mar. Entro na avenida lateral a que também chamam de “ Avenida da Praia”, talvez por esta dar acesso ao longo areal que no “período alto” atrai milhares de pessoas. Na minha frente vejo o mar, cuja água revoltosa me faz sentir como o mais pequeno grão de areia que não encontra lugar para se resguardar da fúria do Vento.
O furor do mar teima em galgar o paredão. Pouco falta para chegar ao asfalto. A chuva cai copiosamente por tudo que é sítio. As palmeiras situadas a meio da via fazem um ruído de arrepiar. Dobram-se mas não se quebram. Parece o fim do mundo. As depressões da estrada, com a água que vêm das nuvens, criam pequenos charcos de lama, tirando a visibilidade do asfalto. Não bastasse, até a claridade do dia se tornou numa escuridão. A chuva grossa teima em cair aos turbilhões do Céu.
Reparo então numa pequena figura que se encontra sentada em cima da relva que envolve as palmeiras espalhadas ao longo da alameda. Está dobrada com a cabeça entre as pernas. Aproximo-me desta pobre alma, olhando para o seu tronco. Quando me dobro para a chamar e ver a sua cara, um automóvel passa por cima de um lençol de água. Quase me encharca todo. Fico sem visibilidade alguma, tanta foi a quantidade de água que levei na cara e ainda por cima mal cheirosa.
Limpo a cara com o braço para de seguida abanar o corpo de quem desconheço. Levanta a cara e vejo um rosto feminino que de tão formoso ser encanta a minha alma. Quando a olho bem de frente assusto-me por causa dos seus olhos esbugalhados para de seguida me entristecer pela situação e local em que se encontra.
Como dois perversos, conversamos um pouco enquanto a chuva começa a encharcar-me por causa da posição e local. Por causa do Vento, pouco percebo do que me diz. Convido-a a sair de onde está. Aceita o meu convite e puxo-a pelo braço para baixo de uma varanda que se encontra no sentido oposto ao que estamos. Pergunto-lhe quem é e «porque está neste local num dia como este?». Não sabe justificar a razão. Apenas me pede que a leve para junto do filho. Explica-me onde se encontra. Logo informado do local, a sorte está do nosso lado. Um táxi passa neste momento. Faço-lhe sinal e dentro do mesmo seguimos imediatamente para onde a infeliz indica.
Um carro está enfeixado entre dois enormes pedregulhos que protegem o cais portuário. No seu interior, uma criança está presa no banco. Não apresenta sinais de ferimentos. O taxista aconselha a que se chame os bombeiros e autoridade visto que a jovem tem dificuldade em explicar-se, pedindo-nos apenas que «salvem o meu filho». A criança segue para o hospital e a mãe para o posto policial.
Poucas horas depois sei que a «criança está bem» segundo informação do hospital, como sua mãe está acusada de «causadora de um crime» já que pretendeu suicidar-se, tentando levar para o abismo, como companhia, o seu único filho.

