sexta-feira, 28 de agosto de 2009

(Romance) "Beatriz, Filha Ingrata", de António Centeio


Beatriz, filha ingrata
1

Sempre gostei da estação que medeia o vestir das árvores e o cair das folhas, mas essencialmente, dos dias, em que, depois de passadas as horas que o Céu fica raiado de cores de fogo. È o momento mais sublime para mim porque vejo as luzes fuscas da aldeia apagando-se uma a uma. O que resta da noite faz com que o dia que se aproxima fique mais ameno. Sinto o vento, vindo do negro claro iluminado por uma nuvem cintilante a dar-me a felicidade do raiar do dia
É neste momento que começo o alvorecer, varrendo o passeio, para depois com o regador, borrifar as pequenas pedras quadradas, sujas de tanto as calcorrearem, para de seguida me encostar ao portão. Uma actividade que me dá um enorme prazer e faz com que aproveite o sossego da madrugada para ver o Céu recebendo a bola do fogo e os passarinhos a deixarem os ramos das árvores do meu quintal, onde pernoitaram, tendo os seus poisos em alguns tenros galhos.
Nunca soube a razão da escolha, mas algum motivo deve haver. Talvez pela leveza que os mesmos dão a quem os usa. Já meu pai levava as manhãs vendo todo o movimento da passarada para encontrar o entendimento dos animais e das coisas. Uma vida inteira e centenas de horas perdidas para nada descobrir. Como eu, apenas deduções ou mistérios inexplicáveis.
Lá longe, aqui e acolá, algumas estrelas afastam-se fazendo com que o dia deixe de ter quem fez companhia à noite.
Ouço, lá longe, o padeiro, buzinando o carro para anunciar a chegada de pão fresco. Mais acima, vultos saem para levar para casa o que acaba de chegar.
As primeiras criaturas que vejo, são mulheres que vão em direcção do mercado a fim de comprar hortaliça fresca, que antes da noite, foram apanhadas por mãos calejadas do frio e da chuva, algumas de tão gretadas estarem, mais parecem as fissuras da terra quando ávida de água. Uma água que nos dias mais quentes se torna tão áspera para quem a bebe, de tão suar por apanhar o que a terra dá.
Cumprimento-as quase todas, porque a nossa aldeia, pouco mais tem que duas centenas de almas. Umas vão numa correria em direcção ao que procuram, outras com mais vagar. Com estas últimas, levo os princípios da manhã na cavaqueira.
É por seu intermédio que sei as desgraças do dia anterior ou de alguma coisa recente, como o acontecido com a Alice.
Em tempos foi para o Barlavento em busca de melhores dias levando consigo o desajeitado do filho que já dava sinais de não bater bem da cabeça ou de no futuro ser uma apoquentação para quem cuidasse dele.
Cresceu na borda da praia, onde a Alice tem um pequeno bar. Bem cedo começou a ser desinquieto, parecendo uma enguia. Mais lhe ralhassem, pior fazia. Em vez de ajudar a pobre mãe, levava os dias caminhando na praia surripiando a este ou àquele o que lhe viesse parar à mão. Tantas fez, que para vergonha de quem o deu à luz, foi parar com os costados à prisão de Leiria. Uma tal desonra para a mãe, que nunca mais apareceu no lugarejo. Se não são estas notícias, outras existem, vindas de quem leva os dias com o tronco dobrado.
Começa a descer quem procura a labuta do ganha-pão. Uns de motorizadas, outros de bicicletas assentes no selim de sola e com os pés em descanso nos pedais. Na escora traseira, uma pequena lancheira que protege o que almoço há-de ser.
Pouco depois, mulheres com trajes de camponesas, de pele ressequida pela apanha do tomate, caminham em passo acelerado. Quase todas, trazem uma redilha de um velho pano, enrolado de tal forma, que a faz como um amaciador entre a cabeça e a cesta, que leva no seu interior todos os temperos necessários para que o almoço, antes da cesta, seja cozido no campo, depois de acesa o fogo pela rapariga mais nova do rancho.
Ainda não passam duas horas depois do Sol nascer, camionetas já descem a rua para recolher o que apanhado já foi por quem antes partiu.
O relógio da matriz bate nove badaladas. São horas de regressar ao meu pequeno jardim e preparar o almoço da minha filha. Uma mandriona que se enrosca debaixo dos lençóis, quando cá fora tudo começa a arder com o calor. Já eu durmo e ela continua acordada. Nunca soube a razão de se deitar tão tarde. Até parece que o relógio dela trabalha ao contrário dos outros. Dias, que quando se levanta, já o Sol está a meio do Céu.
Depois da obrigação matinal, volto ao meu pequeno quintal, onde de tudo, um pouco tenho. Muito meu é o jardim que ornamenta todo o espaço que cerceia o interior da minha casa. Canteiros de hortenses, roseiras, malmequeres e algumas geriberas. Com o regador que me acompanhou, após a levanta, dou de beber a quem vai sentir brevemente o calor do dia.
Regalo-me com o cheiro da terra quando recebe nas suas entranhas aquilo que a vai refrescar o resto do dia. Um cheiro muito característico que me entra pelas narinas mas cujo peso um dia cairá sobre o meu corpo. Ao despejar aquilo que saiu da torneira, e enquanto não encho a lata, na morte muito penso. São momentos muito meus que numa centésima de tempo me faz recordar todo o meu passado como o sofrimento que já passou pelo meu frágil corpo que segura não sei o quê. Só não sei quando tudo terminará. Se soubesse que a vida é cheia de partidas, nunca mais regaria o castanho que me segura para que nos envolvêssemos numa misturas de moléculas.
Já o relógio caminha para a dúzia de horas, quando regresso à cozinha para iniciar as minhas obrigações domésticas. Nem sempre o pai da minha filha, que meu marido foi, está para almoçar connosco. A profissão de agente da autoridade, que escolheu para o sustento da família e garantia da sua sobrevivência, rouba-lhe o tempo livre para dedicar àquilo a que na aldeia se chama de “serões de família”. Do muito tempo livre que têm, passa-o todo no amanho da terra.
Faz-me companhia, quando faz, a Beatriz, minha única filha, que tanto amei mas que o destino se encarregou, de fazer da minha vida, um vale de sofrimento.
Talvez os dias grandes do ano sejam o sustento e a razão de viver. Sempre amargurada que nem força às vezes tenho para chorar. Daqui, talvez, a razão porque não gosto dos dias em que as árvores teimam em florir, tornando para mim os dias monótonos ao ponto de, nem paciência ter de ver os pequenos rebentos que embirram de uma forma tão subtil, em crescer nos troncos, alguns mais velhos do que eu, tanto que não me lembro das suas formas, quando criança.
Mais tarde, quando os frutos rebentam é que me apercebo que o tempo passou sem dar por ele. Nas noites de luar, olho para a lua e vejo que muitas já passaram por mim, ou eu por elas mas que outras tantas já não veremos passar. Mirro-me de pensar que um dia a terra me irá comer. Talvez, não por mim, mas por quem depende de mim.
No cair da folha, os dias quase todos os passo dentro de casa. Os meus nervos andam sempre à flor da pele, porque as folhas caiem em catadupa no meu quintal, levando as finais de tardes varrendo o que o Vento teima em deitar abaixo. A terra fica suja e húmida pelos dias frios e chuvosos que se aproximam. Até a parede que me separa da vizinha, começa a ficar marcada de um verde pegajoso. Alguns caracóis teimam em subir a parede. Nunca soube de onde vêm e para onde vão. Vale-me a vassoura que a escancaro contra a parede, que de branco é no Verão. Bichos, cheios de um ranho qualquer, que dias inteiros levam para subir poucos centímetros. As minhas flores, que tanto estimei, pouco tempo antes, parecem almas depenadas por causa do siroco. Os agoiros das corujas que vêm do lado do cemitério, que faz extrema com o fundo do meu quintal, incomoda-me de tal forma que às vezes até julgo que não chegarei ao dia seguinte.
Em criança, dizia-me a velha Rosa, que na terceira estação, tudo caminha para o declínio. Três meses em que os anjos da morte apoquentam os mais indefesos como chamam aqueles que julgam ter todo o tempo do mundo. Seja verdade ou mentira, é a estação que mais detesto.
Não bastasse, a seguinte congela-me toda por dentro. A chuva e o frio fazem com que ande toda encolhida. Não tenho vontade para nada e muito menos para ver o quer que seja. Até a sineta do velho cemitério, que teima em não sair de onde está, faz-me ter arrepios. Sempre que a ouço tocar, sei logo que algum defunto se está a aproximar da terra da verdade. Se não sei quem é, também não me preocupo em perguntar. São alturas da minha vida que me separo de tudo e de todos, até da Beatriz.
Coisa que pouco se importa, porque assim sempre pode ir para onde quiser como estar com quem lhe apeteça. Desde que me apareça à noite para jantar e de seguida me fazer companhia, é-me indiferente com quem e onde anda. Mais do que nunca, quero sossego para que tenha um pouco de equilíbrio na minha vida. Algo, que há um tempo a esta parte me tem vindo a faltar.
Fui criada no ambiente rural. Meu pai tinha um bocado de terra, talvez um hectare, nas traseiras do casario. Tinha a sua pequena horta, composta por pequenas plantações de couves, feijão-verde, batatas, tomates, nabos, alfaces e outros produtos que dava para nosso sustento. Lembro-me, desde que sou gente, do cheiro da terra; ver os homens a cavá-la; ir para as adegas da vizinhança e de ver o descamisar do milho.
Na minha adolescência, senti a falta de carinho e atenção de meu pai. Casado pela segunda vez com uma mulher que me fez a vida num inferno mais aos meus cinco irmãos, filhos da minha falecida mãe, para dar tudo aos três filhos de meu pai, tudo me foi negado como confiscado. Só comia as sobras de seus filhos como apanhava a pancada que aos outros devia ser dada.
Reconheço, que de todos os meus irmãos, era eu que tinha o pior feitio; refilona, desordeira e intriguista, defeitos que usava quando descobri que de outra maneira não conseguia os meus objectivos. Para agravar a situação, tinha uma voz grosseirona que se ouvia a léguas de distância
Vivi quase duas décadas, num ambiente familiar, em que tudo era permitido aos seus filhos e tudo retirado a mim e aos meus. Nunca havia uma sobra de malga de pão, para muitas vezes, levar bem assente nas costas o peso do fueiro, que servia de tranca à velha porta da cozinha que dava entrada para a casa toda.
Uma casa situada na esquina de duas ruas, que para se lhe ter acesso, tinha-se que subir um pequeno carreiro de terra batida com meia dúzia de metros de comprimento, por estar mais alta e desviada do que o piso da estrada, cerca de um metro; um ajustado pátio frontal à habitação, com algumas árvores e sempre cheio de erva, que nas noites em que caía o negrão da geada ficava toda branca. Calçava as sandálias, porque era o tipo de calçado que usávamos, por ser o mais barato, para depois andar a escorregar pela maciez da humidade.
Composta de dois quartos no rés-do-chão e três no piso seguinte. No último piso, que era o sótão, servia de quarto para a canalha. Lá tínhamos as nossas camas que mais parecia a caserna de um quartel da tropa. A casa de banho, era na rua, que nos impedia a nós crianças, de evitarmos a sua utilização durante as noites, porque antes de dormirmos os meus irmãos adoravam contar histórias de bruxarias. O medo tomava conta de nós, impedindo que viéssemos cá abaixo. A melhor lembrança que tenho desta casa é da lareira que existia na cozinha. Era nela que a minha madrasta fazia todas as refeições. Nos dias de Inverno quando podíamos ficar mais um pouco na cama, o aroma do café subia pelas gretas do soalho e entranhava-se em tudo que era o sítio. Ainda hoje quando mexo em grão de café, me lembro da minha infância.
Nunca faltou nada na nossa casa. Meu pai, tinha a profissão de ferreiro e como único da aldeia, dava-se ao luxo de cobrar, quem de seus serviços necessitasse, valores elevados para a época. Como não havia opção para quem precisava, logo tinha que se sujeitar ao método, mesmo que não fosse permitido, de “pagamento à cabeça”. Pena que esta abundância não fosse distribuída equitativamente ou que meu pai fosse mais justo.
De meu pai, lembro do seu cabelo grisalho e liso. Poucas vezes o fiz, mas sempre que podia, adorava passar as minhas mãos pelos seus cabelos que mais pareciam feitos de seda, tal era a sua maciez. Recordo-me de quando faleceu; dentro da urna o seu cabelo parecia fios de prata. Agitavam-se com o vento suave que fazia no momento do enterramento. Apeteceu-me tirar alguns para recordação paternal. Ainda hoje pergunto a mim própria por qual a razão que aquilo que mais gostámos se perde no tempo. Resta-me muito poucas lembranças. Que me lembre, da minha infância, uma, faço questão de não esquecer.


*
Das brumas do meu subconsciente, na delonga de um passado que não voltará, vem-me a lembrança daquilo que não quero deixar de esquecer: a cozinha de minha avó materna como dos serões que lá passávamos, sempre que neles, por obrigação familiar, tinha que participar. Eu era um elo de presença de alguém que já não existia.
Não sei o intuito da mente mas apenas tenho a certeza de que é a única memória que relembro, quando outras gostaria de relembrar para que nada fosse esquecido. Mas, é algo de complicado que não sei explicar.
Uma cozinha térrea com apenas uma divisão e as paredes caiadas de amarelo. Nem grande nem pequena. Encaixada numa parede estava a lareira alisada com o chão; na que desembocava no bocal chaminé, em forma de pirâmide, uma longa mas estreita tábua, tendo ao comprido vários camarões arredondados, que espetados na madeira, mais não serviam do que para segurar as panelas e os tachos com conchas que pareciam meia bola cortada ao meio; na outra, um altíssimo armário com várias divisões. Nestas. Estavam toda a quantidade e qualidade de louça e os mais variados apetrechos; entre a chaminé e a parede que fazia extrema para o quintal, um lavatório esquisito como estrambólica era a maneira de meter a louça a escorrer, depois de lavada.
No meio da chaminé, estava sempre acesa a lareira com uma rectangular trempe e em cima desta uma panela toda mascarrada por fora, de tanto ser usada, para a seu lado estar um grande tacho que todos os dias servia para fazer as refeições da família como na véspera dos Natais se fritarem os felozes com a presença de todos que estivessem em casa; quase encostada a um dos cantos, que sempre me recordo de a ver ali, uma cafeteira que guardava lá dentro o melhor café que bebi até hoje.
Entre os bancos de quem cozinhava, a minha avó e a braseira, lugar estava reservado para a “Barbuda”. Uma gata que levava sempre o Inverno a dormir como eu levava horas inteiras a passar com a minha mão pelos seus pelos, que de tão macio serem, sempre que não havia ninguém na cozinha, deitava-me no chão para poisar a minha cabeça em cima da sua seda, coisa que não a incomodava e que a mim me dava um enorme prazer.
Como sorrio quando recapitulo na memória do tempo as noites em que minha avó, alvoraçada para que nada faltasse no dia de Natal, andava de um lado para o outro, ora, tirando a massa do alguidar vidrado para a meter numa grande panela onde estava o azeite sempre a ferver para pouco depois saírem os felozes prontos a serem comidos, após enxofrados de açúcar e canela; ora para ao mesmo tempo bater a massa num outro alguidar que ainda nessa mesma noite tinha que ser cozido no forno que existia no quintal.
Eu e meus primos dávamos cabo da cabeça da anciã porque andávamos agarrados ao seu avental, pedindo-lhe que metesse bocadinhos de massa a fritar, de maneira que ficassem como borlotas para depois as comermos, já que os fritos apenas podiam começar a ser comidos no dia em que nós, crianças, bem cedo acordávamos para recebermos as prendas que o Pai Natal tinha deixado na chaminé.
Era a única noite em que os ponteiros do relógio não andavam para os mais pequenos. Logo acordado o primeiro, cabia a este despertar os outros para que todos juntos fossemos numa correria direitos à cozinha a fim de tirarmos os nossos brinquedos que lá tinham sido colocados de propósito pelo homem de barbas que desceu pela chaminé sem nós sabermos como conseguia fazer.
Para que não houvesse confusões e soubéssemos a quem se destinava os brinquedos, estava um sapato de cada um de nós a identificar o que lhe pertencia, ou seja: em cada,
Começava o alvoroço. Minha avó e restante família começavam a chegar até à cozinha para fazerem da mesa um espaço cerimonial para que o dia fosse confraternizado em ambiente propicio mas na simplicidade da pureza que é o Natal de uma família rural e de poucas posses.
Uma grande chávena com leite e café era servido para em cima da mesa estar uma travessa cheia de felozes. Podíamos nos saciar até não poder mais
O dia era passado na galhofa como num ambiente aconchegado, visto que raramente saímos de lá de dentro, excepto para fazer alguma necessidade. Aliás, o frio que fazia na rua, levava-nos a tiritar de frio. Não havia necessidade de virmos para o quintal brincar, porque um dos cantos da cozinha estava reservado para a criançada que de tempos a tempos tinham que ser repreendidos pela algazarra que fazia derivada à excitação de termos brinquedos novos.
Os adultos falavam de tudo e mais alguma coisa como recordavam as suas meninices, fazendo com que, enquanto brincávamos, tomássemos atenção ao que os graúdos falavam para mais tarde contarmos aquilo que agora conto.
A mãe de minha mãe era uma mulher esguia. Os seus cabelos brancos, talvez recordações do passado, andavam sempre tapados com um lenço de seda, cheio de floridos com folhas cinzentas e verdes, uma ou outra madeixa que nas tardes solarengas teimavam em sair debaixo do pano brilhavam como prata virgem fosse. Guardo bem na minha memória a beleza dos seus cabelos. Quando neles mexia, minha mão sentia como um agasalho de veludo me aconchegasse
A vida nunca lhe sorriu mas exigiu-lhe esforços e privações que fizerem dela uma mulher que todos admirávamos e respeitávamos. Nunca dobrou e muito menos quebrou às vicissitudes da vida que teimava em lhe tirar o pouco que tinha, como do herdado de quem quase nada tinha mas que conseguiu assegurar um melhor futuro. Uma mulher linda com uma pele queimada por um sol despiedoso que lhe abrasava o corpo, quando na terra amanhava o sustento da família. Bem cedo ficou viuva como aceitou as contrariedades do destino para passar o resto dos anos a trabalhar para que nada faltasse aos filhos que nunca souberam o que foi o amor e a presença de um pai.
Levantava-se de madrugada, para aparelhar o cavalo à carroça e com os apetrechos do campo, seguir a caminho da fazenda para que dela tirasse o melhor mais tarde. Nunca teve medo de nada nem de ninguém. Os homens respeitavam-na como receavam a sua companhia quando junto dela tinham que cavar a terra que brotava raízes secas para que não destruíssem as videiras alinhadas em longas filas que se perdiam de vista mas quem eram um mimo de tão bem tratadas estarem. A sua vontade de querer já significava meio caminho andado para ir e manter aquilo que era a sua sobrevivência como de quem dela dependia.
Foram os anos que teimavam em passar por ela, ou ela pelos anos, que aos poucos a envelheceram, fazendo com que o seu corpo se inclinasse e as forças lhe fosse faltando. Só quando uma doença esquisita entrou no seu corpo é que cedeu ao calor dos lençóis que teimavam em fazer peso ao seu frágil corpo, de tão raquítico estar, mais parecia ser de pele e ossos. O maldito bicho devorou-a em pouco tempo.
Morreu na hora em que se costumava levantar para ir para o campo. Um manto de nevoeiro pairava no céu quando a morte a chamou. Neste momento, quem estava por perto, acordou com o alvoroço dos galináceos e pelos coices que o cavalo dava na parede como os urros que fazia, deixando-lhe a boca cheia de uma estranha espuma branca. Se pudesse falar, talvez dissesse aos racionais, que o manto que por ali teimava em poisar mais não era do que o fim de tudo.
Muitos anos, depois de morrer, ainda costumava visitar a sua campa, mas o tempo despertou-me o ensinamento de uma frase que nunca esqueci, escrita por alguém a quem a sabedoria mostrou que o tempo é o melhor mestre «há muito tempo que nada da minha avó existe na campa da minha avó. Existiu um corpo e um frio ali – na campa – mas depois o corpo desapareceu, por rotação dos restos. Hoje, é uma ficção. Aquele sítio é apenas o sítio do último sítio».
Minha avó relembrava nestes serões que a união da família é o bem mais precioso que existe ao cimo da terra. Para que nada fosse esquecido, velhas histórias vindas de antepassados eram ditas de uma forma brilhante e claras como a simplicidade de quem as dizia. Contava o passado de gerações desaparecidas há dezenas de anos como os seus representantes ainda ontem estivessem vivos.
*
Valeu-me o interesse do senhor Benjamim Miraflores que sabendo da minha triste sina e amargura, pediu a meu pai que autorizasse os meus préstimos serviços na sua casa. Aceite que foi, dias depois, estava a caminho das Lapas.
Uma aldeola adjacente à cidade mais encantadora que conheci até hoje. Becos compridos que desembocam em ruelas estreitas cheios de características muitos especiais; caminhos intricados e estreitos, ruas e ruazinhas, largos e praças com escadas, degraus que nos levam a caminhos de sonho e onde o Sol esgravata o chão para poder entrar.
Aqui, pequenos vasos de flores bem cheirosos e deslumbrantes onde algumas hortenses com o seu azul garrido caracterizam as subidas íngremes e sinuosas dos becos que mais parecem estrelas caídas do céu; ali pequenos estendais onde o cheiro aprazível das roupas e cores garridas deslumbram quem no meio delas passa; acolá, vistas deslumbrantes que nos encandeiam quanto pelos seus labirintos andamos; de vez em quando vê-se uma mulher de tronco curvado, de bacia de esmalte azul claro, cheio de água para regar as flores. Se quem se aproxima não é íntimo, logo se recolhe, a fim de pouco depois, se abeirar no postigo para saber a que distância vai o sujeito. Se uma mulher caminha e outra mais nova a acompanham, logo parece que a segunda é filha da primeira. Longe da vista e do barulho, palmilha as pedras de seixo que pisa para poucos passos depois entrar na mercearia do vizinho Basílio, de forma que a informe quem serão e donde virão, pois, da banda, não tem poiso «logo deverão ser turistas em busca daquilo que é nosso». Sossega então a curiosidade para a bacia trazer.
No adro da igreja, muitas tardes aqui passei. Quando chegava, antes que tudo, uma mão tinha que espalmar no velho pelourinho – quantas histórias e sacrifícios não terá para contar dos que ameaçados foram, ou pendurados? Um local místico que produz o efeito de “os vivos andarem por baixo dos mortos” já que segundo o velho dito popular, “sob as casas e a igreja onde antigamente perto dela se faziam enterramentos, desenvolve-se uma extensa e intricada rede de grutas”.
Seguia depois para baixo da centenária Aroeira onde alguns ramos teimam despegar-se de quem os criou e sustentou no passar dos anos, para aos poucos me chegar junto do muro que me separava da baixeza.
