quarta-feira, 28 de maio de 2008

Zacarias


Por: António Centeio

Homem de seus quarenta e poucos anos, sempre vestido de preto, expressão triste, faz-se acompanhar de um bengali. Passa os dias sentado num banco do jardim que confronta com a avenida, talvez a mais antiga da cidade. Entre o corpo e o braço um enorme calhamaço o acompanha sempre para que nos tempos livres puxe dos óculos, cujas lentes de tão grossas serem faz admirar quem para elas olha ou vê o taciturno cidadão na leitura.
Tardes e tardes debaixo da mesma árvore, esquecendo-se que está num sítio público, tal é a ânsia em ler aquilo que o escritor ou outro qualquer entendido escreveu. Dos poucos que tem acesso ao timbre da sua voz, sabem que não é um homem qualquer mas sim alguém com uma enorme cultura, porquanto as respostas que costuma dar todas elas são filosóficas.
Torna-se uma figura esquisita pela escuridão que o acompanha como na forma estranha de se vestir. Meses e meses com o mesmo tipo de roupa, que em abono da verdade, de suja não tem nada. Sempre limpa e bem vincada. Alguém deve tomar conta da mesma. Usa um perfume, cujo aroma indica que não deve ser qualquer mixórdia.
Todas as noites vagueia pelas ruas da cidade. O seu andar torna-se esquisito, por causa da sua forma de andar como pelas enormes passadas que dá, tornando difícil a quem tem o privilégio de o acompanhar, aguentar a sua pedalada.
Homem de poucas falas, mais ouvinte que pregador, as respostas são todas quase dadas em poesia ou frases tão invulgares, mas cheias de sabedoria que torna difícil a quem o quiser convencer de que aquilo que disse não é correcto. Contra argumenta com conjecturas que nos deixa sem fala.
Recita com suavidade a razão da lógica a quem se lhe oponha na contraposição dos factos. Sabe justificar que desde os primórdios sempre «houve e haverá o domínio da minoria sobre a maioria»; que o mestre «não escreveu mas outros transcreveram aquilo que ouviram»; que o homem «aceita o vulgo mas critica o conhecedor». Suaviza com parábolas as «dores daqueles que vivem de lamentos e crêem na fé quando na verdade lhes se ajusta a educação para socializarem-se na hipocrisia». A prova está: quando olham para ele, vendo no seu corpo aquilo que este recolhe e esconde, para o julgarem aquilo que não é mas que querem que seja. A sociedade é uma palhaçada. Vive de aparências quando deveria viver de realidade. Se Zacarias mandasse, obrigaria toda as pessoas a estudar filosofia.
As suas críticas tornam-se suaves para quem as ouve. Sabe comentar as razões dos responsáveis da edilidade sem nunca pronunciar o nome de quem quer que seja. Deixa a quem o ouve a duvida e o pensamento aberto para se entreter como num jogo de xadrez se por acaso se refere a fulano ou beltrano. Certo é que as suas teses não encontram discórdias de tão bem serem legitimadas. A ser juiz, seria tolerante, porque antes de condenar ou julgar vai ao cerne da causa e só depois de compreender a atitude de quem praticou o acto é que faz o julgamento, noticiando, então, a quem seu par ou ouvinte está a ser.
Só regressa a casa depois de ter percorrido as principais artérias da urbe. Nunca se deita antes das três da matina. Conhece os barulhos vindos dos lugares mais esquisitos como no silêncio da noite consegue ouvir rumores das conversas íntimas – que quem as diz, se esquece que no silêncio do escuro até o vibrar de uma corda de violino tem outro som. Conhece de ginjeira os vadios e os locais onde se trafica como dos que se escondem por debaixo dos degraus de escadas, dando o seu charrito.
Todos os conhecem mas ninguém o incomoda. Talvez por ser um homenzarrão que assusta todo aquele que se julgue musculoso. Zacarias é um homem pacífico e educado para além de ter uma cultura acima da média.
Se algum mais íntimo lhe pergunta a razão porque anda sempre vestido de preto, se não lhe faleceu, que se saiba, alguém próximo, responde com frases ditas de uma forma que até parece que está a ler as palavras que estão escarrapachadas no livro.
«Meu caro e ilustre amigo, à sua pergunta respondo-lhe citando o meu velho mestre – não diz o porquê do “mestre” ou quem o é – Steinbeck «É extraordinário a forma por que uma pequena cidade toma conta de si própria e de todas as suas unidades. Se casa homem e mulher, jovem ou criança, agir e se conduzir segundo um padrão conhecido e não ultrapassar as barreiras, e não quiser ser diferente dos outros, não fizer experiências novas e não adoecer e não puser em perigo a tranquilidade e a paz de espírito ou o fluir incessante e ininterrupto da cidade, essa unidade pode desaparecer e nunca mais se fala dela. Mas basta um homem abandonar os conceitos normais ou os padrões conhecidos e seguros, para os nervos dos cidadãos vibrarem de nervosismo e a comunicação percorrer todas as fibras nervosas da cidade. Nessa altura, casa unidade está em contacto com o todo» – Respondi-lhe de vosso agrado?»Se todos sabem, porque o vêem o assim vestido e poucos ouvem os seus discursos predilectos gravados na sua memória como os seus argumentos que raramente encontram oposição válida, porquê então lhe perguntar a razão do que é público? Quanto muito, Zacarias não é melhor nem pior do que todos nós.É apenas diferente.

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