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A terra ressequida





Por: António Centeio

O
Sol fica escuro porque uma nuvem de fumo teima em lhe fazer sombra. Mesmo que o dia ainda esteja a meio, as pessoas não sabem se o mesmo é depois do inicio se do fim.
Nem a própria Terra já sabe a quantas anda. Os passarinhos amedrontam-se pelo silêncio das folhas das árvores. 0 Tempo parou, ou mudou. Ninguém sabe.
As parras das videiras murcham e os cachos estão mirrados. Aqui e ali, as poucas oliveiras transformam-se de verde para cinzento. A terra, de seca tão estar, começa a gretar, como gretadas continuam as mãos de quem a amanha. O poço que transbordava água deixa um desagradável cheiro. Tão mal cheiroso, que até os pássaros que costumavam poisar nas suas bordas foge como se ali estivesse o diabo.
A velha barraca, feita de canas e tapada com telha-vã, segura por quatro fueiros, que servia para a tosquia dos carneiros já não se segura em pé. Toda ela se vai desfazendo. Basta um pouco de Vento e está num fanico.
Perdido no meio do seco, um escanzelado cão, raquítico e remeloso, cercado de carraças, olha para o horizonte como procurando um azimute. Em cima, transporta sem saber, ou finge não saber, uma amostra de arvela. Traz o bico aberto como implorando ao vizinho de baixo, o que os dois procuram. Calcorreados alguns metros, caiem os dois, sem saber o porquê. Bem perto paira o sinal da escuridão. Um coelho e um pombo estão em fanicos. A terra mãe recusou-lhes o sustento da vida. Poucos dias passarão para que apenas reste o esqueleto. Já não há uma malga de pão.
Os dois viajantes, acabados de chegar, não têm tempo de se aperceber que acabaram de entrar na trilogia final da vida. Ali tudo acaba, tudo deixa de ter vida. Caminhando para a terra mal cheirosa, rasteja uma sardanisca quem nem com o rabo pode. Aos poucos vão-se juntando onde tudo começou.
Um pouco mais longe, uma vala, em tempos, chamada de real, está amargurada, porque deixou de alimentar quem nela vivia ou dela dependia. Onde havia água cristalina, passou a haver um verde seco e pegajoso. Mal cheiroso tornou-se o que recentemente bem cheirava.
Os salgueiros que junto dela faziam sombra e marachas começam a estar raquíticos de tão secos estarem. A sua casca cai como o gelo quando se derrete com o calor.
A curta distância, dando a impressão que o escuro deixava ver mais longe, nas encostas da serra, os canaviais, perdidos no espaço, mas visíveis de quem precisa das suas canas para arranjar ou espetar as velhas sardinhas sardentas e queimadas pelo tempo, arqueiam-se com o bafo quente e morto que paira no ar para ao mesmo tempo, estarem desfalecidos. Das sinuosidades, sem força, pendem para um lado que nem eles próprios sabem, tal é, o que está escondido ou faz esconder o Sol.
O Vento parou para deixar de varrer com a fresquidão. Toda a verdura murchou para fazer companhia àquela que morreu de tão desnaturada estar.
Acolá, terras cheias de milho. No meio do milheiral e dos estalidos das folhas, por tão secas estarem, ouvem-se gritos alucinantes, vindo não se sabe de onde.
Lá, bem no meio das maçarocas, dois pequenos homens falam sobre o que está a acontecer «Nem a terra já chora. Que vai ser de nós e dos nossos, se tudo assim continuar?»
Enquanto um fala, outro olha para o Céu. «Como é possível o Sol ficar escuro por causa das nuvens vinda não sei donde?»
A conversa pára, olhando os dois – por debaixo da pala do boné que de tão gasta estar, sebenta se encontra – para algures, que nem sequer sabem para onde estão a olhar. No vazio das dúvidas assustam-se com o barulho do silêncio.
«Vamos é embora daqui, que alguma coisa vai acontecer!» Aconteceu mesmo. Do outro lado da extrema, uma nuvem baforada desceu demais para apoquentar tudo e todos. Como se de um raio se tratasse, num fósforo, a manada de carneiros derruiu para o chão, que nem uns desalmados. «C’um raio, que lhes aconteceu, meu Deus? Tão bem estavam e num raio d’um figo? ….”
Uma praga maldita por ali passou. De tal maneira endiabrada, que daqui, talvez a razão da quietude daquilo que não se ouvia. Como uma tempestade no deserto, vinda de não se sabe de onde para tudo na frente levar.
Com a aflição da seca e de tanto procurarem o que no afluente devia correr, nunca se lembraram que o gado a alguns dias não bebia água. «Até aquela maldita palha vinda do lado de lá de Espanha, parece que seca a boca aos bichos».
A engrenagem da maldita máquina que fazia o transporte do líquido da «outra parte» tinha estoirado por ter estado a trabalhar em seco. «Seco ficamos agora nós como secos já andam os nossos filhos».
«Raios partam esta vida que nem dá para vivermos com o pouco que a terra nos dá. Que vai ser de nós com esta seca e qual o futuro dos nossos cachopos? Maldita a hora em que me entreguei aos cuidados da amanha. Tivesse perdido o tino».
Bem pregava o queixoso. «Que disseste malvado, que de tão distraído estar a olhar para as nuvens, surdo fiquei!» Que lhe responder da sua pobre sina?
«Não disse nada companheiro. Apenas disse «raio de sorte a nossa!» para acrescentar «malfadada a hora que a minha mãe me pariu no meio da charneca. Se não o tivesse feito, talvez nunca soubesse o cheiro da terra. Agora sem a mesma não sei viver. Os tempos mudaram. Dantes era tratada por nós, agora é ela que nos trata».

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