Por: António Centeio
Desde que o marido faleceu, todos os dias vai à cidade dos mortos, aquela que tem ruas como a dos vivos. Seu filho, um pequenote aí para os seus quinze anos, faz-lhe companhia para ao mesmo tempo servir de confessionário. De tanto lá ir, certa vez viu uns homens podando os ramos das árvores. Os troncos choravam pela perda dos seus rebentos. Afiançou o pequenote que por aquelas «bandas só se houve choros e gemidos».
O marido ancião que foi era o mais respeitado no meio dos ciganos. Daqui, talvez, a viúva ser «tida em consideração» como poucas ciganas o são. Não vive opulenta em luxos mas no «suficiente como manda a praxe da etnia» em que foi criada.
Nas noites de luar em que todos se juntavam sentados nos “mochos” para ver o cair das estrelas ou a «carroça da sorte a andar na estrada da lua» o filhote ouvia, de quem já faleceu, que seu pai foi, as mais esquisitas lendas sobre a cidade de Coimbra. Coisa que nunca ninguém soube explicar a apetência pela cidade em que se sente nas manhãs frescas o orvalho vindo do Mondego. A falta de algo muito seu, tornou-o uma criança de sorriso triste como triste é o sorriso dos pequenos ciganos.
Afirmam os ciganos mais novos, aqueles que já sabem ler, que as fábulas então contadas por «quem já não está no rol dos vivos» vêm dos «tempos em que as mouras encantadas pernoitavam perto de Santa Clara». Verdade ou mentira é assim que a memória do passado faz o futuro.
O filho agarra-se à longa saia da mãe sempre que esta vai ao cemitério, talvez para que não se perca naquele emaranhado de ruas e ruelas que abafam quem foi gente em vida e que faz arrepios aos vivos que por lá circulam às horas mais estranhas do dia – alguns, escolhem para passeata os dias mais quentes da segunda estação do ano; aqueles dias em que o barulho do silêncio até assusta.
Depois da mãe ter feito as rezas que os antepassados ensinaram quando se está pisando a terra que calca quem deveria estar por cima dela, perguntava sempre a mesma cantilena: “quando me levas a Coimbra para ver a cidade que o pai tanto falava?”.
Tanta vez que o “cântaro foi à fonte” que a velha cigana abriu os cordões à bolsa para fazer a vontade ao cachopo que teimava em dar-lhe cabo da cabeça. Como a palavra é uma escritura, no dia apalavrado, a primeira coisa que fizeram foi comprar o respectivo bilhete que lhes permitiu seguir viagem para os lados da serra da Lousã
O miúdo nunca se tinha visto numa coisa assim e muito menos, andar de comboio. Todo ele estava eufórico. O suficiente para volta-não-volta um ou outro passageiro fosse acotovelado pelo estreante em viagens de comboios.
A viagem decorreu dentro da normalidade, salvo para a velha cigana. Tudo lhe indicava que se aproximava da cidade. Assim, fez «mal em tirar o bilhete para a viagem» porquanto o revisor não iria aparecer.
Ainda meditava no dinheiro gasto, como na ausência de quem nunca deveria andar por aquelas bandas – o cobrador – quando a porta separadora se abriu fazendo ao mesmo tempo um enorme estrondo.
O revisor, fraco de figura mas forte de voz, desempenhava a sua missão, como assim se obrigava, pedindo a cada passageiro que lhe mostrasse o que pouco antes tinha comprado. Quando chegou junto da cigana, pediu-lhe os bilhetes. Informou que faltava «apresentar o da criança».
Ouviu-lhe como resposta: «mostra o bilhete ao senhor cobrador!». A criança olhou para quem de direito. Ao abrir a boca para responder à mãe, esta adiantou-se-lhe, pregando para o homem encarregado dos vistos a seguinte frase: «Ai.... Senhor cobrador que o corno do miúdo comeu corno do bilhete do comboio!»
Foi uma risota para o revisor como para quem estava por perto. Com esta desculpa esfarrapada, todos ficaram a saber – o cobrador ainda mais – que a dita não tinha comprado o bilhete como sabiam que a parábola mais não era que uma desculpa esfarrapada. A viagem acabou na próxima estação. A cigana, mesmo assim, livrou-se de comprar o bilhete, acrescido dos emolumentos devidos e demais chatices.
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