Olhava, não sei para onde, mas sabendo que do meu lado direito, a velha palmeira assombrava o caminho dos meus olhos; lá longe, mas bem perto de mim, uma velha chaminé que em tempo deveria ter saído do seu redondo muito fumo, após queimado o fruto da figueira, nutrimento este que foi sustento de famílias poderosas com alguns enredos escondidos como nas redondezas os burgueses se recolhiam da confusão citadina.
Muitas vezes ouvi contar a história da família Bizâncio que enriqueceram à custa da burla mais famosa no século XX, Um plano que colocou nas mãos de quem o criou uma máquina que fazia notas verdadeiras e legais mas com a diferença de mais não serem um duplicado das que já circulavam no circuito financeiro. Diziam os mais velhotes, que o Bizâncio – na altura, único possuidor de uma carroça – era o transportador autorizado das encomendas recebidas ou enviadas na estação dos comboios do Entroncamento.
Um belo dia, quando regressava a casa com mais uma carregamento, de pesadas caixas de madeira, uma delas caiu para o chão em virtude da besta se ter assustado com o saltitar de um sapo que se lhe atravessou na frente.
Quando Bizâncio a foi apanhar, reparou que se tinha partido uma das tampas laterais. Olhou lá para dentro a fim de saber o que transportava. Qual não foi o seu espanto quando viu milhares e milhares de notas. Pasmado com o achado logo disse para si: «se esta caixa está cheia de dinheiro as outras também estarão!». Não contou nada a ninguém esperando que alguma reclamação. Como ninguém se queixou, nos seguintes percursos e sempre que havia transportes do género, o velho moço de recados abotoava-se com um caixote dos muitos tantos que trazia, para o juntar ao que já tinha em casa.
Não foi preciso muito tempo para que tudo começasse a mudar na família. Poucos anos passados já os melhores terrenos das Lapas eram do Bizâncio. Quando morreu, os descendentes receberam uma fortuna colossal que ainda hoje se mantêm.

*
Neste recinto de crença, debaixo da corcumida árvore, muitas tardes passei na companhia da solidão onde apenas ouvia o barulho do silêncio. Perdida no tempo, escondida que estava na sombra que assentava sobre mim, lembrava-me do passado, para no meio da ponte da vida, olhar para o futuro quando nem capaz era de estar no presente. O tempo deixava de existir como tudo parava. Não sabia se estava ali ou noutra qualquer parte do mundo – também pouco me importava.
Afinal a minha vida começou agoirada como uma coruja quando vai em busca de alimento nas campas do cemitério. Perdia-me aqui no tempo, sonhando que uma fada me aparecesse para me dizer que um dia a estrela da sorte me bateria à porta quando menos esperasse. Com pancadas suaves e encantadas de prazeres. Quando a ouvisse os seus toques, da mesa me levantaria convidando-a a sentar-se junto de mim para que com a sua varinha mágica tudo se transformasse.
Assombros e figuras esguias, brancas e gélidas serviam-me de companhia, assuntando-me com as almas perdidas que passeavam nas proximidades da catacumba que quase por debaixo de mim estava. Ouvia gritos vindos de não sei onde. Por mais que me sentasse no esquivado muro olhando para o horizonte, onde o céu tocava no chiste da montanha, mais perdida me sentia.
Nos momentos de lembranças do passado apetecia-me mudar a natureza, voltando depois a nascer com outra personalidade, mas sem morrer, porque poderia perder os momentos sublimes do local onde estava e, só aqui, os podia receber. Aqui, aprendi que não sei o que desejo do futuro mas antes o que poderei esperar dele.
Nas noites de Verão, muitas vezes me levantei de noite, pela calada, para em passos silenciosos subir a viela, que encurtava o caminho, para depressa, como uma salteadora, chegar ao poiso a fim de olhar para o Céu e deste esperar a chegada de alguma estrela. Luzes grandes e pequenas que me levava a esticar com mão de gigante para que delas apanhasse a que fosse minha. Tão perto de mim para estarem tão longe.
Nesta distância sentia a minha pequenez perante a grandeza do mundo. Não passo de uma minúsculo grão de areia perdido algures no meio, ou numa ponta, de algo que nunca saberei, mas talvez trazido pelas areias de um vento desértico desconhecido que muito senti a sua aspereza no meu franzino corpo resguardado por uma pele seca e áspera como o siroco.
A vida não deveria ter o direito de estragar o que de melhor pode acontecer a um ser, mesmo que tenha que sofrer a vida toda por algo em que acredita ou sonha. Nestas noites de peregrinação, algumas eram cheias de emoção.
Lágrimas me correram pela face da minha cara, porque me assustava com as lembranças do passado para me encolher com receio do futuro. Bem a minha intuição – que nunca a vi mas que a sentia – me avisou de que a escuridão teria como companhia, sabendo de antemão na minha ignorância que depois da noite vem sempre um novo dia.
De tempos a tempos via uma se despregar da escuridão caindo não sei onde. Movimentos imperceptíveis levados para outras bandas, menos aquela onde queria. Nestas noites de luar só tinha incertezas porque a única certeza que tinha é que começava a duvidar daquilo em que acreditava para toda a minha vida.
Foi quando ouvi o pastor da Lua Cheia dizer «que às vezes para encontrarmos a caminho certo temos que andar por caminhos errados» De pouco valia as minhas fugas que me condiziam às curvas ou círculos, no meio do emaranhado que eram as ruas e ruazinhas de onde estava como as calcorria, quando todos pensavam que a noite me protegia.
Momentos solitários e de solidão interior que jamais esquecerei no tempo intermédio, cheios de duvidas daquilo que me separei ou do que possa esperar do futuro mesmo que sonhe num presente intermédio que não me leva a lugar nenhum

*

Nas tardes, só de lá saía quando o amarelo diminuía no horizonte, onde a bola de fogo parecia tão pequenina para ao mesmo tempo aparentar estar tão perto. Ficava com a sensação, de onde estava, até onde tudo acabava, apenas centenas de metros nos separava. Como por magia, em poucos minutos tudo terminava. O dia findava e a noite começava. Local maravilhoso que me deu momentos únicos e sublimes. Talvez seja este sítio, o único no mundo que se transforma numa das sete maravilhas da Terra quando o Sol desaparece.
Uma vivenda senhorial, como senhores eram os seus donos, que só lá podia entrar quem fosse de confiança. Um interior luxuoso, desconhecido de toda a vizinhança, que guardava dentro das suas paredes, quadros valiosos. Muitos anos passaram, quando soube por via das partilhas, que nas paredes que tantas vezes limpei o pó, estava uma fortuna incalculável pendurada.
Situada na margem direita do rio que contorna as Lapas, ao longo da rua que lhe faz frente, entre o rio e a habitação, plátanos de meio século – ou para lá caminhando, que criam um ambiente calmo e tranquilo, onde a água e as sombras permitem um contacto directo com a natureza. Do lado oposto do rio, todos os anos no fim da Primavera, a terra de campo, enche-se de amarelo e branco dos malmequeres e do vermelho das papoilas.
Um casarão descomunal. Uma enorme cave que serve de suporte ao rés-do-chão, com imensas divisões, para em cima destas, assentar outro piso, acabando o edifício com um enorme sótão que serve para tudo e mais alguma coisa. A um dos cantos, improvisado com tábuas de pinho, encontra-se três pequenos compartimentos que eram os quartos das serviçais. Na parte traseira, cerca de cinquentas árvores – laranjeiras, limoeiros, macieiras, pereiras, ameixieiras e alguns marmeleiros, tendo a meio um poço com água suficiente para regar tudo que neste bocado de terra existia.
Um poço que nas noites de Verão, para fugir dos males que me atacavam por todos os lados surgidos de caminhos ou canaviais desconhecidos, me sentava na borda ouvindo o coaxar das rãs. Outras verduras existiam, plantadas em pequenos canteiros, conforme a época do ano. Ao fundo da horta, como lhe chamavam, um barracão com várias instalações, todas divididas com rede de arame, onde se criava para sustento da casa, galinhas, coelhos, pombos e algumas cabras.
Eram uns senhores sempre preocupados com os mais carenciados, salvo para os empregados que eram explorados até não poder mais. Livrei-me da opressão para cair na exploração.
Mesmo assim, fez-me bem os poucos anos que lá estive. Aprendi os bons princípios como as boas maneiras. Foi nesta casa que descobri que todos somos iguais mas que não temos os mesmos direitos.
Aqui, me tornei mulher, para saber compreender e aceitar o futuro. Um destino talvez um pouco sombrio, mas consequência da busca da liberdade e de querer ter a minha família. Uma ilusão, mas só a experiência da vida nos ensina que nem tudo é como queremos. Às vezes penso se somos nós que mandamos na vida ou se é a vida que manda em nós.
Um enredo que ainda hoje estou por descobrir. A única coisa que os meus patrões permitia, e às minhas colegas, era a folga das tardes dos sábados e dos domingos. Podíamos ir para onde quiséssemos e andar com quem nos apetecesse. Pouco lhes importava. Para nós, era o melhor do mundo, porque tínhamos a chave da porta que nos permitia entrar nos nossos quartos sem incomodar quem quer que fosse.
Nos fins-de-semana, íamos na camioneta da carreira conduzida pelo Jeremias, a todos os lugarejos das proximidades, ficando assim a conhecer o pouco do muito que me faltava. Foi numa destas viagens, que eu mais a Mariana, minha colega fui aos festejos da Senhora da Encarnação, para os lados da encosta da Serra de Mira.
Nas noites de nostalgia ou nos momentos em que via os senhores a dar atenção aos seus
dois filhos me apercebi, que não sabia o que é ter e fazer parte de uma família no sentido lato da palavra.
Meu pai nunca me soube dar uma ternura ou um mimo. Frieza era o que existia em quem me criou, mandado que era, por quem, dele fazia de esposa, descarregando no meu corpo valentes cargas de cachaporra pelo ódio que nos tinha. Desconhecia por completo, até ir para a casa da família mais importante das Lapas, o que era uma boa refeição como os acepipes que a acompanham, mas aprendi aquilo que eles sabiam. Coisa que mais tarde me fez bastante jeito, desperdiçando, quem eu sempre desejei ensinar.
De tempos a tempos ia passar um domingo com meu pai e irmãos. Contava-lhes tudo que via e tinha aprendido como a forma de conviver. Sentavam-se todos em roda de mim, ouvindo aquilo que dizia. Ficavam embasbacados com o que eu sabia. Sentia-me a pessoa mais esperta do mundo. Na despedida, meu pai, pedia sempre a mensalidade, ou parte dela. Ai de mim se não a desse.
Levei alguns anos, até que um dia, bati o pé e, lhe disse que o que ganhava, só a mim pertencia como era dona e senhora de lhe fazer o que entendesse. Remédio santo, como lida foi a carta do baralho, para que nunca mais lá aparecesse. Assim foi. Como alguém disse «Quando se perde de vista a terra em que nos ficaram todos os afectos íntimos, parece-nos escutar uma voz interior a perguntar-nos se voltaremos a vê-la. E não há um clarão de esperança a responder a esta interrogação. Que tristeza». Só muitos anos depois lá voltaria porque às vezes me parecia ouvir as minhas raízes chamando por mim.
2
Andava fazendo limpeza da sala azul, situada no primeiro andar, que já a alguns dias não era limpa por via do senhor Benjamim ter andado com trocas e baldrocas nas arrumações dos seus bens mais preciosos. Todas as salas, eram conhecidas por cores, mesmo que na prática a maioria delas não anuíssem com o apregoado.
Adorava nos dias solarengos, abrir os enormes taipais pendurados nas pesadas portas para de seguida entrar a claridade do dia. A sala ficava iluminada da luz exterior embelezando tudo que estava à vista de poucos olhos. O sol reflectia-se nalguns mostradores de horas cujos brilhantes ofuscavam a minha vista de tão luzidos estar. Pequenas pedras de diamante e outras de quartzo estavam assente no metal que tornava mais valioso tudo que por ali estava exposto.
Duas paredes sustentavam compridas estantes de madeira envernizada que serviam de expositor às várias colecções de caixas de amorfos de todo o mundo que o meu patrão obtinha quando viajava. As outras duas tinham expostas dezenas e dezenas de pequenos relógios, destacando-se os de bolso de prata e ouro.
Por cima dos móveis, alguns quadros que tinham imagens campestres com assinaturas no canto inferior do lado direito. Um, estava ligado a uma artimanha qualquer, que nunca soube qual era, mas que meu patrão chamava de alarme. Para este, tinha recomendações especiais de não lhe tocar, caso contrário iniciava-se uma barulheira infernal levando a que tudo ficasse em alvoroço.
Apenas eu tinha acesso a este compartimento visto que uma pequena fortuna estava à mão de qualquer um. Não era qualquer pessoa que lá podia entrar.
Das poucas que tinham acesso à sala e que podiam admirar as únicas peças de precisão no mundo, as ordens que tinha era quando saíssem, fosse verificar se tudo continuava nos conformes não fosse alguma ser surrupiada de maneira estranha.
O patrão apenas confiava em mim como me deu o cargo de ser responsável pelo inventário, que me dava um trabalhão enorme, porquanto todos os anos tinha que ser rectificado por causa de novas entradas como do valor comercial que estava sempre a ser alterado depois de consultado uma revista da especialidade vinda de não sei de onde, porque era necessário manter os valores em dia para alguma hipotética transacção, para me sobrecarregar ainda existiam «as oscilações de mercado» funcionamento que nunca compreendi
Quando mexia em algum relógio mais valioso, fechava sempre a porta à chave. Comecei a utilizar esta medida quando um dia uma das minhas colegas entrou de surpresa, assuntando-me de tal maneira que por pouco a relíquia mais valiosa não foi parar ao chão.
Participei de imediato a quem mandava, como lhe expliquei as razões do acontecido e das medidas adequadas, para que de futuro não houvesse alguma desgraça.
Quando o senhor regressava da Fábrica Insular de Pirolitos, depois de um dia de trabalho, a primeira coisa que fazia era ir logo à sala dos ponteiros como gostava de dizer, para ver a sua colecção privada.
A Insular era a jóia da coroa da família e a fonte de sustento de todo o património, que não era pouco, diga-se em abono da verdade. Ficava bem próximo do palacete. Todos os dias, Gabriel, o empregado mais antigo, esperava que o patrão Benjamim chegasse para abrir os portões a fim de iniciar mais um dia de actividade. Era estimado e admirado pela sua entrega e dedicação. Sempre gostou de ser o primeiro a entrar e o último a sair. Desta entrega o patrão ter uma certa queda pelo melhor trabalhador, dando-lhe regalias não concedidas a mais nenhum.
A marca da fábrica foi comprada por um ascendente dos Miraflores a uma família nobre, mas falida, da Ilha da Madeira, que durante as dezenas de anos em que funcionou do lado de lá do Atlântico, ganhou tanta fama por causa dos seus pirolitos serem constituídos à base de maracujá. De tal forma que no Continente o produto era mais que procurado.
Mas a má gestão e a vida de levianas que as nobres levavam em pouco tempo levou a Fábrica Insular de Pirolitos à falência. Valeu ter sido registada a marca e por um mero acaso o ancião Miraflores conhecedor que era do produto e da marca, ter comprado a patente para depois introduzir o seu uso nas Lapas.
O melhor negócio que fez como a garantia o futuro de algumas suas gerações, sendo aquela, na altura em que deixei a casa, a última a usufruir dos poucos bens que se foram perdendo.
Benjamim foi um homem de visão empresarial na década de setenta que decorria. Soube prever com a devida antecedência as alterações que o mercado ia sofrer. Lia todas as revistas e jornais como dedicava uma especial atenção a tudo que falasse de economia. Quando investia no que quer que fosse, tinha de ter a certeza que a «coisa era para ganhar» e nunca o contrário. Sua mágoa era os filhos não serem como ele, antes pelo contrário. Para agravar a situação e o futuro, eram uns estroinas.
Bem cedo, soube dotar a Insular dos mais modernos maquinismos para aumentar a rentabilidade da fábrica com os menores custos, implementando ao mesmo tempo regras de segurança para quem nela trabalhasse ou utilizasse o espaço produtivo. Foi das primeiras fábricas a ter vigilância interna como uma maquineta que filmava de dia e de noite tudo que acontecesse no interior das instalações. Nada acontecia lá dentro que não ficasse gravado.
Lembro-me de senhores com nomes sonantes e grandes industriais, que vinham propositadamente do Norte visitar a Insular para poderem ver com os seus próprios olhos as modernices que Miraflores tinha nas mais modernas instalações da região. Quando os servia, depois de regressados da visita, ouvia algumas das suas conversas e elogios para com meu patrão.
Mesmo não percebendo nada do que falavam, sabia que o meu patrão devia ser uma ave rara pelo que tinha feito e descoberto para que nada alterasse a qualidade do produto que fabricava como dos que lá trabalhavam, como daqueles que iam carregar e descarregar os produtos que davam fama à Insular.
Alguns dos nortenhos, diziam que era «uma pena a fábrica estar instalada onde estava. Se estivesse no Norte, onde se trabalha e produz mais, quem ficava a ganhar era o país».
Ainda mal tinha limpado uma estante quando a sineta do portão tocou. Não estava ninguém em casa e raramente a casa recebia visitas de quem quer que fosse com estavam ausentes os donos. As serviçais andavam, umas para a horta e outras tinham ido às compras na cidade.
Desci a escada, cercada pelas imagens desconhecidas, plantadas em enormes molduras que a parede segurava. Algumas de tão sinistras me parecerem, assustavam-me de tal forma que algumas vezes pensava ter vida e vigiarem-me a todo o instante como seguirem para onde quer que fosse. A grandeza das salas e o silêncio que dentro delas pairava dava-me a sensação que mesmo sem ninguém em casa estavam sempre com gente.
Quando abri o portão estava um polícia que olhou espantado para mim. Correspondi-lhe da mesma forma mas talvez com outra visão. Era um jovem agente, com uns olhos penetrantes da cor do céu, bem aprumado e entroncado com uma farda bem vincada. Tinha personalidade e dignificava a farda que vestia.
Olhou de uma forma esquisita para mim, como que me estivesse a ver o meu interior. De tão assustada estar pelo impacto de ver um fardado ao portão e de sentir que me queimava com o seu olhar, perguntei-lhe o que desejava.
- Preciso de falar com o senhor Benjamim Miraflores!
Para que quererá o polícia falar com o meu patrão, se na verdade, toda a gente sabe que ele está sempre na Peninsular? Estranho esta pergunta. Não deve ser coisa boa.
Antes de responder, de tão assustada estar, olhei-o bem de frente e pensando no que lhe havia de responder, fiquei na dúvida no que dizer.
- O meu patrão não está desde muito cedo em casa. Como deve saber, a não ser que seja de muito longe, quem quiser encontrar o senhor Benjamim, sabe onde ele está todos os dias. Em vez de vir para aqui, se tivesse ido à Peninsular concerteza que lá o encontrava.
Num sorriso hipócrita, ou de admiração pela minha ignorância, mostrou-me uma cara e alguma dificuldade em dizer a razão da sua presença.
- Eu sei minha senhora! Acontece que o que tenho que fazer tem que ser com o próprio, aqui em casa.
- Mas que quer que lhe faça, se não está cá? Lamento imenso, mas se assim for como diz, pode cá voltar por volta do meio-dia que aqui o encontrará.
O polícia agradeceu-me a atenção para iniciar de seguida a viagem de regresso até à esquadra.
Voltei ao que estava a fazer mas preocupada. Desde que ali trabalhava nunca me lembro da visita de um polícia com intenção de falar com o meu patrão. Não deve ser coisa boa, pensei cá para mim.
Batia meio-dia na torre do campanário e alguns relógios da sala azul tinha os ponteiros juntos quando entrou meu patrão que me perguntou logo:
- Alguma novidade Mariana?
- Até há senhor Benjamim, e não deve ser coisa boa!
- Que queres dizer com isso?
- Esteve cá um polícia procurando pelo senhor.
- Um policia? Que queria?
- Desconheço. Apenas sei, porque me disse, que tem um assunto para resolver pessoalmente com o senhor.
Pela primeira vez vi o meu patrão com cara de espanto e de preocupado. Nunca foi hábito haver tal visita na casa.
- Disseste-lhe que me podia encontrar na fábrica?
- Claro que lhe disse, mas pediu-me desculpa por não lá ir ter consigo porque era aqui que quer falar consigo. Trazia na mão uma pasta, mas como vinha fechada não sei o que lá trazia.
- Está bem Mariana, continua o teu trabalho. Quando ele vier, vai ao escritório anunciar-me a sua chegada.
Pouco tempo depois, tocou novamente a sineta. Apressei-me porque tudo indicava que só poderia ser quem pouco antes tinha perguntado pelo patrão.
Desci novamente as escadas, agora mais aliviada por ter companhia em casa para ao mesmo tempo pensar como o guarda me tinha olhado. Não sei o porquê da situação, mas não me agradou a sua maneira de olhar. Compreendi logo o que os seus olhos queriam dizer, como as suas intenções.
- Então já chegou o senhor Benjamim? Suponho que sim porque o carro dele está ali estacionado debaixo da árvore.
É mesmo polícia, reparam em tudo. Abri o portão, nem tinha dado pelo automóvel ali estacionado, mesmo sabendo que assim era habitual.
- Um momento por favor que vou participar a sua chegada.
Enquanto percorria o caminho que dava entrada para o prédio, ao voltar para a esquerda, a fim de abrir a porta reparei que continuava a olhar para mim com um sorriso manhoso.
Um homem bem constituído, com uma cor morena, talvez queimado pelo Sol, como os homens que levam os dias no amanho da terra.
- Senhor Benjamim já chegou o polícia que lhe quer falar. Que faço ou digo?
- Podes mandar entrar e acompanha-o até ao escritório, depois quando ele entrar, fecha a porta.
Olhando bem de frente para ele e dando um curto espaço de tempo para ver o que dizia, continuava a olhar-me de forma notada.
- Não se importa de me acompanhar que o meu patrão o espera no escritório?
- Concerteza! É com todo o prazer que a acompanho como a seu lado irei, não venha por aí algum cão e me morda. Não sei porquê, mas raro é cão, que gosta de fardas.
Tive que me rir pelo argumento como pela boa disposição e pelo à vontade de quem a meu lado vinha, mesmo sentindo que me tirava as medidas de alto a baixo.
Bati à porta do escritório e logo o senhor Benjamim abriu a entrada para mandar entrar quem tanto lhe queria falar. Fechada a porta retirei-me para a sala ao lado esperando pela saída de quem entrou.
- Desculpe de o ter feito vir cá duas vezes, mas sabe que todo o meu tempo é passado na fábrica, o que me admira bastante não ter lá ido se encontrar comigo
Ao mesmo tempo que ouvia as justificações e se identificava como “Agente Tobias” da esquadra da cidade, olhava discretamente para o ambiente e conforto em que estava inserido.
- Não faz mal senhor Miraflores. Acontece que o que tenho para lhe apresentar apenas deve ser feito pessoalmente, daqui a razão de não querer, nem poder, incomodá-lo noutros locais; assim determina a lei.
- Mas o que se passa para ser tão reservado?
- São burocracias da lei senhor Miraflores. Trago-lhe aqui uma notificação para se apresentar na esquadra.
- Eu, ir à esquadra? Não fiz nada!
O polícia que já esperava esta reacção, apenas lhe disse:
- Não se enerve que tudo se resolverá a contento na esquadra.
