terça-feira, 10 de junho de 2008

O livro da Vida


Por: António Centeio


O livro da vida será sempre um livro fechado. Nunca sabemos o que lá está escrito. Se pudéssemos saber não deixaríamos a vida pregar-nos partidas.
Quando menos esperamos, vai daí, mais um turbilhão. Uns para cima outros para baixo. O pior de todos é aquele que leva as pessoas para baixo e depois não se conseguem levantar. Os outros, mais tarde ou mais cedo levantar-se-ão para continuar o caminho. Alguns são bem tortuosos outros íngremes. Também há pessoas que os procuram; outros fogem deles a sete pés.
Existem pessoas que só se sentem bem quando estão metidos em sarilhos. Somos como somos. Devemos compreender e tolerar as decisões de cada um. Razão tinha o poeta quando disse que deveríamos «projectar a nossa vida apenas por dias. O tempo se encarregará do resto».
Abílio foi até aos trinta anos um homem exemplar. Bom marido, bom pai e um óptimo trabalhador. Era servente de pedreiro. Profissão que exige um enorme esforço físico para além de ter como companhia, o frio, a chuva e o calor. Quando vinha às sextas-feiras, depois de ganha a semana, o seu percurso tinha que sofrer um interregno no caminho das Fazendas. Os amigos faziam o mesmo. Ficava-lhe mal não se associar. Conversa daqui conversa dali, os petiscos eram sempre regados de copitos de tinto.
Quando chegava a casa, a mulher já sabia o que a esperava. Rádio aos altos gritos e toca a dançar em pleno quintal até as tantas da manhã. O filho, um petiz, quisesse ou não, tinha que assistir à festa que para não variar acabava sempre numa valente cena de pancada para quem não merecia e muitos menos para quem olhava e ouvia a linguagem usada. Nada podia fazer, senão também sobrava para ele.
Há pessoas que gostam de levar pancada, como viver na lamúria, em vez de procurarem melhores caminhos ou novas vidas.
A vizinhança dizia muitas vezes que «certas mulheres, quanto mais lhe batem mais gostam dos maridos». A Abelina era uma destas. Uma vez foi parar ao hospital com um braço partido. Como não tinha juízo poucos dias depois levou uma tal sova que as aduelas foram dentro. Nunca reclamava do que lhe acontecia.
A sua satisfação era quando o seu Abílio a levava a passear na motorizada até à Nazaré. Sentavam-se tardes inteiras a olhar para o mar. O filho só deixou de ir quando já não cabia no meio dos dois e os homens da brigada de trânsito teimaram em começar a passar umas multazinhas.
Perdoava-lhe e esquecia-se de tudo. O Abílio quando abria a boca o hálito cheirava mais mal que uma panela de feijocas estorradas. Anos e anos durou este calvário. Meteu na cabeça que devia ter uma amante e bem o fez.
Mais valia valentes cargas de porrada que o seu homem ter outra substituta para os tempos livres. Não bastava o que tinha que aturar quando o marido parava nas Fazendas quanto mais agora seguir caminho para junto da matrona. Se levava porrada começou a levar mais, não pelas bebedeiras que apanhava mas porque precisava de dinheiro e não o tinha.
O filho só exigia roupas de marca. Não estava para sofrer mais. Um dia lembrou-se de dizer que a sua «vida não era uma vida como a das outras pessoas». Agarrou nas malas e aí vai ela para junto de mãe, ali, para os lados de Rio Maior. Nunca o Abílio pensou ter uma surpresa destas.
Pena foi que o filho comesse pela tabela, sendo apanhado no meio da tempestade quando menos esperava. O pequeno sentiu o desabar de tudo. Porque lhe faltava o seu mundo foi desabafar para junto de quem nunca deveria ter ido. Hoje, vive de expedientes com os amigos para dormir debaixo dos vãos de escada que encontra pela cidade.
A prisão já lhe fez companhia algumas vezes. Como nunca conseguiu abrir o livro da sua vida, em vez de vir melhor quando saiu da prisão ainda veio pior. Sabe mais daquilo que nunca deveria saber.
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