terça-feira, 10 de junho de 2008

O homem do campo


Por: António Centeio

Os setenta anos de vida que já conta, praticamente foram todos passados no meio da terra. Desde que se lembra das coisas, toda a sua vida foi passada no amanho da terra. Foi da terra que obteve os rendimentos para sustentar a sua casa como os seus dois filhos. Já viu passar muitas vezes o despir e vestir de milhares de árvores. Teve anos em que a chuva ou a geada teimavam em lhe tirar os meios de sobrevivência mas nunca se amedrontou. Pouco se importou consigo próprio mas sim com quem dele dependia. Aprendeu bem cedo que a mãe natureza tanto tira como dá; funciona de uma forma que por mais que queiramos perceber nunca a entendemos. Teve anos maus que tinha de socorrer-se das magras economias para poder comprar as sementes e alimentação para o rancho da casa. Sempre assumiu os compromissos como nunca esmoreceu; sempre se levantou antes do cantar dos galos e sempre se deitou antes das galinhas dormirem. Tinha que dormir as horas que o corpo pedia caso contrário nunca conseguiria ter a tempo o proveito da terra que tinha sido apanhado no dia anterior para levá-lo para o mercado.
Um mercado diário na cidade onde todos os conheciam e onde todos confiavam naquilo que ele fazia produzir na terra. Nunca a sua boca reclamava do mau tempo ou da fraca produção que às vezes a terra teimava em não dar. Tinha aprendido bem cedo, porque lhe ensinaram, que a vida de agricultor é uma vida de escravo; bem cedo lhe disseram que «temos que poupar hoje para termos amanhã». Ensino e conselhos que guardou na sua memória para o tempo lhe demonstrar que era a melhor coisa que fazia levando-o então a nunca ter sido apanhado desprevenido. Agora dificuldades sempre as teve como qualquer pessoa. O que é preciso é ter capacidade e sabedoria para ultrapassar as partidas da vida. O maior receio que sempre teve, era quando, a água do rio teimava em subir as margens e destruía todas as plantações. Eram dias de aflição porque nunca sabia por quantos dias se manteria a cheia.
Não podia apanhar o que tinha plantado como não podia ir vender aquilo que lhe dava receitas. Nunca desanimava. Sempre soube que a vida de agricultor está sujeita aos caprichos da natureza.
Também aprendeu bem cedo que os homens do campo vivem do que a terra dá e que a pior coisa que podem fazer é ter que pedir dinheiro emprestado para o amanho da terra.
Aspecto de homem rude, olhar amargo, sempre cabisbaixo, pele toda enrugada, onde algumas rugas demonstram que os anos já lhe pesam. Tem os antebraços queimados pelo Sol. As suas mãos são escuras, de um encardido feito pelo amanho da terra cujas unhas estão pretas por a terra teimar em não sair delas. Algumas partidas, por causa dos dedos andarem sempre a mexer na terra escura. Quando as outras teimam em crescer usa logo o canivete para as cortar. Dos seus pés, um odor horrível. Não por falta de higiene, mas porque tanto no Inverno como no Verão usa botins de borracha que protegem a base do corpo do frio e da lama; que lhe faz companhia quando cava a terra que ele alimenta, mas cuja terra lhe serve de sustento; durante a época quente esconde-lhe os pés do pó da terra e das espetadelas de caules secos e bicudos ou da lama que teima em agarrar-se aos pés quando rega a terra que reclama por água quando está ressequida.
O domingo é o único dia que apenas avista a sua terra de longe, que lhe sente o cheiro, que ouve o seu chamamento mas que não lhe responde. É neste dia que de manhã vai ao templo falar com quem acredita e lhe deixa ver o nascer do Sol ou que lhe diz que em cada dia que vê o Pôr-do-Sol é mais um curto passo que dá para a morte. De tarde vai à taberna da esquina jogar algumas partidas de dominó para ao mesmo tempo saber do que aconteceu na região como ouvir as notícias da televisão. Do que ouve e vê fica a saber que outros homens com a sua profissão pedem subsídios e ajudas para a replantação daquilo que a natureza teima em não dar ou tirar. São nestes momentos que compreende – pelo que ouve – que, quem pede ajuda, mais parece doutores e engenheiros. «Parecem tudo menos homens do campo» costuma dizer para quem o quer ouvir – não deixa de ter uma certa razão – «agora já não existem agricultores ou homens do campo, existem sim: empresários, produtores disto e daquilo, proprietários de plantações ou de estufas».
Quando regressa a casa já com alguns copitos a mais que o leva a ver as coisas de outra maneira, faz todo o percurso a falar sozinho para as pedras da calçada. «Que raio de agricultores são estes que só pensam em pedir dinheiro emprestado por causas das intempéries? Que raio de homens do campo são estes que mais parecem homens da cidade. O seu aspecto mais parece mangas-de-alpaca que outra coisa!
Os tempos realmente mudaram. Até os homens já não são os mesmos» para depois continuar a dizer que «Desde que me lembro de ser gente, dos meus sete hectares de horta me sustento e sustento os meus, dei dois cursos superiores aos meus filhos, comprei um tractorzito para o amanho da terra porque o raio do cavalo já não podia com um gato pelo rabo, por tão velho ser e estes doutores em vez de se preocuparem com o amanho da terra só pensam em pedir subsídios para isto e para aquilo». Rijo como um carvalho, já começa a ter dúvidas da sua sanidade mental. Não sabe se é ele que tem razão ou se os outros são espertos demais.

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