Assinado o original, quem o incomodou, retirou-se de seguida para antes se despedir com gentileza de quem sabia ficar preocupado. A experiência dizia que assim era com todos, excepto aqueles que estavam sempre a contas com a justiça ou os infractores do Código de Estrada.
Benjamim Miraflores ficou preocupado com o sucedido. De tal forma que começou a andar para trás e para diante pensando na notificação. Só poderia ser uma multa de qualquer camioneta ou de algum carregamento. «Estranho! Quando assim é as multas seguem directamente para os escritórios da fábrica».
Já nem almoçou para seguir de imediato para a esquadra. Quando lá chegou, o polícia de plantão informou a superiora de quem chegava.
A chefe da esquadra, por acaso uma bela moçoila, que sempre viveu no bairro próximo do palacete do senhor Benjamim, conhecia como ninguém quem agora se ia apresentar na sua presença. Feito os cumprimentos da praxe e depois de uma pequena conversa para desanuviar o ambiente pesado, restava-lhe, como dever da profissão, cumprir esta burocracia que mais não era do que um mau entendido, vindo de outras bandas.
- Sente-se ali naquela cadeira vizinho Benjamim para de seguida puxar por um enorme calhamaço.
- Diz aqui que a sua viatura participou num assalto a uma ourivesaria lá para os lados do Barlavento algarvio. Claro que isto mais não é do que uma enorme confusão, mas das grandes, disse a graduada.
Benjamim Miraflores quando ouviu o conteúdo da acusação até mudou de cor.
- O meu carro? Mas não pode ser verdade, senhora chefe!
- Ó vizinho deixe-se lá dessas coisas e trate-me como sempre me tratou. Qual chefe qual carapuça. Vizinha e acabou.
Apresentado o relatório cedo se verificou que algum amigo do alheio falsificou a matrícula do carro dos larápios. O azar calhou a Miraflores.
Como um relâmpago, resolveu-se logo a questão.
- Senhor Benjamim, entregue-me fotocópias de toda a correspondência que assinou e faça um relatório de todas as suas actividades que teve no dia descrito.
Olhou bem de frente para quem o informava de como comprovar a sua defesa e assim evitar vergonhas e deslocações ao tribunal.
- Ainda provo mais: trago a gravação da máquina que filma a entrada e saída de todos os carros que entram na minha fábrica; estará de certeza absoluta o meu, como da minha entrada e saída para além de todas ase deslocações que costumo fazer pelo interior – para argumentar ainda – a Peninsular é das poucas fábricas neste pais que tem o sistema que têm. Ainda há pouco tempo estiveram aqui uns industriais a ver como aquilo funcionava. É uma maravilha. Mal sabia eu, quando mandei instalar a vigilância que me ia ser tão útil.
No fim do dia estava desfeito o equívoco e desvendado a causa da notificação, acrescida a resposta com um apêndice em que a entendida fazia ver por A mais B que tudo não passava de uma esperteza usual de quem anda no gamanço.
- Irra! Que ninguém pode dizer que está bem, desabafou Miraflores quando viu o auto encerrado. Há dias que um homem não pode sair de casa.
Isto é que se riu a inquiridora abraçando o patrão do pai enquanto lhe dizia:
- Vá para casa descansar senhor Miraflores que hoje já teve a sua parte e, de que maneira!
3
Quando o pai, na hora de jantar, informou que a vindima estava marcada para a primeira semana no nono mês, depois de contratado o rancho de mulheres, vindas dos lados do Gavião, Tobias interrompeu quem falava para dizer:
- Também posso ir para a “Cova das Meadas” fazer a vindima?
A resposta era sempre a mesma, desde que começou a crescer, levando já para aí, com uns sete anitos.
- Claro que podes filho, desde que te portes bem!
Era o primeiro a subir para cima da carroçaria da velha Dogde. Só depois é que escalava o rancho de mulheres que durante um mês apanhavam os melhores cachos de Fernão Pires para algum tempo depois se obter o melhor vinho da região.
Uma terra friática, de tão escura e fria ser fazia com que os velhos troncos dobrassem com o peso dos cachos. Sentadas nas bordas dos taipais da camioneta, seguravam-se na dorna, que poucas horas depois começava a trazer os cachos que espalhava pelo caminho o aroma do mosto.
Ainda o Sol estava a meio do lado de lá e já a velha Dogde roncava pela velha estrada de terra calcada, onde os grandes olhos de Tobias se tornavam pequenos para enxergar tudo que alcançava com a vista.
Do lado direito, centenas e centenas de marmeleiros, rasteiros que serviam de marcação, embelezavam todo o percurso para no ar se sentir o fresco que deles emanava. Árvores rosáceas, que serviam para as mulheres do campo nas suas poucas horas livres fazerem marmelada, mesmo que a maioria dos frutos fosse roubado.
Uma coisa que as intrigava, porque os donos não apanhavam o que nelas estava pendurado, enquanto ao mesmo tempo não permitiam que estranhos os recolhessem - assim sempre tinham alguma utilidade. Do lado esquerdo, altas árvores temperadas e húmidas. Do seu cimo vinha uma espécie de penugem.
Ao longo do dia faziam sombras nas tardes quentes refrescando quem delas debaixo se sentava para ao mesmo tempo permitir uma vista deslumbrante aos enormes salgueiros que serviam de maracha ao Tejo. Os choupos faziam com que a sua penugem se entranhasse na pele de quem a recebesse, criando por consequência uma enorme comichão.
Tobias não ligava às conversas de quem lhe fazia companhia. As mulheres quando se assentavam nos taipais já tinham os seus lugares predefinidos como os grupos escolhidos. Falavam de tudo e de todos como pouco ligavam ao mais pequeno passageiro, mesmo sendo filho de quem lhes pagava a semanada. De tempo a tempo, a capataza olhava de soslaio para o miúdo, não lhe fosse acontecer alguma coisa e tivesse que prestar contas.
Por uma velha oliveira volumosa que entroncava o caminho sabia que a “Cova das Meadas” era a propriedade que um dia seria sua. Dez hectares da melhor terra que fazia com que valesse uma fortuna. Tudo que a terra recebesse duplicava o que dela recolhessem.
Na curva das canas, logo à direita, a primeira entrada era o início da Cova. A velocidade era reduzida para o veículo começar aos solavancos. Rogavam pragas quem em cima das tábuas se sentava. As mais afoitas levantavam-se para se segurarem à dorna que de vez enquanto também baloiçava.
A meio do atalho, uma pequena barraca feita de cana, segura por quatro barrotes que sustentavam as telhas de canudo que faziam com que nos dias de chuva a água não entrasse lá para dentro. Era nesta espécie de casa que todos colocavam as marmitas que traziam as espécies para fazer o almoço.
Pela hora em que o dia começava mais a aquecer, espetavam as suas burras de ferro em cima dos molhos de vides que ardiam o tempo que fosse necessário, só deixando de foguear quando os almoços estivessem feitos. Seguia-se a sesta, um direito de que não abdicavam em virtude de ter vindo dos seus antepassados.
Também lá se guardava os cestos de vime que depois de cheios seguiam para a dorna que estava em cima da camioneta. Quase a extravasar seguia o percurso inicial para ser descarregada na adega da casa, onde homens pisavam o que acabava de chega, com os pés descalços. O vinho era sempre de boa qualidade porque não tinha tanino, graças aos cachos serem espremidos de uma forma rudimentar, não sofrendo assim as sementes das uvas e os pecíolos, qualquer violência.
Mal desciam e depois de tudo arrumado, o dia de trabalho ia começar ao som de cantigas populares para ser interrompido na hora do descanso e no final da jorna.
O cheiro da terra e a sua cor castanha, os voos dos pássaros, o subir as oliveiras para ver os ninhos dos passarinhos e percorrer terra a perder de vista, sempre com uma fisga na mão pronta a matar algum desprevenido pardal-telhado, fazia com que Tobias se perdesse no tempo. Não incomodava quem trabalhava nem pedia o quer que fosse. Ouvia do pai que «tempo é dinheiro», como efeito, não deveria importunar quem trabalhava.
Ao sentir-se cansado, sentava-se em cima de um montão de terra ressequida, protegido pela sombra e voltava-se para o rio. Olhava para a água como tudo que a envolvia, perguntando a si próprio para onde iria. Falava para o cristalino que descia como uma pessoa fosse. Quase conhecia as ondas que a água fazia de tão mexida ser.
Olhava para o horizonte, vendo do lado de lá do rio outros homens e mulheres fazendo o que na sua vinha faziam. Esgatanhava a terra fazendo buracos com as suas pequenas mãos para passado pouco tempo inspirar até ao fundo da sua alma o cheiro que das entranhas vinha. Muitas vezes sem saber o porquê, sem que ninguém o visse, deitava-se em cima da terra para a abraçar e nela dormir. Quando acordava, doía-lhe o corpo mas sentia-se feliz para gritar bem alto «a terra é sempre terra».
Bem cedo começou a dizer ao pai «logo que acabe a escola não quero mais estudar para poder amanhar as três fazendas que temos e herdadas dos bisavós». A terra era tudo para Tobias.
Faltava às aulas para ir até à oficina do “Artur Tanoeiro” Como gostava de ver o mestre Artur a arranjar os barris para estarem prontos a receber o mosto. As aduelas trabalhadas tinham de ter uma espessura apropriada que só a mão humana consegue atingir. Tiras de cascas de árvores especiais tapavam fissuras; tinham que ser resistentes ao calor e ao frio; de maneira alguma podiam verter ou perder o vinho por evaporação. Gostava de os ver a ser lavados até à exaustão, cuja lavagem só terminava quando saía água límpida e contra a luz para haver a certeza que nenhuma impureza podia estar misturada com o vinho novo. Pedaços de madeira e serradura pelo chão encantavam Tobias.
A época da poda e cava era o tempo que deixava tudo e todos para acompanhar quem a amanhava. Queria conhecer os segredos da seiva e do chorar da terra quando as enxadas a penetravam bem fundo. Mais crescia mais queria acompanhar os homens que faziam os trabalhos mais pesados na amanha. O corpo ficava rijo e forte como os salgueiros que por perto abanavam mas nunca se partiam, por mais forte que fosse o Vento.
Se alguma oliveira tivesse ser tirada da terra por estar carunchosa queria estar presente para com o machado fazer da madeira cavacos que mais tarde seguiriam para casa, depois de bem arrumada na velha carroça. De tanto baixar e levantar o machado, os seus músculos começaram a ficar fortes. Começava a ter um corpo musculoso para além de um bronzeado permanente de tanto sol apanhar.
Tobias nasceu e cresceu no meio da terra. O suficiente para que não pudesse passar sem esta como na distância do tempo soubesse o que ela necessitava. Sempre soube que da terra se obtém tudo se tudo lhe dermos e para ela se fale.
Os camaradas de escola, logo que saíam das aulas queriam era brincadeira mas Tobias corria como um desalmado direito a casa para mandar a pasta dos livros para cima da cadeira mais próxima e agarrar na velha bicicleta do pai, uma pasteleira que apenas era usada nas pequenas deslocações, descendo a rua para ir em direcção à Meadas.
Quantas vezes, nas madrugadas do inicio do Verão, quando seu pai julgava que ainda o filho estava dormindo e, não estava já Tobias na Meadas sentado em cima da raiz de uma oliveira esperando que o Sol nascesse? O amarelo vindo de um sitio qualquer do lá de lá do outro mundo. Era o início de esperar pelo nascer da natureza como de muitos dias que perdia só para ver rebentar as sementes que rebentou.
Nunca entendeu estes contrastes nem as suas origens, porque a ciência tinha-lhe passado ao lado. Pouco lhe importava do que falavam. Interessava-lhe era aprofundar os segredos que debaixo dele existia. Nestes, segundo Tobias, estava a razão e a lógica das coisas; quanto ao resto mais não eram lérias que os ignorantes apregoavam como entendidos fossem naquilo que não sabem e muito menos sentem.
Três propriedades com cerca de dez hectares cada uma. Tobias prometeu a si próprio querer aumentar o património quando lhe fosse legado como tomar conta do mesmo sem ajuda de quem quer que fosse. Quanto mais poupasse mais ficaria e mais receberia. Aprendeu com o pai que no «pagar pouco a quem trabalha para nós» se ganha mais, mesmo que sejam os maltrapilhos que buscamos quando deles precisamos. «São indefesos e ignorantes». Palavras que nunca esqueceu como praticou para que pouco tirasse da sua carteira.
Fez-se homem nestes princípios para aos poucos se esquecer daqueles que o rodeavam como dele dependia, mesmo que família fosse. Acima de tudo o que era preciso era «trabalhar a terra». Nunca se preocupou com o mundo que o rodeava e que ajudou a construir. Todos os momentos, mesmo depois de ter um emprego, como garantia para alguma infelicidade que pudesse aparecer, eram ocupados na agricultura. Havia que manter a terra porque fazia parte da história da família.
Os seus colegas de profissão admiravam a sua capacidade e robustez e a dedicação que tinha para com as «suas terras». Só nunca se preocuparam em saber as razões, ou, as necessidades de ganância que fizeram dele um homem frio e calculista cujo objectivo predominante era o dinheiro. Havia dias que era insuportável estar próximo de Tobias por causa do cheiro a terra que estava entranhado no seu corpo.
Algum gene que devia ter recebido do seu bisavô, já quem, vindo dos lados da Lousã, feito um desgraçado, descendo pela borda do rio que agora banhava uma das suas propriedades, assentou arraiais para passado poucos anos já ter o seu pequeno bocado de terra para amanha daquilo que no norte nunca conseguiu e muito menos alguma dia herdaria.
Fez de sua mulher uma escrava, de tanto trabalhar e fome passar, para quando de alguma recusa, vinda do cansaço, valentes cargas de porrada apanhar, proibindo-a de comer o pouco que tinha já que não trabalhava para o sustento da casa. O suficiente para aos trinta anos morrer de tuberculose porque nem ao médico podia ir.
Se o bisavô, assim era, pior foi seu avô, que do que viu e ouvia, trabalhava como um mouro para que outros dez hectares lhe pertencessem. Enganou com promessas vãs um seu vizinho, que de tão velho e só estar teve que desfazer-se da única fazenda que possuía em troca da condição do barrão originário do «mirandês vindo lá de cima» dele tomasse conta, tendo a promessa deste, que assim seria para que nunca fosse comprida e a morte se apressasse, logo assinada no tabelião as condições da mudança de dono, que para o deixar sossegado a “Cova das Meadas” passasse a ser dona de quem ainda não era.
Começou assim a saga dos barrões Tobias como era conhecida nas redondezas. Não em termos depreciativos mas pela ganância que tinham como da recusa de ajudar quem lhes pedisse ajuda. Gozavam-nos pela triste vida que levavam, julgando que eram os maiores proprietários da região quando na verdade apenas possuíam trinta hectares de terra de campo divididos em três campos, dos quais, um deles, de tão longe ficar e de se situar em terreno de charneca de nada valia.
O outro, o “Girão” era para plantação de milho. Vindo de tempos perdidos, alguém ensinou que o milho é o único cereal mesmo que plantado nas ruas e nos passeios nunca chega para o consumo. Daqui, a sua produção e venda estar sempre assegurada. Basta-lhe que lhe seja dado calor e água, nasce por tudo que é sítio.
Para os Tobias tinha sido a segunda compra, mesmo que fosse paga com uma carga de azeitona, roubada que foi quando de uma cheia na lezíria ribatejana.
De outros roubos e patifarias ninguém lhes tirava a fama. Alguns mais graves, mas o tempo tudo faz esquecer. O suficiente para Tobias ser conhecido como «o descendente dos barrões que fizerem fortuna em terra alheia por causa de tanto trabalharem».
O continuador é um digno servidor da causa pública; apenas um defeito se encontra na sua pessoa: de ser um homem que vive para o «que é seu»; mal se pondo a vista em cima dele e pouco ou nada se importando com o alheio.
4
Quando era criança adorava ir todos os dias com a mulher de meu pai ao mercado. Comprava os legumes, o peixe, a carne a mais algumas coisas para as refeições da família. Ouvia em silêncio as suas pequenas discussões com as vendedoras quando achava que os preços estavam acima da média como os argumentos que utilizava para fazer ver quem tinha o que ela precisava que no mercado vizinho tudo ema mais barato.
No regresso explicava-me de uma forma muito própria, como se eu já fosse uma adulta e compreendesse, que os «vendedores são uns fingidos quando devem vender barato o que da sua terra apanham já que não dão a ganhar a outros aquilo que eles querem ganhar a dobrar» para acrescentar que o que se «justifica ser um pouco mais caro é o que não produzem. Aqui sim, os preços podem ser diferente já que alguém vem de longe vender o que não há nas redondezas». Depois afirmava-me que no outro mercado «tudo é mais barato» vindo no caminho sempre a resmungar a carestia da vida e da falta do dinheiro
Mais tarde, toda esta lamúria me veio a servir de proveito porque do que aprendi e ouvi, acabei por confirmar por experiência própria que o passado continuava no presente, com o agravamento de haver abundância de tudo mas falta de dinheiro, enquanto criança, existir o contrário.
Era da minha responsabilidade ir dia sim, dia não ao mercado da cidade, fazer a compra daquilo que não havia em casa. Os patrões depositavam mim toda a confiança como me davam dinheiro suficiente para trazer do melhor em abundância para que nada faltasse e de tudo um pouco houvesse.
Quando chegava ao mercado, o meu percursos era sempre o mesmo. Começava por ver banca por banca a fim de saber onde se encontravam os melhores produtos apanhados nas redondezas da cidade como dos preços e da confiança que davam quem os vendia. Com o passar do tempo, aprendi a conhecer os homens e mulheres do campo que mereciam o dinheiro que lhes dava a ganhar pela qualidade daquilo que me vendiam como da certeza da terra onde era plantado, amanhado e apanhado.
Não durou muito para ser conhecida como uma das melhores freguesas como querer sempre o melhor, mesmo que algumas vendedoras dissessem que era uma boa pessoa mas um pouco regateadora. Sentia-me vaidosa porque no meu fundo sabia que o era.
Quando sai de casa para ir até ao mercado a manhã primaveril fazia com que a abóbada celestial estivesse impregnada de um azul claro mas ao mesmo tempo esquisita. Algumas árvores começavam a mostrar que os seus tenros ramos se preparavam para crescer.
Desci a longa e sinuosa rua sempre sozinha com a única companhia do silêncio. Um percurso que me proporcionava ver tudo que a natureza estava oferecendo a quem a soubesse contemplar. Junto ao rio, por a água de tão transparente ser, via seixos de todas as formas serem cerceadas das mais variadas qualidades de peixes, que como eu começavam o dia quase todas caiadas de branco destacando-se os seus longos rodapés caiados de branco e azul, cores que embelezavam o casario, fazendo com que as Lapas fosse uma zona muito característica e procuradas pelos pintores que sentados no Adro da igreja olhavam de longe aquilo que eu via agora de perto, pintando nas suas telas a beleza daquilo que o tempo se encarregaria de imortalizar.
Cores peculiares de uma zona que dava a impressão que os Deuses tinham escolhido este sítio como uma das sete maravilhas do mundo; depois na pequena subida que ligava o lugarejo à cidade, de vista a perder, terrenos e terrenos com as mais variadas plantações. De tudo um pouco havia.
Ao descer o caminho térreo que separava a estrada do rio, o orvalho fazia com que a terra respirasse o seu aroma muito próprio. Um cheiro que me fazia inalar algo de estranho para ao mesmo tempo me sentir leve como um pássaro quando desce em busca de um grão de milho. Pela rota ouvia o ruidoso badalar do toque das horas cujo som se perdia pelos baldios.
Aqui e acolá uma ou outra árvore mais entroncada tapava a claridade do Sol fazendo com que a sombra escarrapachasse no chão silhuetas estranhas. Um cheiro que sempre me seduziu especialmente no período em que após finda a segunda estação a terra começa a sentir as primeiras bagadas da chuva, fazendo então que das entranhas das profundezas se assimile a essência daquilo que um dia há-de ser colocado em cima de nós. Sorria para mim própria quando ouvia os mil ruídos da vida campestre.
Quando a noite deixava de esconder os seus mistérios e a súcia de mandriões regressava ao silêncio das suas casas, depois de subirem os parapeitos das janelas dos mais desprevenidos, roubando-lhes as poupanças para a malga do pão; ouvindo cacarejos de galinhas e grunhidos de porcos, gostava de abeirar-me, sem que ninguém visse, ao gradeamento do palacete de São Gião.
Olhava pasmada lá para dentro para ver a orlada de Tílias e Cedros. Perdia tempos ouvindo a chilreada dos pássaros calcanhando-se uns aos outros para iniciar mais um dia de manejo em busca de alimento para os filhotes como os seus infinitos percursos em busca de alimentos; metia a mão junto de um dos meus ouvidos para sentir o cantar de um poupa que todas as Primaveras ali vinha criar; rouxinóis cansados dos seus gorjeios nocturnos; o espreguiçar do Sol contra as altas paredes do solar quase me cegava quando se esparrachava no branco; vindo de não sei donde, olhava com inveja inconsciente o conforto que por ali existia como da ausência do frio matinal; olhava para o horizonte e via tonalidades rosadas, uma ou outra nuvenzinha que boiava no céu; o barulho da água que não divisava mas que cursava pelas bordas do terreno levava a que a minha alma ficasse entorpecida por tanta beleza do verde.
Já nas proximidades da cidade uma casa me chamava a atenção. A “Vivenda da Matilde”. Nada de especial tinha diferente das outras, excepto, ser uma vivenda de um só piso. O que me impressionava e fazia com que admirasse era o seu jardim frontal. Flores de toda a espécie. Cada uma mais bonita do que a outra. O cheiro que deixavam no ar elevava-me à essência de um prazer sublime como encantava as raízes do prazer, fazendo com que sonhasse aquilo planeava para uma vida que queria que fizesse parte de mim e dos meus.
Algo de belo e soberbo era o pequeno lago que tinha na traseira da casa, onde nadavam dois cisnes. Um deles já ia com muitos anos. Quando via a dona acompanhada de alguém engalanava-se todo como que chamando a atenção da sua beleza. Confesso que era altaneiro. Branco como a neve, tinha no seu comprido e estreito pescoço, uma mancha cinzenta que lhe dava um encanto inexplicável. Cantava como uma sereia quando lá longe no mar vê aproximar um barco e enceta cantares mágicos. Vim a saber, pouco tempo depois, que os cisnes não cantam quando pressentem que a morte se aproxima.
A humidade que escorria das flores fazia com que os troncos se dobrassem dando a sensação que ali estavam apenas para segurar as nobres folhas coloridas que enobreciam todo o espaço envolvente para sorrirem depois para quem delas cuidava; mulher encantadora como encantadora era o seu jardim. Sempre a admirei.
Uma mulher doce e terna para ao mesmo tempo ser simples que estava sempre disposta a ajudar quem dela precisasse. De uns olhos azuis e um cabelo prateado que mais pareciam fios de seda, uma cor pálida que demonstrava a sua fragilidade e algum sofrimento. O seu falar era dócil com aquelas professoras que quando falam para os alunos os tratam como os estivessem.
