Por: António Centeio
O dia está chuvoso e frio. A chuva incomoda-me. O frio quebra-me os ossos. Ando encolhido sem saber a razão. Olho para o Céu e vejo tudo escuro. O Vento teima em não dar forma certa de cair a chuva. Não sei o que fazer. Apenas sei que me apetece ir para a rua aproveitando o espaço livre pela falta de quem anda todos os dias na rua quando o Sol brilha.
Resido num andar situado no meio de uma longa avenida que me permite ver extensamente parte do que a rodeia ou dela faz parte. Às vezes até me deixa ver aquilo que não devo ver, porquanto na escuridão da noite, algumas janelas iluminadas no seu interior, permitem ver o que não espero e muito menos pretendo. É para mim, a melhor avenida da cidade, cujas noites de Verão me fazem calcorrear os longos passeios da mesma, quer para cima quer para baixo, quando no silêncio da noitada faço as minhas caminhadas.
Mas neste dia invernoso algo se apodera de mim e tenho que ir para a rua. Algo como um pressentimento que só a natureza nos sabe fazer sentir. Penso duas vezes o que devo fazer para ao mesmo tempo confessar a mim próprio, que no momento da decisão, detesto ter incertezas ou dúvidas, mesmo sabendo muitas vezes que estas duas coisas, para além de distintas, são na verdade, a solução do problema que me apoquenta.
Corro os cortinados, desligo a luz e visto o meu impermeável que me irá proteger de algum imprevisto. Levo também o meu chapéu-de-chuva e faço-me ao caminho. Começo a descer a Avenida, também conhecida como “Avenida doPatacão”. Das sacadas, pinga gotas de água grossa. Olho para esta ou aquela montra que no escuro embelezam o local com as mais variadas cores.
Como o dia está invernoso os carros circulam menos para o silêncio acompanhar-me com a possibilidade de elevar o meu pensamento para o desconhecido enquanto ouço a chuva a cair na calçada. Olho para uma ou outra montra mas o conteúdo comercial não prende a minha atenção por causa da época consumista que a sociedade atravessa.
Continuo a descer a artéria. Sem dar pelo tempo passado e pela distância percorrida começo a ouvir o rebentar das ondas. Estou próximo do mar. Entro na avenida lateral a que também chamam de “ Avenida da Praia”, talvez por esta dar acesso ao longo areal que no “período alto” atrai milhares de pessoas. Na minha frente vejo o mar, cuja água revoltosa me faz sentir como o mais pequeno grão de areia que não encontra lugar para se resguardar da fúria do Vento.
O furor do mar teima em galgar o paredão. Pouco falta para chegar ao asfalto. A chuva cai copiosamente por tudo que é sítio. As palmeiras situadas a meio da via fazem um ruído de arrepiar. Dobram-se mas não se quebram. Parece o fim do mundo. As depressões da estrada, com a água que vêm das nuvens, criam pequenos charcos de lama, tirando a visibilidade do asfalto. Não bastasse, até a claridade do dia se tornou numa escuridão. A chuva grossa teima em cair aos turbilhões do Céu.
Reparo então numa pequena figura que se encontra sentada em cima da relva que envolve as palmeiras espalhadas ao longo da alameda. Está dobrada com a cabeça entre as pernas. Aproximo-me desta pobre alma, olhando para o seu tronco. Quando me dobro para a chamar e ver a sua cara, um automóvel passa por cima de um lençol de água. Quase me encharca todo. Fico sem visibilidade alguma, tanta foi a quantidade de água que levei na cara e ainda por cima mal cheirosa.
Limpo a cara com o braço para de seguida abanar o corpo de quem desconheço. Levanta a cara e vejo um rosto feminino que de tão formoso ser encanta a minha alma. Quando a olho bem de frente assusto-me por causa dos seus olhos esbugalhados para de seguida me entristecer pela situação e local em que se encontra.
Como dois perversos, conversamos um pouco enquanto a chuva começa a encharcar-me por causa da posição e local. Por causa do Vento, pouco percebo do que me diz. Convido-a a sair de onde está. Aceita o meu convite e puxo-a pelo braço para baixo de uma varanda que se encontra no sentido oposto ao que estamos. Pergunto-lhe quem é e «porque está neste local num dia como este?». Não sabe justificar a razão. Apenas me pede que a leve para junto do filho. Explica-me onde se encontra. Logo informado do local, a sorte está do nosso lado. Um táxi passa neste momento. Faço-lhe sinal e dentro do mesmo seguimos imediatamente para onde a infeliz indica.
Um carro está enfeixado entre dois enormes pedregulhos que protegem o cais portuário. No seu interior, uma criança está presa no banco. Não apresenta sinais de ferimentos. O taxista aconselha a que se chame os bombeiros e autoridade visto que a jovem tem dificuldade em explicar-se, pedindo-nos apenas que «salvem o meu filho». A criança segue para o hospital e a mãe para o posto policial.
Poucas horas depois sei que a «criança está bem» segundo informação do hospital, como sua mãe está acusada de «causadora de um crime» já que pretendeu suicidar-se, tentando levar para o abismo, como companhia, o seu único filho.
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