Se falava com alguém no meio dos curtos trilhos que o mesmo tinha, a sua voz ecoava sons vindos de outro mundo. Às vezes até parecia que as flores a escutavam e compreendiam aquilo que dizia e se lhe dizíamos o que pensávamos a resposta era sempre a mesma: «claro que as flores falam. Basta que as compreendamos e ouçamos os seus gemidos para que logo saibamos o que querem dizer». Se nos ríssemos detalhava os segredos e encanto das florestas quando no meio destas os duendes e fadas vagueiam na busca de quem os possa ouvir e sentir.
Ao lado da vivenda, desproporcionada para o enquadramento, uma velha casa que pouco mais deveria ter que quatro metros quadrados. As paredes demonstravam que os anos de uso já se tinham perdido no tempo. Apenas se via buracos com bocados de caliço que serviam de sustento ao que restava, para no meio da parede que ficava voltada para a rua, estar um porta segura por arames ferrugentos com bocados redondos de folhetas gastas que faziam de dobradiças. Na detrás, uma enfezada janela, talvez o tamanho de um quarto da porta, mas no mesmo estado que permitia o Sol iluminar a barraca da Miquelina. Como única luz, a que entrava pela porta e pelas gretas do telhado.
Uma mulher desgastada como a casa em que vivia, com um cara cheia de rugas e um cabelo desalinhado e untuoso de raramente ser lavado. Apenas tinha um dente mas em contrapartida tinha uns olhos azuis como a cor do Céu. Quando nova deveria ter sido uma mulher bonita, mas as agruras da vida fizeram com que fosse conhecida como uma tresloucada. Era um bicho autêntico.
As crianças quando vinham da escola, em bandos como pardais, o seu passatempo favorito era bater à porta da desgraçada para a apoquentar e lhe chamar nomes horríveis que fazia com que ela os corresse atrás dele tentando lhe dar com a bengala. Era o que os miúdos queriam, porque logo distantes, mal se apercebiam que «não podia com um gato pelo rabo» começavam a enviar pedras para cima dela e de seguida apedrejarem as paredes como mandarem calhaus para cima do telhado, levando a que nos dias de chuva a miséria e o desconforto fosse ainda maior.
Morreu alguns depois, quase com cem anos, cujo funeral apenas contou com duas pessoas: o cangalheiro e ajudante. No dia seguinte ao funeral, funcionários da Câmara deslocaram-se ao local para queimar tudo; de seguida; os restos daquilo a que Miquelina chamava de sua casa foi arrasado com uma caterpillar, ficando reduzido a montões de telhas a caliça, para durante anos continuar abandonado como abandonada andou anos quem ali viveu.
Ao entrar no primeiro passeio da cidade fazia o percurso sempre encostada ao comprido e ondulante muro de cor roxa que me protegia do Sol que já começava a aquecer numa rara claridade que atormentava os meus pensamentos fazendo com que apressasse os meus calmos passos. A confusão já reinava no mercado. No exterior pequenas camionetas sustentavam nas suas carroçarias os mais variados produtos. Todas tinham uma pequena balança e o chão estava todo enlameado e cheio de folhas de couves. Um vaivém de pessoas de e para o mercado.
O dia começava assim para mim. Durante duas ou três horas perdia-me na conversa e na procura do que precisava como sabia das novidades que tinham acontecido nos dias intervalados da minha ausência. Via rostos tristes e alegres, alguns bem rugados pela dureza do amanho da terra como sentia dentro de mim alguma tristeza quando olhava para as mãos das mulheres mais idosas que tinham profundas gretas nas mãos de tanto mexerem nas entranhas daquilo que era o seu sustento e de quem dependia dela.
Vida dura que é a das pessoas do campo. Exige de quem dela depende, para além do seu suor, enormes sacrifícios como esforços que se perdem quando alguma alteração do tempo deita tudo a perder. O mundo é cheio de contrastes, alguns bem esquisitos.
Ao passar pelas bancas do peixe, lembro-me das noites escuras e tempestuosas que assustam os homens que no mar andam em busca daquilo que agora está na minha frente, tendo só companhia as trevas que não os deixam ver o que buscam para depois pelo nascer do dia regressarem, talvez de onde partiram, descarregarem o que agora procuro, a troco de uma ninharia, nunca lhes dando, nós, o valor do seu sofrimento e da sua solidão, enquanto que outras pessoas, como eu, descansam na companhia das estrelas nas suas casas e no conforto que os pescadores raramente têm.
Depois de olhar para a cúpula do espaço que frequentei caminhei em direcção do portão. Foi quando vi que o tempo se tinha transformado. Chovia copiosamente como num dia de Inverno se estivesse. Parei a meio do portão para ver que o chão estava cheio de água. Na luzidia meia praça, a puxar para o redondo, as pedras a que chamam de “calçada à portuguesa” de tão pisada estar e em que nos dias da estação mais quente, quase cega quem olha para elas, agora estava toda encharcada de água.
O Céu estava escuro para de repente um susto apanhar pelo relâmpago que tinha feito. A terra estava a rasgar-se ao meio, tal foi o clarão, fazendo com que desse um grito de desespero. Sempre fui uma mulher que ao pressentir relâmpagos me tornava no ser mais assustadiço. Olhei para a chuva que de repente começou a cair, para pensar ao mesmo tempo como as coisas tinham mudado desde que saiu de casa.
«Com uma cesta cheia de coisas e um peso enorme; com um tempo deste, sem conhecer ninguém que me possa levar a casa o que faço? Resta-me esperar que o tempo abrande e depois fazer-me ao caminho, a não ser que lá em casa se lembrem de mim. Para azar meu nem um guarda-chuva trouxe. Sabia lá que ia chover?». Sabia que o tempo estava para durar mas nada podia fazer. Restava-me esperar que alguma solução encontrasse.
Assentei a cesta no chão todo molhado e sujo, encostando-me de seguida à parede pela melhoria do tempo. Então olhei para as pessoas que na rua passavam, nas que entravam e saíam do mercado como ouvia as conversas da que estavam junto de mim. Todas falavam da mudança brusca e da chuva que teimava em molhar tudo e todos. Uma voz de homem, vinda de não sei de onde, dizia que «esta chuva só faz bem à terra depois da seca que tivemos no ano passado. Refresca e torna a terra mais macia».
Na minha frente, do lado de lá da rua, debaixo de um toldo de um café, um casal, como eu, esperava que o tempo mudasse. No seu meio, uma criança, encolhida, olhava para nas grossas gotas que salpicavam o chão enquanto ao mesmo tempo metia um dedo a escarafunchar o nariz, fazendo bolinhas para de seguida metê-lo na boca, chupando-o como se estivesse a chupar um chapéuzinho de chocolate.
Lembrei-me de quando miúda ir à mercearia da minha vizinha comprar uma quarta de colorau e meia de café. Esperando pela minha vez olhava para tudo que estava nas prateleiras da loja do senhor Bonifácio como das novidades recentes que as mulheres queriam qual o fim a que se destinava para ao mesmo tempo criticarem as coisas que inventam. «Qualquer dia até descobrem maneiras das donas de casa já comprarem tudo feito e empacotado». Conversas que gostava de ouvir porque me criavam dúvidas, levando-me a que no meu pensamento solitário começasse a pensar se as suas duvidas teriam alguma ponta de verdade. Na frente da balança que pesava as “quartas e as meias” um cordel segurava “Sombrinhas de chocolate Regina”.
Nunca tive o prazer, quando criança, de poder saborear estas delícias, salvo uma vez que o presidente da Junta de Freguesia comprou uma para a filha como presente de aniversário. Levou-a para a escola, comendo-o na hora do recreio. Como camarada de carteira que fui dela, deixou-me chupá-la por «só um pouquinho» Um gosto tão doce que me deixou um vazio em mim.
Naquele momento prometi a mim mesma quando fosse grande e tivesse dinheiro meu, compraria carradas de “Sombrinhas da Regina”. Só muitos anos depois é que tive a possibilidade que seria levada a efeito quando numa passagem rápida pela loja da minha infância. Não comprei uma mas uma dúzia para saciar os meus desejos de criança.
Um pouco mais ao lado, outro casal de idosos, parecia resmungar por causa do tempo imprevisto que lhe deve ter alterado a manhã. A companheira indicava para o Céu qualquer coisa para ao mesmo tempo dar encontrões a quem não lhe ligava nenhuma, ou tão farto estar de a ouvir.
Olhava para chão, fixando algo que eu não conseguia destrinçar para ao mesmo tempo, volta não volta bater com a ponta da bota numa pedra da calçada que se salientava das outras. De tempos a tempos batia com o calcanhar do sapato, dando a impressão que a queria compor para que ninguém pudesse entropeçar. Dizem os mais antigos que quando uma “pessoa vai no passeio e começa a não poder levantar o sapato ou ao andar encosta as palmas da mão para as pernas é sinal que o início da mortalha se aproxima”. Nunca me esqueci deste provérbio. Para azar meu, sempre que via pessoas conhecidas acontecer-lhes uma destas coisas, aquilo que tinha ouvido dizer confirmava-se.
Certa vez, reparei que um vizinho meu, homem de idade avançada, que nem com a cabeça já podia, sempre que saía à rua os seus braços andavam num sobe e desce e com as palmas da mão roçando o início dos membros. Todos os dias eram a mesma coisa. Seis meses depois, estava encostado à esquina de uma parede. De repente deu-lhe um ataque qualquer, que ainda hoje estou por saber qual foi e, cair para chão para nunca mais se levantar. Tinha morrido.
Olhando para onde estava a olhar, apercebi-me com a minha visão periférica que uma figura de gente estava olhando continuamente para mim levando a que me sentisse mal comigo própria. Nunca gostei de estar a ver o que quer que seja e saber que de lado me miram como de outro mundo fosse. Até penso que certas pessoas desconhecem que não somos como os burros que só olham em frente. Deviam ensinar-nos, quando crianças, que, além de vermos para a frente também conseguimos ver perifericamente.
Olhei para ver quem era. Nem mais nem menos do que Tobias. Esperava o que eu ansiava. Ao olhar para ele, não sei se fui eu que ruborizei se foi ele. Apenas sei que ficamos os dois embasbacados olhando um para o outro como se nos víssemos pela primeira vez e que o clik que sentimos estivesse nos dizendo que o nosso futuro, a partir deste momento, para o bem ou para o mal, iria sofrer uma profunda mutação.
Ainda não estava composta da surpresa e já Tobias a cumprimentar-me para ao mesmo tempo lamentar esta partida do tempo que alterava tudo. Durante uma boa meia hora falamos de tudo e de mais alguma coisa quando reparou que a meu lado estava a cesta das compras. Ofereceu-se logo para me levar a casa no seu automóvel.
Olhei-o bem de frente para pensar se deveria ou não aceitar aquilo que acabava de ouvir como olhei para o tempo concluindo que não havia sinais de melhoras.
O seu aspecto de civil mudou em mim a imagem que tinha dele como quando o conheci como homem fardado. Reparei que era um homem charmoso e bem apresentado para além de bem-educado. Sabia falar com maneiras de gente, deturpando a imagem que eu tinha de polícias e outros afins. Ciente de que não era um desconhecido para mim, mesmo que pouco tivéssemos falado, quando da notificação, não fiquei com duvidas que tinha na minha frente um homem de confiança, levando-me a aceitar a sua oferta.
Foi buscar o automóvel, que estava estacionado algures, mas bem próximo, para o parar mesmo na frente do portão. Saiu de dentro do mesmo numa correria para abrir de seguida a porta do lado oposto a fim de eu poder entrar. Logo dentro do mesmo, fechou-me a porta para trazer de seguida a cesta. Quando entrou dentro do carro tinha a roupa toda molhada e a água corria-lhe pela cara.
Arrancamos em direcção à casa de meus patrões, que ele já bem conhecia. Falamos no curto percurso do dia e do acaso do nosso encontro. Fiquei então a saber que Tobias sabia os dias das minhas idas ao mercado como fiquei a saber que conhecia todos os meus passos.
Futuramente, passamo-nos a encontrar, sempre que havia tempo livre de sua parte, para nos encontrarmos no mercado a fim de conversarmos um pouco. Assim aconteceu, até ao dia em sucedeu daquilo que os dois sabíamos acontecer mais tarde ou mais cedo
*
Pensadores de todas as épocas sempre acharam embaraçoso discutir o amor: o tema é complexo e esquivo demais. Um escritor francês do século XVII, François de La Rochefoucauld, chegou a duvidar que o amor de facto existisse e a dizer que o amor verdadeiro é como os fantasiar, de que tantos falam, mas ninguém prova ter visto.
Tolstói, talvez o maior de todos os romancistas russos, certa vez escreveu no seu diário um pensamento na mesma linha: não sabia o que as pessoas querem dizer quando falam de amor. “Se é aquilo de que tenho ouvido, ou lido, então nunca senti amor.” Mas logo depois os dois escritores já se contradiziam. La Rochefoucauld admitiria implicitamente que o amor existe, em observações com esta: “Não há disfarce capaz de ocultar o amor por muito tempo, onde ele existe, nem de simulá-lo, onde ele não existe.”
É Tolstói, noutra página do mesmo diário onde exprimira tanta descrença, descreve com ardorosa convicção o fascínio que sentia por certa mulher. “Estou apaixonado como nunca estive em minha vida”.
Blaise Pascal, matemático, pensador e cientista francês da mesma época de La Rochefoucauld, perdoaria tais contradições, porque para ele o amor era mesmo um tema irracional. “O coração tem razões que a própria razão desconhece”.
Uma certeza absoluta parece difícil, as histórias de tanta gente infiel e volúvel mostram como é fácil enganar-se. Mas alguns entendidos dizem que é possível reconhecer certos sinais típicos. Por exemplo, pessoas que se amam procuram uma, os olhos da outra e buscam aproximar-se em contactos físicos.
A pessoa enamorada tende a falar da outra e inclui-la como assunto nas conversas que tem com outras pessoas. Além disso, quando fala na pessoa amada tende a exagerar nos seus atributos físicos, morais e intelectuais e a acentuar a importância dela na sua vida.
No que diz respeito à relação entre ambas, duas pessoas que se amam procuram cultivar variados interesses comuns, tanto a nível exclusivo de casal quanto a nível social, com outras pessoas, mesmo que às vezes, consiga esconder, de quem ama ou diz amar, facetas que só o próprio sabe que as tem.
Francesco Alberoni, no seu livro “AMO-TE” descreve o interesse que pode haver num casal. «…muitas vezes a riqueza e o interessa económico não são a porta de um verdadeiro amor. Também há aqueles que se enamoram friamente por puro interesse. Como o caçador de dotes que finge estar enamorado da herdeira, ou a arrivista social que finge estar enamorada do milionário. Como faz Scarlet O’Hara em “E Tudo o Vento Levou” quando, para salvar a propriedade de Tara, seduz friamente um rico negociante e casa com ele.
O interesse só por si, sem amor, não está realmente em condições de criar uma relação de casal estável. Não é fácil aguentar um fingimento durante anos a fio. O homem que não gosta da mulher é forçado a inventar todo o tipo de desculpas para não parecer impotente. A mulher passa de um estado de irritação e de repulsa física. No romance “Paolo e Francesca”; Rosa Gianneta descreve o esforço feito por uma mulher que casou com um homem rico e famoso. Pouco a pouco o seu corpo revolta-se. Sente aversão pelo seu cheiro, pelo contacto das suas mãos, até ao momento em que o seu amor se torna ódio”.
5

Um ano decorreu com encontros e desencontros. Do que já sabíamos um do outro como dos feitios pessoais, conhecidos de ambos, facilmente concluímos que tínhamos muita coisa em comum. As ambições, sonhos, projectos, objectivos, dificuldades, vantagens do casamento e as situações inesperadas que surgem na vida de todos nós levaram-nos a que nos conhecêssemos profundamente como soubéssemos que poucas diferenças e gostos existissem. Às vezes parecíamos almas gémeas.
Acabou por acontecer o inevitável: o pedido de namoro. Dediquei o pensamento do meu passado à minha desaparecida mãe, que de longe a longe, perdia algum tempo para olhar para a fotografia dela, não fosse os arquivos da minha memória esconder aquilo que eu não podia esquecer. Uma imagem, que sempre que podia, tentava aflorar para que sentisse quem me deu a vida, estivesse junto de mim. Acalentava ao mesmo tempo a sua protecção e o sonho dos filhos que viesse a ter
Para que nada fosse feito ao acaso, como acaso houvesse, combinamos manter o namoro mais um ano, tempo suficiente para marcarmos uma data de casamento como a decoração da casa que seria o nosso lar. Esta não se precisava de comprar porque o pai de Tobias prometeu que antes do casamento lhe daria um bocado de terreno com cerca de dois hectares, onde já existia uma casa de habitação. Apenas estava a necessitar de algumas reparações.
Uma casa situada na rua principal no lugar dos Patudos. Voltada para a rua que lhe fazia extrema, tinha divisões de sobra para o início de um casal com terreno suficiente para ocupar todo o tempo livre que houvesse assim como segurança para os filhos que nascessem, já que todo o terreno era vedado com um murete.
No fundo do quintal havia: meia dúzia de laranjeiras, outra tantas oliveiras e dois ou três limoeiros e ainda um espaço que dava para plantar uma pequena horta onde de tudo de podia plantar, sendo regado com a água que vinha de um velho poço existente, no qual resistia ao tempo uma velha engenho mas que já não funcionava.
Restava os únicos sinais do burro que durante anos puxava fazia andar o engenho. O resto do espaço estava ocupado com uma plantação de videiras que se encontravam a precisar de amanho, por via de falta de poda, já que o dono não lhe dava a devida atenção, porquanto já sabia que mais tarde ou mais cedo sofreria alterações com o novo inquilino. A meio um velho poço que tinha uma nora
Namorávamos para ao mesmo tempo passarmos todos os momentos livres que podíamos no nosso mundo, em cuja casa fizemos e refizemos planos para o futuro como para os nossos filhos. Para não entrarmos na rotina, periodicamente fazíamos alguns passeios como fomos aos festejos da Senhora da Encarnação que se realizava sempre a dois de Agosto de cada ano.
Ainda hoje, sempre que posso vou ver a procissão. Não sei o porquê desta fé na santa como na sua imagem. Mas sei quando ganhei a crença. Na primeira vez que fui aos festejos, sem querer assisti ao cortejo da procissão. Era um dia em que me sentia melancólica por ver famílias inteiras devotando a sua fé na figura, ouvindo ao mesmo tempo as suas súplicas e pedidos divinos. Outras, pediam desejos e ajudas a sofrimentos, acendendo velas, rezando ao mesmo tempo para que as suas vidas e dos seus encontrassem melhorias.
Quando a procissão percorria a longa artéria da localidade encostei-me a uma esquina de uma velha parede, que até parecia estar à minha espera para ver o andor passar. No exacto momento que a imagem da santa passa por mim, tive um ataque instantâneo de choro que me deixou apavorada por não encontrar razões para o sucedido. Nunca mais deixei de estar presente no segundo dia do oitavo mês de cada ano.
Outra procissão que soube se realizar com grande fé, por intermédio de uma colega minha, foi a Procissão de Nossa Senhora do Castelo em Coruche, também levada a efeito no dia do mesmo dia. Da capela de onde parte e chega o cortejo, uma vista deslumbrante se apresenta na nossa frente.
Lá do alto, do miradouro avista-se o panorama sobre a várzea, numa planície a perder de vista, onde os campos do Sorraia se desdobram em tons de verde e oiro até à linha do horizonte
Esta comemoração evoca-nos a convicção dos milhares de pessoas que no dia especial comparecem, vindas de todo o país, a fim de associarem-se no desfile, contando com a presença das mais ilustres personalidades da região.
Reza a tradição local que célebres figuras da tauromaquia, antes de ir para o redondel vão até à Capela em busca de auxílio. O santuário é muito comprido e pouco largo, de uma só nave, com púlpito em pedra e arco de cruzeiro em mármore rosa.
Ocupando uma parede, o altar-mor, todo de talha dourada, ladeado das figuras de São José e São Pedro, tem, acima do sacrário, a imagem de Nossa Senhora com o Menino, de pé, sobre um trono simples.
O tecto, em abóbada, está ornamentado com várias pinturas religiosa, destacando-se a da capela-mor, representando a “Coroação de Nossa Senhora” rodeada de anjos lutando. No exterior predomina o branco e azul, como no Alentejo estivéssemos.
Diz a lenda que, alguns anos após a reedificação do santuário dedicado a Nossa Senhora do Castelo, a povoação de Benavente, sentindo-se em perigo perante o avanço de alguma alaga moura, enviou a Coruche uma comissão a pedir a imagem da santa, pois acreditavam que assim seriam protegidos e defendidos. Perante o perigo, os coruchenses acederam. Passado o ataque, em que os inimigos foram desbaratados por completo, nada de devolver a imagem ao seu pequeno santuário.
Os coruchenses reclamaram. Nada. O senado da Câmara enviou um representante ao senado de Benavente. Voltam sem ter conseguido o que pretendiam. Mas, ao regressar, quando já se aproximavam da linha divisória dos dois concelhos, algo se lhes depara: a imagem de Nossa Senhora do Castelo ali estava, mesmo sobre a linha divisória, mas voltada para Coruche. Era para ali que queria ir.
Quando me sentia na mó de baixo, sempre que pudesse ia até aos Moinhos da Pena. Erguidos numa paisagem alucinante levando que junto dos moinhos de torre bata um dos melhores ventos. Moinhos feitos de uma sólida construção, com um pequeno telhado cónico que acaba muito dentro do capeado da parede.
Era junto do terceiro moinho, que recarregava as minhas baterias e toda a energia com a cumplicidade da natureza. A sensação de estar sozinha no alto de um cume, à sombra do moinho, tendo como rectaguarda o verde da serra, para depois na frente, ver todo o vale com o seu casario branco e disperso olhando ao mesmo tempo os trilhos e carreiros de terra batida que se emaranhavam uns nos outros rodeados por um lado de compridos eucaliptos e de outro por pinheiros bravos numa fusão de outras árvores era para mim algo esplendoroso
Levava horas e horas sentada no portal do moinho olhando para o vazio, enquanto inspirava a pureza de ar que me desinfectava os meus brônquios, vinda dos milhares de árvores que se perdiam na paisagem serrana.
Quando de lá saía, sentia uma sensação esquisita dentro de mim; como que, tivessem tirado dentro de mim todas as cargas negativas. Vinha rejuvenescida e pronta para mais um combate porque junto dos mesmos privava também com o meu EU para encontrar as respostas dos meus sonhos e acreditar nas ilusões da vida.
A nossa relação rolava numa combinação de gostos e ideias. Dificilmente não havia contrariedades. Tudo que ele pensava e expunha igualava o que eu pensava, fazendo com que algumas vezes duvidasse do que dizia, perguntando a mim própria, se não dizia sonhando em voz alta o que ele argumentava, tal era a sua convicção e parecenças dos meus pensamentos.
Todos os motivos e mais alguns para que o casamento fosse uma realidade. No dia vinte e quatro do décimo mês do primeiro ano da década de setenta, estávamos casados. Tobias sempre fez questão de que o nosso casamento fosse realizado na maior simplicidade como apenas contasse com a presença dos familiares mais próximos e directos. Evitava-se despesas e grandezas numa união de amor. Aceitei o que tanto me pediu.
O nosso casamento apenas contou com a presença de vinte pessoas para depois após o acto burocrático seguirmos para a adega de meu sogro dado ter condições para a boda. Um almoço servido em abundância de carnes grelhadas, oriundas de animais da casa paterna que disponibilizou o abate e amanho em conformidade com os convidados. Tudo que fez parte do repasto, pouco veio do exterior, excepto algumas coisas que serviram para o temperamento.
De uma pastelaria de um familiar veio a doçaria, que em abono da verdade, digo que era uma pobreza de franciscano. Mais tarde vim a saber que as instruções do então ainda meu namorado, tinham sido de «poupança» para o dia da festividade.
Pouco me importei. Sentia-me uma mulher feliz por estar casada e poder passar a contar com um marido como aberto estava o caminho para começar a constituir uma nova família.
Desde nova que tinha prometido a mim própria que só casaria com alguém que me desse tudo aquilo que nunca tinha tido: afecto, respeito, amor mas acima de tudo, a ternura; prometi também que a meus filhos lhes daria aquilo que me foi recusado por via dos meus pais, essencialmente meu pai, que me desprezou e abandonou para dar a quem com ele vivia e aos filhos desta, aquilo que também tinha direito, como ainda prometi que só casaria com um homem que me sustentasse a fim de poder viver para os nossos filhos.
Sempre me pesou na minha consciência a falta daquilo a que uma criança tem direito. Não seria justa comigo própria nem com os princípios daquilo que aprendi onde procurava a fé. Não devemos fazer aos outros o que nos fizeram. Este princípio era para ser aplicado a quem de dentro da minha barriga viesse, custasse o que custasse. Defendi esta teoria com unhas e dentes para que o contrário não acontecesse. Após terminado o período de férias meu marido apresentou-se no posto policial onde prestava serviço.

*

Não abundasse a falta de tudo, que um filho deve ter na infância, para agravar ainda mais, passei a meninice com uma enorme falta de sensibilidade por parte de uma madrasta acrescida da frieza de um pai, que optou, talvez por conveniência a quem fazia de sua mulher, os azares teimaram em acompanhara-me nos momentos que pensava: fazer parte de um passado sombrio.
Não sei se a vida, ou lá o quer que seja, deixa vestígios em nós, de coisas acontecidas ou feitas em momentos menos propícios, para mais tarde termos de sofrer as consequências que nós próprios desconhecemos – ou não nos lembramos?
A noite estava esquisita com a essência do Quarto Crescente. Uma noite em que me levantei a meio da madrugada. Nunca a esquecerei, por causa do azul estranho que pairava no céu
Tão desconforme que ao contrário do habitual os passarinhos queriam voar àquela hora; as rãs que existiam num pequeno charco de um terreno fronteiriço coaxavam em coro como algo estivesse para acontecer.
Era noite de sexta-feira para sábado. O tempo estava sufocante, angustiando-me de uma forma que não sabia que fazer. Estava a ficar com medo. A Lua por algum tempo, ganhou formas esquivas como o seu movimento e as estrelas que a cercavam.
Sem saber como, apenas tenho a lembrança de ouvir uma voz, vinda de dentro de mim que me disse: «Se conseguires dormir, amanhã vai à praia».
Acordei, deveriam ser para ai umas dez horas. Depois de despachada, arrumei a cesta com os apetrechos da praia, arrancando de seguida até à praia da Nazaré. Durante todo o percurso, não deixei de meditar nas palavras que ouvi.
Quando lá cheguei, depois de ter arrumado a carro, olhei para o tempo; parecia um manto de nevoeiro. As gaivotas estavam agitadas; o mar aborrecido; as ondas batiam com raiva nas rochas; as nuvens faziam no Céu símbolos que pareciam um chamamento para os nossos olhos. Não compreendi o que as mensagens queriam dizer ou o seu significado. Quando menos esperava, ouvi o bater de dois “trovões”. Neste momento, senti uma dor profunda no meu coração.
Sem saber como, as lágrimas corriam-me pela face e alguém, que não sei quem foi, olhou para mim e disse-me «sente-se bem? Os seus olhos reflectem uma amargura tão grande».
Apenas tive força para dizer «Acabei de perder, mas não sei o quê. Sinto uma enorme dor dentro de mim».
De seguida, coisa que me recordo bem desmaiei por segundos para depois de refeita, ver que junto de mim estava um mar de gente à minha volta.
Iniciei o percurso que sempre gostei de fazer e caminhei pelo “picadeiro” para me sentar um pouco no murete frontal à “casa do salva-vidas”. Apenas me lembro de continuar a ouvir a chiadeira das gaivotas e de ver os seus voos rasantes, que mais pareciam querer poisar em cima dos meus ombros. Despertei da levitação quando tocou o telemóvel. Atendi meia zonza para ouvir quem falava do lado de lá. A Alma do Mundo tinha chamado meu pai, que já não o via desde que sai da casa onde fui criada. Veria e vê-lo dentro da urna.
Na manhã fria, do dia seguinte, enquanto o Vento abanava os ciprestes que iriam rodear a morada de meu pai, fluiu para me encaminhar para o silencio das pedras frias que iria me acompanhar para o resto da minha vida, deixando-me uma fútil temporada a pensar em que podia ser meu amigo mas que não foi, antes pelo contrário, mas.... foi meu pai.
Não chegasse, quinze dias depois, meus irmãos morreram todos num acidente próximo de Rio Maior, quando uma camioneta carregada de cimento saiu fora da sua faixa e se enfeixou de frente com o carro onde ia as pessoas que andei anos sem ver. A vida tem destas coisas, onde algumas são bens cruéis e difíceis de aguentar.

*

Nem trinta dias tinham passado após o casamento, como poucos dias tinham passado sobre a fatalidade que desabou em cima de mim pela perda da minha, quando descobri que Tobias não era o homem que conheci. Toda a sua maneira de ser se tinha adulterado, transformando-se num semítico e egoísta.
Para ele só contava era o trabalho, não passando eu não passava de uma empregada como fui durante anos nos Miraflores. Quando participei ao meu patrão Benjamim que a minha missão e dedicação à casa estava a acabar, por razões de uma nova vida, o meu velho patrão, chorou nos meus ombros a agradecer toda a dedicação e fidelidade que tive com ele como para toda a família para ao mesmo tempo me dizer que «as portas da casa estarão sempre abertas para ti Mariana».
Ao dar-me a semanada para o sustento da casa exigia que lhe apresentasse os comprovativos das compras, criticando-me sempre do dinheiro que gastava quando eu própria tentava poupar a todo o custo. Obrigava-me que antes de ir à loja, outras percorresse, a fim de saber onde estavam as «coisas mais baratas».
Sentia orgulho na humilhação que me fazia sentir como ainda sentia gozo, quando lhe dizia, da chacota que algumas pessoas faziam nas minhas costas quando passava por elas. Se tivesse o azar de lhe dizer ou de as criticar, cinco dedos poisavam logo na minha cara. Algumas vezes, o sangue que jorrava do meu nariz se misturou com a sopa que alimentava o meu fraco estômago.
Controlava a quantidade de refeições que colocava em cima da mesa exigindo que as sobras ficassem para as refeições seguintes. Pudera, ele comia na cantina do posto, logo não tinha problema algum. Ai de mim, se voltasse a casa e existisse sobras.
Tornou-se um obcecado pelas terras do campo. Todo o tempo livre era ocupado no amanho da terra. Se tudo estivesse como desejava, em vez de me fazer companhia, seguia para outras fazendas do pai a fim de repetir o que na dele fazia.
Chegava a casa às tantas da noite todo sujo e mal cheiroso. Por mais que tentasse chegar junto dele para lhe dar atenção ou o ajudar naquilo que fosse preciso, a resposta era sempre a mesma coisa: «vê lá se não tens nada para fazer, que uma mulher não deve estar sem fazer nada?»
Tudo aquilo que sonhei se estava a perder. Não desejei nada disto. Os meus sonhos diluíam-se dia após dia e a desilusão começou a fazer parte do meu futuro, deixando de ter sonhos no momento em que levei duas valentes bofetadas na cara por não trazido o maldito papel do pagamento de um pacote de manteiga para se seguida ser acusada de gastadora e mandriona.
O mundo desabou em cima de mim neste exacto momento. Deixei de ser quem era para passar a ser um farrapo humano e apenas uma serviçal, onde não tinha direito a opinião nem a ser tratada como um ser humano.
Os dias e as noites passaram a ser um tormento, que só de saber que ele vinha ou estava em casa, toda eu tremia de medo pela mais pequena coisa que pudesse fazer mal. Passei a ser uma escrava e uma criada para todo o serviço.
Centenas de refeições que tomei na companhia do homem, que julgava me fazer a mulher mais feliz, em completo silêncio e receio de receber a qualquer momento um valente tabefe na cara de alguma coisa que tivesse feito ou dito. Um inferno passou a ser a minha vida como no fundo valeta passei a estar por não ter opção de escolha e depender dele.
Quando estava necessitado de aliviar os seus desejos, até na cama eu mais não era do que um objecto que tinha por obrigação de abrir as pernas para que ao entrar dentro de mim despejasse os seus espermatozóides. Tudo deixava de fazer sentido.
Tardes e tardes que levei na marquise da minha casa olhando para o horizonte com as lágrimas correndo-me pela face, cegando-me o caminho do futuro e destruindo tudo aquilo que imaginei na minha cabeça carente de carinho e tolerância.
Como é possível uma pessoa que demonstrava ser o melhor homem do mundo, transformar-se num grau de transformação fazendo com que eu nunca me tenha apercebido de uma faceta omitida com toda a hipocrisia?
Num domingo de Páscoa, um dia simbólico para quem me prometeu o melhor do mundo, que quando criança, mesmo numa ambiente de família desunida, era festejado com todo a crença cristã e onde não era permitido a quem quer que fosse demonstrar qualquer tipo de destrinça – era o único dia de família, sobrepondo-se ao Natal, chegou Tobias vindo antes do previsto e depois de mais um dia de trabalho de uma fazenda, chegado a casa, não tendo o jantar ainda pronto, deu-me um valente tareão que teve que me levar ao hospital para o diagnostico acusar fractura de duas costelas.
O período menstrual começou a atrasar e não me foi difícil encontrar a razão de tal. Pedi-lhe dinheiro para ir ao médico. Caiu o “Carmo e a Trindade”. Na nossa casa não era permitido haver doenças e muito menos fingimento. Só a custo lhe consegui fazer ver que não andava bem de saúde como me sentia mal.
Depois de um valente sermão é que me deu a quantia certa para ir ao médico. Quando lhe dei a noticia que estava grávida nem um beijo ou um abraço recebi. Senti-me perdida neste mundo como usada e abusada por tudo e por todos. O homem que tanto amei e em quem tanto acreditei era um ser frio e maldoso.
O mundo é cheio de paradoxos. Sempre que podia, ainda estava Tobias na cama e já eu estava, de madrugada, na cozinha preparando o pequeno-almoço para lhe levar à cama. O agradecimento era palavras agressivas, criticando o que fiz como «mariquices de luxo»; todos os dias lhe deixava em cima da cadeira a roupa para vestir.
Tinha o cuidado de a deixar bem posta para que não se enxovalhasse, mas de pouco valia; tentava lhe dar as melhores refeições para que nunca tivesse razão de queixa; se estava mal disposto, fazia tudo para contornar a situação de maneira que soubesse ver as coisas pela positiva; se tinha alguma ponta de febre, ia logo numa correria à farmácia, descrevendo os sintomas para que me fosse recomendado o uso dos medicamentos aconselhados.
O reconhecimento eram palavras ofensivas e degeneradas que levavam com que na casa de banho chorasse pela minha pouca sorte como da forma que me deixei envolver e entregar de corpo e alma a quem julgava amar-me.
Puta de vida a triste sorte a minha. Ainda hoje continuo a perguntar a mim própria como me deixei levar e como nunca descobri o lado mau de Tobias ou como é possível uma pessoa ter duas facetas entranhadas no corpo?
Nove meses depois nasceu Beatriz. Era uma da madrugada quando me foi mostrada para de seguida ser colocada em cima da minha barriga. Parecia a imagem da Senhora da Encarnação; carne da minha carne e sangue do meu sangue.
Meu Deus!.. como chorei lágrimas de alegria para ao mesmo tempo sentir uma sensação de sofrimento. Todo o meu corpo se arrepiou. Uma hora que me azarou o meu futuro como para quem desejei que não passasse, pelo que a mãe tinha passado e estava a passar.
Maldita coruja que passou junto da janela quando do nascimento de Beatriz a caminho de um qualquer cemitério. Até a enfermeira que assistiu ao parto, rogou pragas para o bicho nocturno. «Raios partam a maldita coruja que não tinha outra hora para passar!» Quando me transmitiu o sucedido, desmaiei imediatamente para o médico me acusar no bom sentido de «banana».
Fiquei a saber que o meu futuro deixava a partir daquele momento de ser um turbilhão de penar para passar a ter como companhia um tormento para quem acabava de nascer. O tempo se encarregaria de mostrar que o que tinha sofrido até àquele momento mais não era do que um quarto do que faltava para sofrer.
Em tempos passado houve quem me dissesse que há castigos que fizemos noutras vidas que tem de ser pagos na presente. Se fizemos mal a outrém e não expiamos o que ficou assente no nosso livro, numa próxima passagem pelo terreno se cumprirá o ajuste de contas.
Eu, que li a Bíblia da primeira à última página, sei que algures, em substância, o Rei pediu a Deus que lhe desse mais anos de vida e que deixasse realizá-lo algumas vontades. Deus respondeu-lhe que não seria possível pois «...as suas mãos estão sujas de sangue».
Algo de especial aconteceria na geração seguinte. “...O senhor apareceu-lhe em sonhos durante a noite, dizendo-lhe: «Pede o que queres que te dê». Salomão disse: «Vós usaste de misericórdia para com David, meu pai, porque ele andou na Vossa presença em fidelidade, em justiça e rectidão para convosco; concedeste-lhe a Vossa grande misericórdia, dando-lhe um filho que hoje está sentado no seu trono....».
«Dai, pois, ao Vosso servo um coração sábio, capaz de julgar o Vosso povo e discernir entre o bem e o mal.....». Agradou ao Senhor esta oração de Salomão e disse-lhe: «Porque me fizeste este pedido, e não pediste longa vida, nem riqueza, nem a morte de teus inimigos, mas sim inteligência para praticar a justiça, vou satisfazer o teu desejo; dou-te um coração tão sábio e inteligente, como nunca houve igual antes de ti, nem haverá depois.
Dou-te além disso, o que não me pediste: riquezas e glória, de tal modo que não haverá nenhum rei que te iguale durante toda a tua vida. E se andares nos meus caminhos e observares os meus preceitos e mandamentos, como fez David, teu pai, conceder-te-ei longa vida (I Reis, 3)».
Se Deus existe, porquê tanto sofrimento? Que mal fiz eu para ter que passar por este calvário? A vida é dois caminhos paralelos que nos obriga a escolher um, mas dos quais, não sabemos aquela que nos está destinado. É neste momento que o divino nos dá livre arbítrio para escolher aquele que temos que escolher, como que, tenhamos que saber qual é o melhor.
A conjuntura mais difícil para nós, seres humanos, sem acesso ao que Deus nos colocou no caminho. A nossa hesitação e dificuldade leva-nos – levou-me – a preferir o errado. Maldição foi a escolha que fiz, quando deveria ter optado pelo oposto.
Sempre me ensinaram que Deus não nos dá peso superior às nossas forças. Hoje tenho dúvidas deste ensinamento para ao mesmo tempo continuar a acreditar que nada acontece por acaso como crer que dias melhores virão, mesmo que o escuro e a dor seja a minha companhia.
Passada a alta do médico, não tinha ninguém à nossa espera. Valeu-me a amabilidade da recepcionista que requisitou um táxi para nos levar a casa. Uma casa que passou a estar escondida das estrelas como a Lua deixou de iluminar que devia. Tobias ao chegar a casa já à muito que lá estávamos. Nem um beijo me deu, para olhar apenas para um fruto que não era o fruto do amor.
Beijou a filha na testa com um sorriso de alegria, comovendo-me pela sua acção, porque vi nos seus lábios uma certa alegria. Esperava que me pedisse Beatriz para senti-la nos seus musculosos braços. Mas não, olhou para mim dando-me como recomendação «trata bem da nossa filha».
Não estava a acreditar no que estava a ouvir. Mordi os meus lábios de raiva pelo sucedido, prometendo, mais uma vez, a mim própria que tudo faria para que nada faltasse e acontecesse à minha querida filha. Promessas vãs, porque o destino se encarregaria de contrariar aquilo que eu desejava.
Lutei anos e anos para que tudo se compusesse, a fim de que nada faltasse. Bem enganada estava como enganada andei a minha vida toda, restando-me a aceitar as coisas como elas querem que sejam. Aprendi assim que devo viver a vida dia após dia e deixar de fazer planos para o futuro mesmo que os oráculos digam que a vida merece ser vivida.
Os anos decorreram numa agonia permanente e em nada diferente do ambiente enraizado. Tobias era um pai ausente e distante, continuando a viver o seu mundo e formando a vida no inferno para quem com ele vivia, mesmo que no meio existe uma criança.
Pouco ou nada nos ligava como se preocupava se as coisas iam bem ou mal ou se dinheiro era preciso para qualquer coisa. Beatriz penso eu, foi mais um encargo que lhe surgiu na vida ajudando a esvaziar a sua cheia carteira ou a sua conta bancária. Minha filha habituou-se, a partir do momento que começou a compreender, que o pai era um estranho e um pai ausente nas nossas vidas.
No dia em que a levei à escola pela primeira vez senti um vazio dentro de mim. Via as outras crianças acompanhadas dos pais para ver nos olhos de Beatriz um silêncio banhado num mundo de distância ou de interrogações. Bem no seu fundo, sabia que ao lado dela faltava qualquer coisa.
Por razões que nunca consegui apurar, nunca se abriu para mim como nunca me perguntou porque o pai não era como os outros e porque neste dia não estava presente. Uma dor que ainda hoje me atormenta. Talvez, por ser uma criança fechada, nunca consegui com que se abrisse um pouco para comigo nem me dissesse o que ia dentro da sua cabecinha.
Certo, é que: falássemos no quer que fosse, estava sempre distante e alheia às conversas que não lhe interessassem como ainda criou um mundo muito seu. Assustava-me o meu futuro como o de minha filha, algo, que só uma mãe sente. Sentia que nada do que tinha imaginado se iria realizar, antes pelo contrário.
Ao lembrar-me da noite em que nasceu e da coruja que agoirou o nascimento do ser mais maravilhoso da minha vida, mirrava-me toda só de pensar naquilo que poderia acontecer. Chorava como uma desalmada para beber as minhas próprias lágrimas que endureciam o meu coração.
A minha intuição não me enganava. O meu futuro e de minha filha estava traçado de cruzes que nos acompanhariam para o resto da vida. Algumas bem pesadas e difíceis de suportar; demais, para quem nunca fez mal a ninguém.
Levantei-me antes da alvorada do dia para ver se alguma estrela andava perdida, mas o décimo mês tinha começado mal. As nuvens tinham-se embrulhado no Céu fazendo com que o dia começasse bem escuro. Não bastava o vento frio e húmido que assobiava como uma cotovia, vindo do lado de lá da montanha, quando mais o Inverno se antecipar às datas que a natureza determinou.
Perdidas no ar algumas folhas castanhas e secas pareciam teimar em entrar no espaço frontal à minha casa que por pouco não passavam por debaixo da cortina que impedia as moscas de entrar em casa por causa do estrume que Tobias teimava em ter no fundo do quintal para fortalecer a terra.
As nuvens faziam figuras geométricas que até pereciam almas de outro mundo, juntando-se com rapidez umas nas outras ao ponto do claro se tornar assustador. O dia estava triste e desolador.
Ainda há poucos dias o calor secava a terra com uma euforia que o poço começava a dar sinais de secura obrigando as que as poucas flores que tinha nas redondezas da casa se dobrassem ao ponto dos ramos mais frágeis começarem a ceder por falta de força.
Vindo se não sei de onde, ouvia um barulho estarrecedor que me levou a ir até ao fundo do quintal para ver ou ouvir de onde vinha o incómodo. Eram as telhas de zinco que serviam de telhado à barraca de arrumações dos utensílios agrícolas.
Alguns parafusos que as seguravam aos barrotes tinham cedido com a força do vento, fazendo com que abanassem ao ponto de uma se despregar, que por pouco não me apanhava em cheio.
Regressada, Beatriz olhava-me de longe, esperando que viesse para lhe dar a primeira refeição do dia. De tão apavorada estar, logo que me viu, entrou para dentro para me dizer que estava com medo do vento e das árvores. Agarrei nela para a abraçar e colocá-la ao meu colo dizendo-lhe ao mesmo tempo que o Inverno estava a chegar e que não tivesse medo, porque eu estaria sempre junto dela.
Amar um filho é algo maravilhoso, mesmo que tudo que idealizamos para ele nos saía às avessas, carregamos no nosso ventre um peso que faz com que os dias sejam um mundo cheio de interpelações paras aos poucos sonharmos com um futuro ao avesso do que queremos.
Depois ver todas as transformações que vão surgindo, enquanto cresce, concluímos que o divino nos deu uma agradável incumbência. A alegria, a dúvida, os medos do medo, persegue-nos, enquanto vamos assistindo às mutações das estações r ao passar das luas. Choramos de alegria, como de tristezas para sorrirmos de um novo ser que desperta e se desenvolve dias após dia. São estas coisas que nos dão força, mesmo que ao nosso lado outras vão desabando.
Tantas vezes olhei para a Lua Cheia, perguntando-lhe pelo dia de amanhã. Sentia nestes momentos um vazio que em vez de me concentrar, dava a escuridão, uma sensação momentânea de estar a cair para um abismo parecendo-me que tudo se enrolava como as ondas do mar, passando a ver coisas do outro mundo.
Silhuetas estranhas embrulhavam-se nas profundezas da minha alma, enquanto deambulava com figuras sinistras, parecendo-me quererem falar comigo, não percebendo eu, as suas mensagens ou sinais.
Uma ave estranha, avisava-me que uma nuvem escura ia entrar na minha família. Monstruosa e assustadora era o seu formato. Com uns olhos pretos, saía o sofrimento e agonia; ao mesmo tempo abanava as asas, não tocando no presente mas escrevendo palavras sem nexo que o amanhã mais não seria que uma flagelação bem difícil de aguentar.
De seguida, olhava-me com uma forma esdrúxula, como me querendo dizer que dali para diante tudo seria “dor e lágrimas”. O Anjo que acompanhava este monstro escutava atentamente, deixando-me a dúvida se realmente os anjos são enviados de Deus. Nada exclamava para tudo permitir. A fé que tinha do que aprendi e me foi ensinado estava a se desfazer.
Penas de ódio caíam das longas asas do maquiavélico animalesco, que repetia constantemente ser eu quem devia suportar o que certos antepassados não sofreram. Um castigo do Além que por razões não explicitas tinha sido atribuído à minha pessoa como a quem o ajuste tivesse sido criado por mim. Vozes vindas do lado de lá, zumbiam da sentença, escarnecidas de maldade para em coro afirmarem “... tu és apenas a ponte do caminho. O Caminho que vai dar à encruzilhada e que tua filha será a pessoa a quem está destinada a missão do cumprimento da praga da terceira geração de quem tanto mal fez à adorada divina que deixou o mundo com tanto por fazer”.
Quem seria esta desgraçada? Nunca me foi dito como até hoje estou por saber quem não cumpriu a “folha da vida”, calhando-me a mim ser a trave que quando de desmoronar, cairá em cima de quem mais amo neste mundo, a Beatriz.
Ave do Diabo que numa noite que o escuro pairava no ar, leu com agoiro o meu futuro como de quem, sem culpa alguma, seria a desgraça da minha vida para ser uma desgraçada na vida. Tudo passou a estar agoirado. Até as corujas teimaram estar com os seus cantos no cimo do telhado da minha casa mesmo que o cemitério estivesse entre os cornos da lua e a menos de meia légua.
Despertava do pesadelo com o chão molhado de lágrimas com sabor a vinagre de tanto chorar. Um choro inócuo vindo de não se de onde por que nem me lembrava de derramar o que estava abaixo de mim. Julgo que adormeci pelo importunação, ficando com a duvida do imaginário ou da realidade.
Uma imagem gigantesca que me acompanhou durante tanto tempo que lhe perdi o conto. Uma amargura contínua e presente, levando a quando pisava os carreiro, sentisse que a terra me fugisse debaixo dos pés para que cair de seguida na terra amarela de tão sufocada estar.
Tudo continuava mal para mim e Beatriz. Na véspera tinha pedido a não sei quem que o dia seguinte fosse com os anteriores porque ia ser um dia especial. O meu maior desejo era que fosse recordado no futuro para que alguém pudesse dizer «Foi o dia mais feliz da minha vida». Mas a quem eu pedi, não ouviu as minhas preces, aliás como outras, fazendo com que tudo saísse ao contrário. Nunca soube se fui eu que andei de candeias às avessas ou se o mundo entendeu contornar os meus desejos.
Era o dia em que Beatriz ia para a escola pela primeira vez. Um dia muito especial, daqueles que as árvores começam a tiritar de frio. Levantou-se pelas oito horas, dei-lhe banho e vesti-lhe uma saia de fazenda com uma blusa branca (em cima uma batinha branca, porque era obrigatório na época), levava soketes brancos com uns sapatinhos pretos, cabelo curto com uma fita de cetim branca e uma mala às costas com os seus livros. Era a menina mais bonita da sala. Ironia dos destino ou não, calhou-lhe a escola e sala, frequentada por seu pai quando criança. Depois de cumpridas as formalidades, olhei para os seus passos, enquanto se dirigia para a aula, onde o professor esperava os seus alunos. Só no fim de a porta ser fechada me retirei sentindo nos meus lábios um gosto como nunca tinha sentido.
As lágrimas corriam como a água do rio pelas minhas faces por causa da felicidade de saber que Beatriz iniciava o ciclo mais importante da sua vida. Se soubesse o que sei hoje, nunca a teria levado à escola, preferindo que fosse uma ignorante, mas o futuro escapa-nos como um enguia das nossas mãos. Nunca mais nada seria como era. Se tinha vivido até aqui num sofrimento atroz passaria a viver no Inferno.
Os primeiros quatro anos da escola foram maravilhosos para mim e Beatriz. De ser tão boa aluna, o professor elogiava-me o comportamento e a inteligência da aluna que me deixava vaidosa e orgulhosa de quem aprendia com tanta facilidade, demonstrando a quem lhe ensinava como aos que com ela andava aprendendo, que a facilidade de captar como desenvolver o que ouvia a aprendia, era analisado até ao pormenor, perguntando ao ensinador as duvidas que lhe assomasse, de uma forma entendida que o dito às vezes tivesse tormento em explicar de uma forma simples aquilo que lhe solicitava.
Bem cedo começou a ter um corpo bem formado como crescido demais para a idade. Até penso que Beatriz era adulta demais para a idade que possuía. Ainda ia no segundo ano de aprendizagem e já me fazia perguntas de uma rapariga adulta. Das poucas conversas que tinha com a mãe, eram todas sobre o que ouvia dos rapazes que a galanteavam de piropos e a convidam para sítios isolados a fim de poderem ver o seu corpo. Tudo isto me assustava derivado à sua ignorância e curiosidade. Confesso que nunca fui muito aberta para com a minha filha. Não, por constrangimento mas sim por ignorância. Também não o sabia e para complicar mais as duvidas que me apresentava, a sociedade estava sofrendo uma enorme transformação. Os tempos estavam a mudar de uma forma vertiginosa, levando-me a que não soubesse como seria os dias de amanhã; depois a dificuldade que tinha em me poder abrir com alguém que soubesse ou fosse mais aberta do que eu. Nem estas pessoas me rodeavam porque a minha liberdade estava usurpada pelo meu senhor que entrava em paranóia sempre que eu tinha que ir à rua.
Por razões que ainda hoje não entendi, eu, que gostava de passear e descobrir todos os dias, coisas que a natureza me metia no caminho, nunca encontrei os motivos das razões que me levaram a fechar dentro de casa. Se perguntas eram feitas exigindo respostas que desconhecia, perguntar a quem sempre julguei saber mais do que eu como obrigação era sua também ajudar-me nas incertezas ou dificuldades, a resposta era sempre a mesma.
- Não sei! E, não admito conversas dessas aqui em casa, como que fosse culpada do que a nossa filha perguntasse as duvidas que a atormentavam.
Ao mesmo tempo comecei a aperceber-me de quer a vaidade estava a instalar-se nela, fazendo com que os rapazes ficassem enfeitiçados pelo corpo esbelto como dos seus olhos azuis que penetravam a alma de quem olhasse para eles; um nariz recurvado, lábios cortantes. Para a tornar ainda mais bonita, olhos azuis que foram uma deixa genética de minha avó Adelaide. Uma mulher que ainda conheci mas envelhecida pela vida que o marido lhe deu. Tinha que trabalhar como um homem para que o património não diminuísse. Muitas vezes ouvi que os «homens não gostavam de trabalhar a seu lado».
Era mais forte do que o sexo oposto e cavaca com uma desalmada que quem trabalhava com ela, não sabia onde ia buscar tanta força. Alta, de corpo seco mas com uma voz angelical que a fazia seus conselhos serem ouvidos e respeitados porque dentro dela estava a «experiência da vida e a dureza para que a broa não faltasse aos seus». Todos os seus conselhos eram tomados em atenção.
Tinha um cabelo sempre bem arranjado, numa mistura de preto e grisalho enrolado num carrapito e tapado por um lenço de seda. Servia-lhe ainda a longa cabeleira para servir protector à cabeça, quando transportava os alguidares de zinco, cheios de uvas para serem despejados na dorna, quando da altura da vindima.
Lembro-me que me assustava quando pegava em mim ao colo e me olhava de frente. Aquele azul profundo e claro entrava dentro de mim, fazendo-me com que me sentisse pequenina e medrosa, tal era a intensidade que sentia nos seus lindos olhos.



*
A “Colectividade Recreativa e Cultural do Mouchão” mais conhecida por “Casa do Mouchão” por se situar de frente para o caminho que leva os trabalhadores agrícolas para a herdade do mesmo nome, é o único espaço social das redondezas. Foi fundada em vinte e dois de Outubro do ano de mil novecentos e trinta a um. Quem a fundou foi o velho Paulão um grande industrial de carnes. Estimado que era da população pelas acções beneméritas que fazia em prol dos mais carenciados, retribuiu o carinho dos mais necessitados, mandando construir a sociedade mais moderna, num raio de cinquenta quilómetros, mandando escarrapachar no canto superior do lado direito da parede frontal da associação, uma placa de mármore com os dizeres “ Cultura e Recreio para toda a gente.” na parte de baixo, “ Este património foi oferecido pelo senhor Paulão Costa, benemérito da região e proximidades”. 22.10.1931). Com letras garrafais gravadas a maçeta e escopro pelo único canteiro, está para perdurar o nome de quem tudo deu à terra.
Uma colectividade, que em abono da verdade tudo um pouco tem como espaço de sobra existe para quem a frequenta, seja sócio ou não porque o seu fundador pouco se importava de quem a visitasse.
- Quantos mais vierem melhor para a terra e melhor para nós, especialmente a minha pessoa, já que fui o obreiro da dita. Sejam bem vindos e que se lixem os estatutos», assim foi e assim continua a ser.
No rés-do-chão, um bar para no meio existir uma enorme sala de estar, onde se lêem os jornais, se ouvem as noticias e se fala na vida dos outros. Do outro lado, a recepção para em anexo estar o gabinete da direcção, a sala dos trofeus. Na rectaguarda o maior salão alguma vez visto numa colectividade de aldeia, que permite a realização dos mais variados espectáculos.
Nas tardes de domingos, obrigatório se torna levar a efeito uma matiné dançante para todas as idade e onde se pratica ainda a tradição das “Damas ao Bufete”. Um salão que é conhecido, por todo o além, de tão boas condições continuar a ter, mesmo que de tempos a tempos da parede caía bocados de caliça.
No piso superior: Uma sala de jogos, onde predomina o dominó, bilhar, matraquilhos e outros passatempos. Ao lado, outra sala, conhecida pela “Sala de Televisão e de Fumo”. Por cima dos dois andares, pequenos “Gabinetes de Secção” isto é: cada secção desportiva ou cultural do clube, tem direito a um pequeno gabinete para que os seccionistas possam reunir em dias determinados, aliviando assim o uso da “Sala da Direcção” que apenas é destinada aos que foram eleitos e deliberam, como mandam executar, sobre tudo que diga respeito à “Casa do Mouchão”.
Quem não estiver de acordo com as decisões do órgão superior, só tem duas possibilidades; ou vai com as ideias para outra associação, que por acaso não há outra nas proximidades, ou acata o que transmitido foi com o compromisso de não criticar na sala de estar aquilo que foi ordenado.
O contrário, é meio caminho andado para levar uma repreensão por escrito, após comunicado por algum funcionário, que não tendo nada para fazer, ocupa o tempo passeando para traz e para diante, ouvindo o que é dito como deitando farpas para os presentes, a fim de saber se algum contestário existe perdido no meio dos sociáveis.
A existir, mesmo que da oposição seja, é logo transmitido em formula secreta, com acrescentos muito próprios, a quem de direito, após detalhado pelo informante. Assim agrada este a seus superiores como quando da mudança eleitoral, boas recomendações serão dadas a quem de novo vai gerir os destinos do “Mouchão”.
Uma sociedade com imensos sócios e uma actividade em franca expansão que faz parecer o espaço como a redacção de um grande jornal. Não é por acaso que o pasquim da localidade não passa da cepa torta, porque quando publica as novidades já os sócios a sabem «há mais que tempo».
Quando eleito o candidato a presidente e tomada a respectiva posse, passa a ser a pessoa mais importante do burgo. A ele todos se dirigem e tudo lhe pedem. O poder clubista e social, depende do que decidir, seja para o bem seja para o mal. Ai, que quem interferir nas suas decisões.
Directa ou indirectamente, nada pode acontecer na aldeola sem que seja de conhecimento do presidente que, para tudo, tem uma solução, até para a venda de terrenos, cujos preços são aconselhados por ele, a fim de não haver especulação, caso contrário teria de baixar a cobrança nas suas comissões pelo seus pareceres técnicos e intermediários no negócio. Não é por acaso que a disputa para o lugar de presidente do “Mouchão” é carregado de episódios estranhos e duvidosos.
Seja como for, a “Colectividade Recreativa e Cultural do Mouchão” é conhecida em Portugal e arredores, quer pelos seus fins quer pela sua actividade de lazer. As matinés dançantes que nela se realizam ultrapassaram fronteiras. Vem gente de todas as bandas para assistir à diversão por ela organizada. Conjuntos musicais que aqui venham, mesmo que não prestem para nada passam a ser dos melhores, porque as décadas de uso são uma referência a quem ali toca melodias. Para os que não sabem dançar, a direcção coloca à disposição uma professora de dança que ensina a dar os primeiros passos. Semana sim, semana não, uma das matinés são para os mais jovens, onde lhes é oferecido temas musicais, conforme a época e idade. Não é por acaso que nas “ Tardes para a Juventude” o salão rebenta pelas costuras, tal é o enchente que ali poisa, vinda alguma, não se sabe donde. O suficiente para a agremiação ter sido considerada de “Utilidade Pública”.
Aos adultos e mais idosos, estes serões, conta com imposições dos mais novos, que gozam e enxovalham com ditos de humor negro para que o ambiente não seja contaminado pelo passar dos anos daqueles que teimam em ver às escondidas cenas do presente, algumas que: aqueles que já morreram à mais de trinta anos, se vissem o que se passa no interior da casa que o Paulão ofereceu ao humilde povo do “Mouchão” abalavam a fugir para de onde vieram. Que diga o manco Luís, continuo vitalício e bem recomendado por direcções após direcções, que após o final das horas dançantes tem que vistoriar todas as instalações a fim de verificar se encontrou alguma anomalia. Raramente encontra mas descobre coisas que não deixam margens para dúvidas, ou seja: de não se dançar apenas, mas outras coisas se fazerem.
*
De uma forma subtil e numa emaranhação de frases, quando dei por isso, Beatriz, começou a chegar tarde a casa. Perguntei-lhe as razões, argumentando que gostava de ir à casa dos amigos para trocar ideias e fazer “trabalho de Grupo”. Na minha ignorância e confiança inabalável de mãe, sempre acreditei no que me dizia, porque, também ouvia os camaradas de escola, quando passavam por casa para falarem com ela ou a acompanharem até à escola que estes trabalhos mais não era do que uma exigência da escola.
Amigos, que alguns não me inspiravam confiança como de amores não tinha por alguns, por causa da maneira que olhavam para a minha filha. Esperta que era como de boa oratória usava para mim, quando lhe perguntava o quer que fosse, mais uma vez na minha inocência não me apercebi que Beatriz já à muito tinha descoberto uma coisa que nem eu própria me tinha apercebido: que o pai pouco se importando com ela, obrigava a que eu não tivesse liberdade alguma para a vigiar, quando desconfiasse de algo, daqui, ter a certeza que andasse onde andasse, tivesse as companhias que tivesse ou fizesse o que lhe desse na real gana, eu não conseguia, nem saber nem ver, porque Tobias me impedia de ter liberdade, mesmo para saber os passos que a filha dava.
Em vez de me ajudar nos trabalhos domésticos, afinal já ia nos doze anos, as tardes de sábados eram sempre passadas nas casas dos amigos, fazendo trabalhos da escola ou a ouvir musica. Se lhe perguntava qual o tipo de música, respondia-me bruscamente, utilizando nomes de que nunca tinha ouvido na minha vida. Se insistia, acusava-me de má mãe e mão confiar nela.
Restou-me confiar no destino e na Beatriz, que muito para mim, até acreditava, não isentando que às vezes pensasse coisas estranhas. Ainda tentei me aproximar dela para alertá-la dos perigos que uma mulher tem como do que os homens são capazes de nos fazer para levarem avante os seus fins, mas a resposta dela era sempre a mesma.
- Tudo o que me queres ensinar, já sei, porque falo dessas coisas com as minhas colegas que sabem mais num dedo do que eu no corpo todo.
Desmerecia com o que dizia como os discursos usados que nunca imaginei estarem cheios de mentiras e raiva; raiva que nunca consegui encontrar a razão como dos motivos que levaram a andar a léguas de distância de uma coisa que estava tão perto de mim, para não dizer, dentro da minha própria casa.
Beatriz começava a ter um corpo de mulher como uma astúcia que me intrigava, visto não saber de onde vinha como de quem lhe ensinava, tendo em atenção que o meio em que estávamos inseridos, mais não era, como é, do que um pacóvio lugar, apenas conhecida de quem frequenta o espaço dançante, cujos utilizadores acabam por desconhecer as artérias que da mesma fazem parte por não passarem por elas ou de as novidades do dia acontecer no “Mouchão”. Um sítio onde tudo é permitido aos homens e inacessível às mulheres. Neste local o tempo não para. Tudo se sabe e tudo é falado; quer seja dos residentes quer das notícias dos jornais.
As suas maminhas começavam a ganhar forma como começou a querer usar saias um pouco acima dos joelhos, que sentada, permitiam ver um pouco das pernas. Já as ciganas dizem há séculos que «as mulheres são impuras da cintura até aos pés, de modo que mostrar as pernas é uma ofensa muito grave». Não queria que Beatriz andasse como as ciganas, mas que, minimamente evitasse a cobiça do homem.
É verdade, que nas muitas tardes passadas no clube, tinha acesso a programas televisivos que na nossa casa era algo que não podia ser visto, porque segundo Tobias era desnecessário para além de ser mais uma despesa. Sempre o dinheiro e semitismo que quando delirava até quase afirmava que os antepassados do pai de minha filha deveriam ter sido de origens judias. Apenas via e vivia para o vil metal. Estava acima de tudo e de todos.
Foi nas “férias grandes” que Beatriz começou a frequentar algumas matinés, levando-a aos poucos a chegar tarde a casa. Almoçava, arranjava-se e perfumava todo o corpo, com um perfume que inicialmente me vi grega para saber a marca como o seu custo e origem. Vim a saber que tinha sido comprado no “Loja da Etelvina”; agora se por ela ou por intermédia pessoa nunca consegui saber. Uma coisa sabia, tinha aroma a jasmim. Uma vez pedi-lhe que me deixasse utilizá-lo a e resposta mais não foi do que:
- Atreve-te e nunca mais pões os calcanhares no meu quarto, como seu eu nem mãe dela fosse e na minha casa não pudesse circular por onde bem entendesse.
De dentro do meu quarto, sempre que julgava aproximar-se a hora de chegada, finda o tempo das danças, metia-me por detrás das cortinas do meu quarto, sem ninguém me ver, esperando a sua chegada ou quem a acompanhava. Conclui facilmente que não preferia os seus colegas de escola mas sim rapazes mais velhos, alguns com corpo de homem e experiência na vida. Assustava-me e repreendia no bom sentido para depois ser insultada, que às vezes só me apetecia lhe mandar com a panela à cabeça. Se ao safado do pai, tentava detalhar o visto e acontecido, era como estivesse a falar para as paredes. Em vez de me ajudar na difícil missão de mão, esposa, mulher passiva e criada para todo o serviço, as minhas dúvidas acabavam com a solução mais fácil: um estaladão na cara quando não era o resto da comida que estava no prato. Se levantasse a voz ou mostrasse qualquer tipo de superioridade, então em vez de uma bofetada, sentia as suas fortes mãos no meu corpo para durante alguns dias andar toda dorida.
Beatriz sabia com o que podia contar como o desinteresse do pai por tudo que dissesse respeito à família, mas especialmente a ela. Dava-se ao luxo de me responder, sempre que a ameaçava, de deixar a ameaça:
- Se achas que ando a comportar-me mal, o melhor que fazes é dizeres ao pai. Talvez ele se preocupe mais comigo?
Não tinha poder maternal nem pulso em quem andou dentro de mim. A minha intuição dizia-me que algo de grave haveria de acontecer como me avisava que estava a perder o controle da situação. Uma das preocupações que tinha era saber a escala de serviço do pai. Aos domingos aparecia-me em casa a altas horas. Se lhe dizia para jantar e lhe chamava a atenção das horas tardias, arrogantemente voltava-me as costas e nem uma palavra me dirigia.
Sinto-me cansada. Os anos começam a pesar. Passam mais rápido que um relâmpago. Ao meditar começo a fazer um resumo do que já passou e do que já passei.
- Raios partam a minha vida!
Olho para o espelho, vejo rugas profundas no meu rosto que outrora era uma como uma imagem celestial. Agora mais pareço possuidora de raízes vindas das entranhas da terra, de tão vincada estar; olho para o meu cabelo que era a razão da minha vaidade para agora ver quantidades de fios brancos, tornando grisalho o que foi castanho.
Sento-me no banco da marquise para que com a claridade do Sol, que até a vista me está faltando, possa ver melhor a pele das minhas mãos.
- Oh, Meu Deus! Como está a ficar enrugada-
O meu corpo está a sofrer uma profunda conturbação. Estou a entrar em decadência. Não é possível que isto me esteja a acontecer. A continuar assim, quando chegar aos cinquenta, figuro-me uma velha carcomida. Até nas minhas mãos estão a nascer como cogumelos flores de cemitério, que segundo os mais antigos significam que o princípio do fim está chegando mais depressa do que o previsto.
Lembro-me da minha juventude e do bom que a vida me deu sem nada lhe ter pedido; dos tempos de criança em que me sentava no alpendre da minha casa, vendo os miúdos a virem da escola em bandos que mais parecia pragas de gafanhotos; de ouvir o chocalhar dos guizos das ovelhas do pastor Grazina, vindas da pastagem da Serra de Mira; das madrugadas em que me levantava cedo para ver as estrelas a saírem do caminho do Sol porque não há nada mais bonitos do que fim da noite com o nascer do dia; das tardes que vagueava pelas valetas e levadas para apanhar papoilas; do tempo em que parecia a Rainha do Sabá; de tão bem ser tratada nos Miraflores; das passadas que dava nas Lapas até à cidade; quando pensava estar casada e nos momentos em que estivesse cansada querer descansar no colo do meu amor; no casamento meti os meus sonhos, as minhas esperanças, a vontade de viver e de vencer: mas acima de tudo o prazer de sonhar. Mal sabia eu que no fundo do cálice do amor estavam depositadas as gotas mais amargas.
Como fui e como estou? Realmente decifrar o futuro costuma ser uma maldição, visto que não se pode mudar o que há-de acontecer.
Eu, que julgava ter encontrado no homem que me deveria amar, a minha âncora para o resto da vida, todos os meus sonhos se desmoronaram para a vida mais não ser do que fanicos.
Lembro-me dos meus catorze anos, altura em que comecei a interessar-me pela leitura. Já não me recordo do título do primeiro livro que li, mas sei que o autor se chamava Soeiro Pereira Gomes. Uma frase que lá estava, nunca mais me esqueci “ Para os filhos dos homens que nunca foram meninos”.
E as filhas dos homens que nunca foram meninas? Como é bom dizer meninas. Até a palavra é ternura. Como gostei de imaginar que um dia – lá muito longe – um dos meus filhos fosse uma menina para que tivesse aquilo que nunca tive nem fui?
A vida é traiçoeira e velhaca. Não me deu o que mais desejei. Até Tobias que me tinha prometido sustentar, enquanto meu marido, nunca consentiu enquanto casada, trabalhasse para outrém. Dele dependia como dele era sua escrava.
Até os livros sumiram da minha vista como perdi o gosto de ler quando mais precisava. Para me contrariar, meu marido me proibiu de ir à biblioteca buscar livros para que a minha cultura não fosse superior à ignorância de quem nada sabia, excepto cuidar da terra.
Ao olhar para o espelho, vejo-lhe dentro o princípio do fim para escutar ao mesmo tempo uma voz dizendo que o «fim da minha vida começou exactamente agora!»
Mal acabei de ouvir esta estranha e desconhecida voz, o vidro desfez-se em migalhas, sem eu lhe ter tocado. Acabava de ser liada a sentença da minha vida, como fiquei a saber que os ventos que se aproximavam não eram os melhores. O caminho que já percorri é mais longo do que me falta percorrer. A minha duvida é, onde e quando terminará a corrida e o sofrimento.
6
Todas as terças feiras costumava ir à “Loja da Etelvina” para reabastecer a minha dispensa para a semana seguinte – um lugar que comercializava de tudo um pouco para ao mesmo tempo ser o ponto de encontro.
Na lista de faltas constava: batatas, vários tipos de massas, produtos enlatados, fósforos, azeite, especiarias, açúcar, farinha, cebolas, alhos, detergentes, fruta, hortaliça e outros produtos de primeira necessidade.
Um dos poucos dias que me era permitido sair de casa e conversar um pouco com quem estivesse na loja, ficando a saber o que aconteceu como do que iria acontecer das doenças deste e daquele e ficar bem informada de outras coscuvilhices.
Foi quando a mãe do Luís, o continuo, se dirigiu a mim, pedindo-me que lhe dispensasse um «minuto de atenção em privado».
Fiquei curiosa pelo “privado” visto que não havia uma amizade por ai além. Pensei para mim própria que deveria ser alguma novidade que me queria dar sem mais ninguém ouvir. No final de ter feito e pago o avio, esperando por ela. Na esquina da casa, encostamo-nos as duas e aguardei que me dessa a contenda.
- Vizinha Mariana, por amor de Deus não leve a mal o que lhe vou dizer. Mas sabe: é que não estou bem comigo própria se não lhe disser aquilo que o meu Luís me disse; para mais quando você mora a dois passos de mim! - Olhei-a com cara de espanto, aguardando o que me iria dizer mais, visto que a sua cara era de preocupação.
- Oh vizinha, como deve saber o meu rapaz há muitos anos que trabalha no “Mouchão”. O seu emprego é de vigiar tudo o que se passa dentro. Um dia destes veio com uma conversa que até me assustou. Para mim, coisa muito grave, porque também sou mãe e sei a vida de desgraçada que leva. Daqui não saber o que se passa com a sua Beatriz – quando ouvi o nome da minha filha, passou-me mil e uma coisa pela cabeça.
- Vizinha, deixe-se de rodeios e vá directa ao que me tem para dizer que estou a ficar curiosa.
- Curiosa D. Mariana? Quando lhe disser o que sei até lhe vai dar uma coisa. Mas vou-lhe dizer. Não se ofenda comigo por favor. Ouça-me e depois faça o seu julgamento como o que entender fazer.
- Que coisa vizinha. Até me está a custar a falar; eu que até falo pelos cotovelos, como sabe e agora a língua está-se a enrolar.
- Fale vizinha, que estou a ficar aflita!
- Olhe, é assim: o meu Luís disse-me aqui há uns dias, numa matiné, viu a sua Beatriz lá na colectividade a «fazer poucas-vergonhas». Estava debaixo das escadas que nos leva para o primeiro andar abraçada ao calmeirão do Carlos. Aquele vadio que anda para aí aos caídos e que até dizem andar metido na droga. Sabe a quem me refiro, não sabe?
- Claro que sei. Infelizmente até sei quem é esse maldito! Mas vizinha, até me estou a sentir mal pelo que me está a dizer. Para azar meu, na verdade lhe digo que já vi esse Carlos a trazer a minha filha a casa por duas ou três vezes
- Ainda bem que me diz isso, porque tinha duvidas se soubesse quem era moço. É filho daquela ordinária que mora debaixo da “Pinheira Grande”. A mãe dele é uma putona que se porta mal...Ai desculpe o palavreado, mas é a minha maneira de falar.
- Não faz mal. Fale à vontade que eu sei quem é essa ordinária; mas continue.
- Disse-me o meu filho ainda que a sua garota o estava beijando enquanto ele se esfregava nela e mais poucas-vergonhas que até tenho vergonha de lhe dizer. Como deve saber a sua rapariga deve ter para ai uns onze anitos e o malvado está quase a ir para a tropa. Nem sabe como o detesto. Nunca trabalhou e leva uma vida de rico, quando na verdade não sabemos onde vai buscar o dinheiro. O meu Luís diz que ela negoceia droga.
Estava a ouvir, mas toda eu tremia como sentia suores a correr pelo meu corpo abaixo. Nunca pensei que isto pudesse acontecer, mas não era nada que já não tivesse pensado.
- Mariana, não se ofenda do que lhe acabei de dizer, mas sabe: também sou mãe e a vida de freira que você leva, não por querer mas por ser obrigada nem sempre tem a possibilidade de saber estas coisas. Depois, já anda para ai um falatório sobre a Beatriz.
- Um falatório?...como assim?
- Ai minha rica vizinha, isso é que não lhe digo: Apenas lhe conto que a sua filha – uma menina tão bonita – é mais falada que a morte do tenente. Se soubesse o que se fala dela....
- Obrigado vizinha. Vou falar com a Beatriz e ver o que ela me vai dizer para depois resolver. Olhe....resolver não sei o quê e como.
Como resolver e descobrir o que acabei de saber, foi até hoje a coisa mais difícil de conseguir. Quando enfrentei Beatriz, sem dizer quem me tinha dito tais coisas, a sua resposta foi a que já esperava: «tudo mentira e as pessoas só gostam é de se meterem na vida de cada um». Uma coisa tive que fazer, contar ao pai o sucedido. Mais valia estar calada.
À noite, logo que chegou Tobias, contei-lhe todo o sucedido. Mas antes esperei que Beatriz estivesse em casa. Chegada foi logo para o quarto, fechando neste com o indício de ter que estudar porque no dia seguinte tinha testes. Para espanto meu, escutou-me sempre em silêncio, sem olhar para mim e com a cara voltada para o chão. Mexia e remexia-se na cadeira, coisa que não me estava a agradar. Depois de lhe ter dito tudo, perguntei-lhe como «resolver isto?»
Levantou-se e em vez de ir chamar a filha, agarrou-me violentamente dando-me uma valente carga de porrada, que sempre julguei morrer nesta noite. Tanto apanhei que tive de ir numa ambulância para o Hospital por causa da pancada que apanhei. Gritei e pedi socorro à minha filha. Não teve a dignidade de vir ajudar a mãe como nem se preocupou quando a ambulância chegou e muito menos com o alvoroço da vizinhança pela curiosidade. Onde estava onde ficou.
Algum tempo passou. Sempre que podia falava com Beatriz, dizendo-lhe que era a causa de tanto falatório nas redondezas. Tempo perdido.
O Carteiro bateu-me à porta para me entregar uma carta registada. Vinha da Escola da Beatriz. Notificava-me para comparecer em determinado dia na dita escola e para participar numa reunião como “Conselho Directivo” a fim de tomar conhecimento de “assuntos de interesse da aluna Beatriz”. Como era a primeira vez que recebia tal notícia, pedi a Tobias que lá fosse porque afinal era homem e sempre sabia falar melhor do que eu. Delegou-me em mim o que lhe pedi.
Compareci pelas nove horas na Secretaria da escola. A funcionária já me esperava, assim me pareceu, acompanhou-me para a sala onde já estava presente os responsáveis.
Em substância a reunião foi – Beatriz, falta com frequências às aulas, continua no “tempo e recreio” a ficar pelo pátio, em vez de regressar à aula, com a proeza de andar no marmelanço com alunos mais velhos, tendo já sido encontrada duas vezes a fazer sexo no interior da casa de banho com o Carlos. Para ademais se tornar arrogante ao ser chamada a atenção pelos professores, originando por acumulação de indisciplina, uma queixa em conjunto dos professores ao Conselho Directivo do estabelecimento a acusação especial de «desencaminhar outros aluno/as para a desobediência colectiva». No despacho do director, constava ainda «...seja dado conhecimento por meio de notificação ao encarregado de educação e um prazo de trinta dias para resolver a causa da matéria do auto” como que, tivesse eu que solucionar aquilo que acabava de saber. Não bastasse, constava ainda no calhamaço uma adenda “ A encarregada de educação não tem comparecido às reuniões marcadas pela Associação de Pais, cujos avisos são entregues à aluna”.
Pela primeira vez senti na minha vida o ser humilhada publicamente, já que na mesa estavam dez pessoas, por situações engendradas de quem nem estava a acreditar que tinham acontecido. Se duvidas apresentei, provas me foram dadas, levando a que ficasse sem indícios para contestar o quer que fosse. Senti em cima de mim: olhos de raiva pela filha que tinha como pela falta de educação que lhe dava; olhares de expiação por não merecer o que me estava a acontecer e olhos interrogativos como uma mãe pode permitir o que estava a suceder, sem nunca desconfiar e averiguar de quem fazias tais coisas.
Deixei de ser uma mera encarregada de educação e passei a ser um mau exemplo de mãe, já que quando acabou a reunião nem a hombridade tiveram de olhar para mim de se despedirem com cortesia. Apenas ficou a secretária que quase me obrigou a assinar o “relatório”, entregando-me uma cópia para que não esquecesse o que tinha sido debatido e guardasse para lembrança as fotografias tiradas quando da execução da intimidade dos dois alunos em poses nada abonatórias para quem as criou, mas muito menos para Beatriz.
Quando saí do edifício, fiquei com a sensação que muitos olhos estavam por detrás dos vidros vendo a esfarrapada pobre mãe de uma aluna ou alguém que nem mãe sabe ser. Chorei com uma impiedosa sem saber o que e como fazer. Revoltada demais comigo própria porque me tinha apercebido quanto é grande a minha ignorância mas maior é a cruz que suporto.
Ao pedir que me deixassem expor as razões do sucedido como do feitio da minha filha, uma voz autoritária, mandou-me calar acusando-me que não estava ali para me defender mas sim para ouvir o mencionado no relatório. Sá faltou ser queimada em pleno recreio, à vista de todos, como no tempo da Inquisição.
O meu problema e medo, para além da humilhação que de tanto o ser já nada me admirava, era como dialogar com Tobias e Beatriz. No meu tormento constava o busílis da questão.
Como contra factos não há argumentos, tive todo o tempo do mundo, até à hora de jantar para pensar no estratagema a apresentar na hora do jantar. Por mais que fosse difícil, tínhamos que estar os três na mesa. A noite iria ser assombrada por imprevistos, vindos de não sei donde.
Sentados à mesa, servi a refeição da noite, como nada tivesse acontecido. Só depois de se servirem da fruta, pedi que me escutassem, com a condição de não ser interrompida. Detalhei em linguagem simples e reduzidas por palavras minhas, mas bem explícitas, os resultados da carta então recebida.
Quem levantou a voz foi Beatriz, que desmentiu categoricamente tudo o que disse, acusando-me na frente do pai de «valente mentirosa». Para Tobias foi como ninguém tivesse falado. Pedi-lhe que dissesse alguma coisa para que tudo ficasse bem esclarecido. Nem uma palavra obtive como resposta para ser acusada por quem causou tudo:
- És uma valente descarada. Não prestas para nada. Nunca te importastes comigo nem do que faço, mas agora importas-te de dizer ao pai que pouco falta para ser uma puta!
Não disse nada para espalhar em cima da mesa as fotografias que espelhavam as cenas íntimas de minha filha, de forma que o pai bem visse com os seus olhos, as posições de nudez da filha.
Agarrou nas fotos vendo bem ao pormenor o que ali podia deslumbrar. O resultado foi, levantar-se da mesa. Ao fazê-lo, pediu à nossa filha que fosse imediatamente para o quarto. Aguardando a retirada e depois de ter ouvido bater a porta, agarrou-me pelo pescoço para com uns olhos chispados e descarregou em mim todo o seu ódio, tendo levado uma carga de porrada como nunca tinha levado desde que com ele era casada Tive que fugir para a casa da minha vizinha, pedindo-lhe protecção porque a ira instalada em casa indicava que aquela noite seria a última para mim. Passaram duas horas, quando Tobias como nada tivesse acontecido, batia com pancadas suaves na porta da casa onde estava, perguntando se por acaso eu não estava por ali, visto que, desde o jantar não aparecia.
Valeu-me ter contado o sucedido a quem me recolheu, que na presença de outras vizinhas que entretanto chegaram para ouvirem o que disse e poderem ver com os seus olhos o estado em que se encontrava o meu corpo.
Pela primeira vez fui a Mariana. Fui capaz de bater o pé de lhe dizer em voz alta que a nossa relação tinha acabado naquele momento, como seguia de imediato para a Policia a fim de apresentar queixa dele e que considerasse tudo terminado entre nós dois, pois, no dia seguinte iria ter com uma advogada para pedir o divórcio. Ainda hoje pergunto a mim própria como fui capaz de fazer tudo isto.
À minha frente, levou Tobias um valente ralhete do seu superior. Leu-lhe a sentença na presença de outros guardas.
- Ai de si, seu reles guarda, se mete as mãos, uma vez sequer, em cima da sua mulher. Ela vai para a vossa casa com todos os direitos, mas você, seu palhaço não lhe dirige a palavra.
- Vá-se embora, minha senhora e faça o que entender, que estou do seu lado. Se esta amostra de gente lhe tocar, venha ou mande alguém que lhe faço melhor a cama do que aquele que vou fazer mesmo agora.
Assim foi. Durante três meses, tempo que estive em casa, nunca mais falamos um para o outro. Neste espaço, fui falar com o meu antigo patrão, o Miraflores, contando-lhe a minha desgraça como tudo que aconteceu desde que abandonei a sua protecção. Ouviu-me sempre em silêncio para depois me dizer:
- Mariana, podias vir já amanhã trabalhar para a minha casa, mas não o faças porque dado o teu estado mereces melhor. Assim, dá-me uns dias que vou mandar limpar a antiga casa do caseiro, a fim de lá viveres com a tua filha, pois se bem compreendo, ela ainda tem só dezasseis anos e porventura não vai querer ficar com esse animal a que chama de pai.
Oito dias depois estava na minha nova casa com todos os meus apetrechos. Enquanto arranjavam a casa e não começava a trabalhar, perguntei a Beatriz qual era a sua decisão: se queria ficar naquilo que era dela para todos os efeitos e na companhia do pai ou deixar tudo para vir para a minha companhia e viver num dos anexos do palacete dos Miraflores.
Pela primeira vez, falou-me educadamente pedindo-me ao mesmo tempo que lhe desse dois dias para encontrar uma resposta, pois apanhada de surpresa não sabia que dizer. Dei-lhe o que pediu, ficando assim com intervalo de manobra para fazer as mudanças necessárias. Mudanças que mais não foram do que trazer aos poucos toda o meu vestuário; cobertores; objectos pessoais que foram adquiridos por mim, alguns, ainda da minha infância como um quadro da Última Ceia que comprei quando recebi o primeiro vencimento; toalhas e alguma louça. Tudo foi transportado numa carrinha do meu vizinho que sempre estiveram junto de mim quando na casa ao lado estive ou ia. Faziam questão de que nada me acontecesse.
Cumprido o prazo de espera, Beatriz aceitou passar a viver na nova casa. Uma casa que foi em tempo o acolhimento do caseiro, onde viveu muitos anos, que criou e casou o seu único filho mas que agora tinha abandonado, despedindo-se do local e das pessoas que lhe fizeram companhia quase durante cinquenta anos. O seu frágil corpo já não suportava o peso dos anos como a sua saúde piorava dia após dia.
De tudo um pouco fez. Tratava da horta e do jardim; fazia recados; protegia a casa dos patrões dos intrusos; plantava as mais diversas variedades hortícolas para mais tarde encher as panelas da cozinha; no Outono, levava dias inteiros apanhando as folhas castanhas que caíam constantemente das velhas árvores que faziam do palacete dos Miraflores a orla mais linda da zona e nas horas vagas ainda era o condutor privado da família. Dele, tenho as melhores lembranças. Da sua ex-casa, agora sua utilizadora até ao local de trabalho, bastava só atravessar o pátio.
O serviço atribuído à nova serviçal e inquilina mais não foi do que durante anos tinha executado, missão que me honrou muito pela confiança renovada na minha pessoa. Dois dias depois de começar a minha actividade, Beatriz festejou mais um aniversário. O décimo sexto. Fiz-lhe uma torta de laranja; um jantar diferente do que estava habituada, para no final deste a surpreender com um bolo, encomendado na véspera na Pastelaria do Bonifácio. Em cima, tinha tantas velas como os anos que fez.
Foi um momento que me sensibilizou, porque já há muitos anos não festejava o seu aniversário como agora. Apenas as duas; numa fraternidade que fez desfalecer o meu pobre coração levando-me a sentir como uma boa mãe, sonhando que nada voltaria a ser como antes foi, pois sempre acreditei que minha filha nunca optasse em viver comigo.
Como me senti feliz por este momento! Sentia-me como uma mulher realizada ao fazer
chá para as duas conversamos sobre tudo sem entrarmos no que vinha acontecendo nos últimos anos. Tudo foi apagado com uma borracha para iniciarmos as duas uma nova vida. Pura ilusão!
Seis meses depois de ter abandonado o meu antigo lar, foi sentenciado o meu divórcio e feitas as devidas partilhas, que em abono da verdade, não fiquei a perder porque acabei por receber uma boa quantia de dinheiro que depositei numa conta bancária e outros bens que me couberam por direito.
Nunca falei da situação como escondi de Beatriz o desenrolar do processo de divórcio até ao dia que lhe disse que era uma mulher livre por via de o processo de divórcio estar resolvido, como fiz com ela votos para que um novo ciclo se iniciasse sem sombras do passado.
Tinha a minha independência e a minha liberdade. Com as mãos em cima do livro sagrado, prometi que jamais quereria na minha vida um homem. Apenas eu e a minha filha. Beatriz ouviu tudo o que lhe disse como o que lhe pedi para que fossemos uma família unida.
Prometeu-me que assim seria no presente e no futuro mas deixando-me o recado que o «dia de amanhã a deus pertence, não devendo nós desejarmos aquilo que não sabemos poder vir a realizar-se». O suficiente para a noite ter sido um pesadelo. Não estava longe da verdade.
No dia seguinte antes de ir trabalhar, fui ter com Beatriz à cama e dei-lhe um beijo de bom dia na testa. À noite quando voltei, tinha em cima da mesa da cozinha um bilhete escrito à mão dizendo apenas “ Desculpa tudo o que te fiz mãe! Um dia voltarei. Beijo”. Só voltou três anos depois. O tempo suficiente para muita coisa acontecer.
*
Na Estrada Nacional número um, entre Batalha e Leiria, na década de setenta/oitenta, existiam plantações de eucaliptais por em ambos os lados. Caminhos sinuosos criavam trilhos por onde se entrava mas não se saía. Eram labirintos infinitos que testemunhavam canalhices tenebrosas. assassinatos, assaltos e violações eram abafados pelas árvores.
Camionetas de longo curso, estavam estacionadas nas bermas, que quando chovia ficavam com a côr da canela. Os seus condutores abandonavam-nas por escassos minutos para satisfazerem os seus desejos carnais em quem ali poisava durante o dia. Nas carreira de terra, vendendo o seu corpo a troco de dinheiro ou de valentes tareias. Sempre que reclamavam dos seus préstimos serviços. Jovens e mulheres prostituíam-se nestas bandas.
Vendia, o seu corpo em troca de notas de baixo valor. Sujeitavam-se ao imprevisto dos homens cansados de conduzir para que com o ganha-pão ao fim do dia, se amealhem o sustento dos seus. Cenas canalhas a aventuras de canivetes eram comum por estas bandas em quem vendia o corpo, perdendo a dignidade, mesmo sabendo o risco que corria.
Jovens bonitas e outras feias, algumas desdentadas, esperavam provocatóriamente os homens com corpanzis de monstro, exibindo partes da sua pessoa, como mercadoria fossem. Terrenos com espaços demarcados onde os trespasses da coisa valia fortunas. Dependia do “local de ataque.” Entrando-se nos diversos itinerários das exposições, a primeira inquilina, só o dispensava o terreno, considerado e aceite seu, a troco da receita semanal. Era o chamariz para estar sempre a rodar.
As notáveis escolhiam entre si a mais jeitosa, a fim de exibir-se perante os homens que iam chegando. Escolhida a fêmea, seguia o par para o emaranhado arvoredo, deixando de serem vistos durante algum tempo – ou para sempre – distanciados do local e após as outras terem descido um círculo – recentemente ocupado por quem foi emprestar o corpo – para a segunda ocupá-lo, continuando assim conforme a procura. O casal em serviço iniciava o acordado.
Uma toalha de plástico ordinário, estava estendida no chão, servindo de lençol; um rolo de papel higiénico servia de toalha para limpar as intimidades de cada um. Ela limpava o coiso ao cliente para depois este puxar as calças para cima; apertava o cinto para de seguida tirar da carteira a vintena. Missão cumprida e desejo satisfeito. Retirava-se em passo acelerado não estivesse por ali escondido algum chulo de punhal em haste para roubar quem entrou dentro do corpo da sua mulher.
A menina, então sozinha, puxava por uma tira do rolo de papel, como fosse uma “toalhinha de bidé”; puxava a mini, perfumava-se, retocando-se depois no pequeno espelho de bolso. Antes de ir para onde veio, olhava-se novamente para vidro reflector, não tivesse algum abrolho na roupa ou cabelo. Assim era até ao fim do dia como todos os dias se repetia a rotina. Começavam o dia desde o nascer até ao Pôr-do-Sol.
O acto sexual era reduzido ao máximo. Logo no inicio era avisado o cliente do tempo que tinha para realizar o coito.
- Vá, não te demores que há mais à espera!
Se algum mais aristocrata ou desejoso de “Serviço Completo” então a conversa era outra. Tornava-se necessário saber a quilometragem, o tempo, quantos participantes e mais algumas informações. Só depois se entrava na fase negociável; o momento da marcação do preço combinado como das regalias suplentes mas mencionadas na “ementa”.
A prostituta estava pronta para dar tudo e fazer o que a imaginação permitisse. A “sortuda” para o “extra” ganhava de uma só vez aquilo que obtinha num dia inteiro de trabalho.
Ao apresentar-se no serviço no dia seguinte depois da labuta, as outras, faziam-lhe uma festa, pela simples razão da preferida ter sido escolhida no grupo. Um privilégio que outras não tinham. Como em tudo, na prostituição também há concorrência, alguma bem desleal. Saía a “lotaria” a quem fosse a predilecta por aquele “senhor” vindo de Lisboa em busca de satisfação para a sua esposa.
Aqui, como no tempo dos “Mercados de Escravos” colocavam-se em fila a fim do comprador ver bem de frente quem deveria escolher. Feliz da aventurada. O mês estava ganho com a possibilidade de um bom futuro.
Nunca se sabia quem a esperava do outro lado para ser satisfeita. Uma nova amante poderá estar da esquina ou porque não um ilustre “protector” que lhe desse o que nunca teve como a tirasse da “Vida” a troco de o satisfazer na cama ou à mulher, ou, quando não muito, para servir o amo mais a sua trupe em orgias. A acontecer, jamais voltaria à “zona de ataque” da primeira estrada nacional.
De tempos a tempos, havia alarido entre a Batalha e Leiria, mesmo que todos soubessem o que por ali havia e o que se praticava, coisa que a autoridade fazia de “vista grossa”. O lema era “cada uma dá o que quer e cada um compra o que pode”, desde que não dessem nas vistas. Pouco importava o que acontecesse no meio dos arbustos ou na cumplicidade de alguma má companhia. Se algo de grave surgisse, iniciava-se as devidas investigações. A haver provas e testemunhos, o processo seguia os trâmites, caso contrário o despacho seria “ Arquive-se”.
Matagais sujos e encardidos de espermatozoides vaginais; sangue e lágrimas assentes nas raízes pelos germes impuros lhes deitavam em cima; dignidade humana que se perdia nas brumas da manhã; orvalho que não secava por tão pisado estar.
Mulheres mães que distâncias de serra a serra para vender o seu corpo, deitando-se em cima do rosmaninho para abrirem as suas pernas durante horas seguidas, deixando para trás os seus filhos carentes de carinho e alimentação.
Mulheres que vendiam a sua dignidade numa sobrevivência suja; que espetavam facadas com os seus homens para que o homem que despejou nela o suco do prazer, não pudesse sair sem a carteira vazia, mesmo que tivesse de ficar esfaqueado no local da luxuria e abandonado como uma animal.
Mulheres que durante a noite são senhoras decentes para que de dia, sejam umas reles putas; que colaboram em cenas rocambolescas com os seus chulos; mulheres que não se dignificam a si próprias, preferindo vender o seu corpo em vez de trabalhares honestamente.
Homens que deixam em casa as suas esposas, prometido que lhes foi, a elas serem fiéis para no caminho do seu emprego amarem outras; homens que deixam de ser gente para se tornarem animais obcecados pelo sexo e por uma “rata” que é limpa com um bocado de papel, acabando este por não ser do que uma redilha nojenta; homens que exigem das suas esposas fidelidade e boas donas de casa como a eles se entreguem, esquecendo-se que um dia as suas amadas poderão estar na “vida”.
A Estrada Nacional foi o desencanto do deboche. Quem nas suas bordas estava, fizeram do entremeio o seu emprego e ganha-pão. Anos a fio, assim foi como continua a ser noutras paragens.
De botas brancas, de cano alto para chamar a atenção, mini-saia bem justinha às ancas, camisola de alça apertada para tornear o corpo, deixando bem à vista, parte das mamas, lábios pintados com cor de cereja, olhos maquilhados de cor berrante, longos cabelos pretos até ao meio das costas, cigarro na mão direita e uma pequena mala no ombro esquerdo, assim se apresentavam as “mulheres da vida” mais procuradas e desejadas do “Pinhal da EN”.
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Sabia o seu valor como nunca deixou por mãos alheias aquilo que era muito seu como só vendia o seu corpo a quem lhe desse o preço que queria, mesmo que a “queca” fosse o dobro da concorrência, pouco se importando que as suas colegas a odiassem, quer pelo preço cobrado quer por não lhe falar clientes e, dos mais finos.
Sabia que para sobreviver neste mundo sujo, tudo valia, mesmo que tivesse esgatanhar alguma abelhuda que se armasse em esperta. Se não lhe chegasse à focinheira o seu homem mais os capangas tratar-lhe-íam do corpo, de forma a não mais frequentar a zona. Dava-se ao luxo de demarcar as fronteiras para que a escumalha não espantasse a clientela.
Aos fins- de- semana, os dois dias eram passados na “alta cavalaria”; num andar situado na Rua da Madalena, em Lisboa. A lista de espera estava sempre cheia. Os clientes não eram aqueles camionistas sebentos mas sim finórios dispostos a pagarem fortunas para usufruírem do seu corpo.
O telefone não deixava de tocar nos dias úteis na casa da D. Donzina solicitando uma marcação para a “Rainha das Putas” no fim-de-semana que se seguiria. Com a jovem mais cobiçada pelos homens: ganhava a dona da casa; quem a usava e gozava e quem utilizava as matronas. Dava para todos. Era como Cleópatra para Marco António; tudo em si era beleza, daqui, o interesse da clientela.
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«Cleópatra é geralmente lembrada como uma mulher fatal egípcia, uma sedutora libertina que se matou por amor ao general romano Marco António. Há pouca verdade nisso, segundo alguns historiadores. Embora Cleópatra fosse rainha daquele antigo reino, não corria nas suas veias uma só gota de sangue egípcio. Ela era grega da Macedônia; sua capital egípcia, Alexandria, era uma cidade grega, e o idioma da sua corte era o grego. Sua dinastia fora fundada por Ptolomeu, general de Alexandre, o Grande, que depois da morte deste se fizera rei do Egipto.
Quanto à sua devassidão, não há o menor indício de ligações amorosas de Cleópatra, a não ser com Júlio César e, três anos depois da morte de César, com Marco António. Estas não foram ligações ao acaso e sim uniões públicas, aprovadas pelos sacerdotes de então e reconhecidas no Egipto como casamentos. É absurda a versão de que ela era uma mulher sensual, que usou de todos os ardis para seduzir esses homens. Júlio César, uns trintas anos mais velho do que ela, já tivera quatro esposas e inúmeras amantes.
Seus soldados o chamavam de “adúltero careca” e cantavam um dístico advertindo os maridos que mantivessem as mulheres fechadas à chave quando ele andasse por perto. Marco António, catorze anos mais velho do que a jovem rainha, era também um conquistador conhecido. E, no fim não foi por amor a ele que Cleópatra se matou, e sem pelo desejo de escapar à degradação nas mãos de outro conquistador.
Mas a lenda persiste há mais de dois mil anos, principalmente porque poetas e dramaturgos, inclusive Shakespeare, tem dado maior ênfase aos encantos físicos e às paixões do que à inteligência e à coragem dessa rainha. Seus feitos, porém, revelam que ela foi uma mulher brilhante, engenhosa, que passou a vida lutando para impedir que seu país fosse aniquilado pelos romanos.
Nascida em sessenta e oito ou sessenta e nove, antes de Cristo, Cleópatra cresceu entre as intrigas e as violências palacianas. Seu pai Ptolomeu XII, era um bêbado, um devasso cujo divertimento era tocar flauta.
Morreu quando Cleópatra tinha dezoito anos, e ela então se tornou rainha, governando juntamente com seu irmãos de dez anos, Ptolomeu XIV. Dois anos depois, o jovem Ptolomeu, dominado por um trio de intrigantes palacianos, obrigou Cleópatra a exilar-se na Síria. Mostrando desde então a bravura que caracterizou sua vida, ela imediatamente organizou um exército e teve inicio a marca através do deserto para lutar pelo seu trono.
Foi essa a Cleópatra que César conheceu no outono de 48 A. C. Ele fora ao Egipto em perseguição ao general romano Pompeu, seu adversário numa luta pelo domínio político, género de contenda que manteria Roma convulsionada durante quase um século.
Qual o aspecto físico de Cleópatra? As únicas indicações são algumas moedas cunhadas com o seu perfil e um busto desenterrado de urinas romanas cerca de mil e oitocentos anos depois da sua morte. Mostram um nariz aquilino, boca bem traçada, com lábios finamente cinzelados. Vários historiadores antigos escreveram sobre a sua “beleza arrebatadora”, mas não foram homens que a tivessem visto pessoalmente. A descrição mais precisa parece ser a de Plutarco, cujo avô ouviu falar em Cleópatra por um médico conhecido de uma das cozinheiras da rainha. Plutarco escreveu que na realidade a sua beleza “não era propriamente tão extraordinária que ninguém pudesse comparar-se a ela”.
Todos os escritores antigos concordavam, porém, em reconhecer a sua conversa “fascinante”, a sua bonita voz, a “habilidade e a subtileza de sua linguagem”. Ela falava seis idiomas, conhecia bem a história, a literatura e a filosofia gregas, era uma negociadora astuta e, ao que parece, uma estrategista militar de primeira ordem. Tinha também uma grande habilidade para cercar-se de uma atmosfera teatral. Quando intimada por César a deixar suas tropas e a comparecer ao palácio que ele conquistara em Alexandria, Cleópatra introduziu-se na cidade ao escurecer, fez-se amarrar num rolo de roupas de cama, e assim escondida foi carregada nas costas de um servo através dos portões e até aos aposentos de César.
Quer o estratagema se destinasse a evitar os assassinos a soldo do irmão, quer se destinasse a impressionar César, o facto é que a sua entrada na cidade foi uma das mais sensacionais de todos os tempos. Sua coragem e seu encanto concorreram para convencer César de que seria de boa política restituir-lhe o trono. E, pouco tempo depois desse primeiro encontro, ela estava grávida.
Talvez para impressionar César com a riqueza do Egipto, Cleópatra organizou na Primavera seguinte uma expedição para subir o Nilo. Durante semanas, ela e César navegaram perlo rio num luxuoso barco-residência, acompanhados por quatrocentas embarcações, levando tropas e provisões. Em Junho, Cleópatra deu à luz um filho. Cesarion ou Pequeno César, em grego. O recém-nascido, filho único de Júlio César, parece ter sido a origem de um plano ambicioso de César e Cleópatra para fundirem Roma e o Egipto num vasto império sob o domínio deles e dos de sua estirpe. Logo depois do nascimento do menino, César partiu para Alexandria e começou operações militares na Ásia Menor e na África do Norte, eliminando todos os focos de oposição restantes. Um ano depois, voltava triunfalmente a Roma, como ditador. Cleópatra já estava lá com Cesarion, instalada por César numa vila imponente.
Como rainha, com uma corte real, Cleópatra começou a exercer influência na vida romana. Levou de Alexandria cunhadores de moedas para melhorarem a cunhagem romana, especialistas em finanças para organizarem o programa tributário de César. Seus astrónomos reformaram o calendário romano, criando o calendário no qual se baseia o nosso actual sistema. César mandou colocar uma estátua de Cleópatra num novo tempo construído em honra de Vénus, e emitiu uma moeda em que Vénus e Eros se identificavam com a figura de Cleópatra carregando Cesarion nos braços. Seu poder parecia absoluto. De repente, vinte meses depois de Cleópatra chegar a Roma, Júlio César foi assassinado.
Ninguém sabe se Cleópatra foi tomada de desespero. Ao cabo de um mês, voltou para o Egipto. Os historiadores não dispõem de dados sobre os três anos seguintes de seu reinado. Só se sabe que, na luta pelo poder, que mergulhou Roma numa guerra civil, os contendores procuravam seu auxílio. Ao que parece, sua política foi de cautelosa espera, para ver quem se tornaria o sucessor de César.
Quando Marco António surgiu como homem forte do Oriente, pediu a Cleópatra que fosse ao seu encontro em Tarso. Durante algum tempo ela não tomou conhecimento do convite; depois, levantou vela com uma frota magnífica, levando ouro, escravos, cavalos e jóias. Em Tarso, em vez de ir à terra como suplicante, Cleópatra esperou calmamente, ancorada ao largo. Depois de haver manobrado habilmente para que Marco António se tornasse seu convidado, ela o confrontou com um espectáculo ofuscante: os remos da galera, com pontas de prata, marcando o compasso da música das flautas e harpas, as cordas manobradas por belos escravos vestidos como ninfas e graças, enquanto outros espargiam o incenso de perfumes exóticos. Reclinada sob um toldo de ouro, Cleópatra se apresentava como Vénus, abanada por meninos que pareciam cupidos.
Ao terminar o banquete, Cleópatra deu de presente a Marco António o prato de ouro, as formosas taças, os suntuosos canapés e bordados que tinham sido utilizados para servi-lo. Na noite seguinte ofereceu nova festa a Marco António e seus oficiais e, quando eles partiram, todos os convidados receberam idênticos presentes. O propósito não era conquistar a afeição de Março António, mas impressioná-lo com a riqueza ilimitada do Egipto e, portanto, com as suas potencialidades como aliado.
Três meses depois, Marco António foi a Alexandria, e lá passou o Inverno. Partiu na Primavera, seis meses antes de Cleópatra dar à luz os seus filhos gémeos, e passou quase quatro anos sem tornar a vê-la, Cleópatra fortaleceu as defesas de seu país, organizou a sua esquadra, acumulou ouro e provisões. Quando Marco António, na esperança de expandir o seu poder no Oriente, a convidou ao seu encontro na Síria, ela foi, mas resolvida a impor condições. Conseguiu obter um acordo pelo qual seriam dadas ao Egipto todas as vastas áreas que haviam sido propriedades dos Faraós mil e quatrocentos anos antes, mas que eram então províncias romanas. Marco António concordou também comum casamento legítimo e, para comemorar o acontecimento, foram cunhadas moedas com as efígies dos dois. Nessa ocasião, Cleópatra começou uma nova etapa de seu reinado.
Então com trinta e três anos, partiu com Marco António para fazer guerra aos persas, mas no Eufrates teve de desistir da campanha. Estava novamente grávida. A criança nasceu no Outono, e naquele Inverno chegaram apelos desesperados de Marco António: seu exército fora destroçado e os únicos remanescentes das tropas mal tinham, conseguido escapar para a costa da Síria. Com dinheiro, provisões e armas, Cleópatra foi em seu socorro.
No ano seguinte, 35 A. C., ela teve de usar de todo o seu engenho para evitar que Marco António – com o espírito anuviado pela continuidade da bebida – tentasse outra invasão da Pérsia. Compreendendo que o verdadeiro inimigo era Otávio, sobrinho e herdeiro legítimo de César, que de Roma dominava o Ocidente, ela insistiu com Marco António para que concentrasse todos os esforços em derrubá-lo. Em 32 A. C., Cleópatra precipitou a guerra com Otávio, persuadindo Marco António a tomar duas providências: baixar um édito pelo qual se divorciava de sua esposa. Otávia (a bela irmã de Otávio) e determinar que suas tropas atravessassem o Mar Egeu e entrassem na Grécia. Cleópatra estava então no apogeu. Reis vassalos do Oriente Médio prestavam-lhe homenagem, os atenienses cobriram-na de honrarias, saudando-a como Afrodite e levantando a sua estátua na Acrópole.
De repente, em Actium, na costa Ocidental da Grécia, ao cair da tarde de dois de Setembro do ano 31 A. C., tudo se desmoronou. Os historiadores nunca chegaram a um acordo sobre essa batalha decisiva: não se sabe por que Marco António, com um exército superior, deixou que ela se transformasse numa batalha naval; nem por que, em plena batalha naval, com o resultado ainda indeciso, Cleópatra levantou vela e partiu a todo o pano para o Egipto, com os seus sessenta navios de guerra; ou porque Marco António deixou abandonado seu imenso exército para embarcar no navio de Cleópatra e partir com ela.
Ao voltar para o Egipto, quando se espalhou a notícia do desastre, Cleópatra tentou fortalecer os laços com os países vizinhos. E começou também a transferir navios de guerra do Mediterrâneo para o Mar Vermelho – projecto fabuloso, que importava em arrastar os navios através de muitos de quilómetros de deserto.
Quando chegaram as tropas de Otávio e tomaram os fortes da fronteira do Egipto, Cleópatra permaneceu em Alexandria, pronta a negociar com Otávio, ou a combatê-lo. Mas, à aproximação do exército invasor, a esquadra e a cavalaria da rainha desertaram e Marco António suicidou-se. Capturada viva, Cleópatra foi posta sob guarda e advertida de que casa se matasse, seus filhos seriam executados.
Embora Otávio prometesse clemência, Cleópatra presumiu que seu destino seria semelhante ao de centenas de outros reis cativos, que haviam sido levados em cortejo pelas ruas de Roma, acorrentados, para serem depois executados. Audaciosa até ao fim, fingiu abandonar qualquer ideia de suicídio. Obtendo permissão para visitar o túmulo de Marco António, parece que conseguiu comunicar-se com partidários fiéis quando a sua liteira era carregada pelas ruas. Voltou aos seus aposentos, tomou banho, jantou e mandou que suas servas a vestissem como Vénus. Sobre o que aconteceu depois só sabemos o seguinte: oficiais romanos que arrombaram os seus aposentos encontraram Cleópatra morta. Segundo a lenda, a rainha deixara-se morder por uma víbora que lhe fora mandada como contrabando numa cesta de figos.
Quando se comemorou em Roma a conquista do Egipto por Otávio, foi arrastada pelas ruas uma estátua de Cleópatra com uma víbora agarrada a um dos braços. Os seus três filhos com Marco António – Cesarion já fora executado – foram obrigados a marchar na degradante procissão. Foi então que os poetas romanos, para caírem nas boas graças do vencedor, começaram a espalhar o mito de uma perversa e libertina rainha egípcia – mito que dura até o dia de hoje».
*
Nos dois dias que “trabalhava” na capital, a noite do meio era passada num dos melhores hotéis da capital. Quem lhe quisesse fazer companhia, teria que ter uma carteira bem recheada, caso contrário, nada feito, mesmo que a “cambalhota” apenas durasse cerca de quinze minutos.
No domingo à noite quando regressava à sua vivenda, algures entre Leiria e Monte Real, trazia a carteira aconchegada de notas que sustenta o seu “harém” secreto, constituído por madames selectivas que usavam o esconderijo para ganhar mais alguns trocos.
Na viagem, enquanto o seu amante e “homem” conduzia, espreguiçava-se no banco da viatura, aliviando assim um pouco o seu corpo por tanto uso ter poucas horas antes. Gozo que deu a tantos homens famintos por sexo, mesmo começando às dez horas de sábado para acabar por volta das dezoito do dia seguinte. Mal se lembrava de quem esteve em cima dela como do que lhe disseram, excepto um ou dois homossexuais, clientes semanais mas muito especiais.
Uma vida com duas finalidades: uma o desejo do bem-estar, a outra, o dinheiro, coisas que juntas, lhe davam a segurança ambicionada desde pequena. ,Aos que a criticavam «que se lixem» era o seu tema. Bem ou mal, era a vida que gostava e não rejeitou logo tida a primeira oportunidade.
Ser prostituta e saber sê-lo não é para qualquer uma. È a profissão mais antiga do mundo como aquela que mais perigos esconde. Uma vida cheia de riscos, mas compensadora. Quem souber usufruir dela, pode gozar a vida “à grande e à francesa”. Dá para tudo e mais alguma coisa. Apenas um senão: tem um prazo de validade muito curto.
Sempre soube gozar daquilo que o seu corpo lhe rendia. Para além do mundo obscuro que construiu, gozou o que não está ao alcance de todos. Correu mundo como frequentou os melhores salões e a alta sociedade, quer no país quer no estrangeiro.
O seu corpo, desde criança que era bem feito para quando crescida se tornar estonteante. Bem cedo soube dar uso ao que a natureza lhe presenteou; parva seria, senão o fizesse. A consciência, se a tinha, não lhe pesava, porque fazia exactamente aquilo que gostava como sabia dar uso a tudo de bom que a vida lhe estava a dar, continuando a fazê-lo, mesmo que não soubesse o seu fim. Cada um usa o que de bom tem como do que sabe e gosta. O mundo das matronas é o sexo e o que este pode dar.
Em dias especiais, na sua mansão recebia raparigas virgens, ainda crianças, para que satisfaziam homens animalescos e bajoscos, desflorando quem mal sabia o que era fazer sexo. As estes homens, apenas de nome, sabia, mais do que ninguém, a altiva e puta fina explorar até ao âmago do tutano quantias exorbitantes.
Dava aos violadores, pessoas finas e importantes na escala social, prazeres ainda intocáveis como orgias que só escondido de olhares alheios era possível. Alguns vindos de quilómetros de distância, chegavam ansiosos por não saberem o que lhes esperava. Recomendados pelos anteriores, como aconselhados tivessem sido para a compra de uma mercadoria rara e banida dos bazares, aproximavam-se do covil como lobos famintos.
As crianças a tudo se sujeitavam como tudo permitiam para que no fim levassem aconchegado entre as suas tenras maminhas e o soutien algumas notas intermédias. O grosso da fatia cabia à “madrinha” a “Rainha das Putas”.
Mocinhas que deviam estar em casa a brincar com as suas bonecas e a coser trapos para quando adultas fossem mulheres crescidas. A sociedade e a miséria que as rodeava faziam com que tivessem de alinhar na falta de dignidade dos outros.
Muitas eram esperadas em casa pelos pais a fim de que lhes entregasse a receita do dia. Nas madrugadas dos dias frios ainda eram quase obrigadas a trabalhar a baixo custo nas fabriquetas clandestinas das redondezas. Meninas que nunca serão mulheres.
Para a mãe que ainda era mais desgraçada do que a filha, no dia seguinte já tinha dinheiro para comprar umas patas de galinhas e alguns ovos, enchendo a barriga a quem andou esfomeado durante dias.
Os pais, ressequidos que andavam pela bebida, exigiam que três quartas partes lhe calhasse para que - como o mundo acabasse amanhã - encharcasse as aduelas interiores despejando no seu interior, vinho suficiente, de maneira que, durante alguns dias de tão bêbados andarem, se esquecessem a que preço pagaram o que consumiram.
Isto nos dias pares porque nos outros a coisa piava mais fina. Madames do mais alto nível social do burgo, intocáveis e de difícil aparência que após deixado o emprego e arrumada a casa que no dia anterior foi usada por seres indefesos, iguais a quem agora lá estava. Diferentes apenas na idade e no corpo porque resto mais nada tinham.
As “noites de cavacadas” assim eram conhecidas, servia-lhes para ganhar mais algum. Ganho este que não era de baixo valor porque quem as usava, pagava bem caro o prazer que só elas sabiam dar; quer em experiência quer por aquilo que ninguém poderia saber, a defesa da sua imagem. Se num qualquer dia se encontrassem, vez alguma se conhecerem.
Só assim podiam levar a vida que levavam, ou seja, acima das suas posses. Parte delas contavam com o consentimento dos maridos. Sabiam ambos que na mansão obtinha-se receitas extras que ajudavam a sustentar aquilo que lhe levava grande parte do ordenado, e mais: quando deveria haver saldo suficiente para pagar a prestação do “empréstimo da casa”, caso contrário não faltaria muito para que passassem pela maior vergonha das vergonhas, irem para a rua. Isto, nem pensar. Afinal «até tenho um corpo divino, porque não usá-lo. Nem se gasta.... Além do mais, foi feito para ser usado e dar prazer».
Não se julgue que tais feitos se destinavam a donzelas da classe baixa ou de pouca formação. Nem pensar. Médicas e outras castas iguais frequentavam tão ilustre casa. De dia desempenhavam as suas profissões com dignidade duvidosa para nas noites de prazer usufruírem de prazeres, vindos do corpo ou de quem lhes pagava. Em abono da verdade não que os seus vencimentos fossem parcos, mas sim, as vidas luxuosas que levavam.
Não era por acaso que clientes masculinos de alto gabarito, com posições de relevo na administração pública e privada gastavam tudo aquilo que tinham e não tinham nas donzelas insaciáveis, quer pelo prazer quer pelo dinheiro.
Nem todos tinham a possibilidade de usufrutuar dos dois corpos mais desejados da “casa” . Cláudia e Raquel eram a “Jóia da Coroa”. Para lhes ter acesso, muita água tinha que correr por debaixo das pontes. Aqui, a “Puta da Mata de Leiria” sabia como ninguém, desfrutar de quem estava disposto a pagar as elevadas quantias para “comer” as duas. Mulheres sublimes e carnívoras, desejosas de devorar os machos que satisfaziam as suas loucuras. A primeira, do que ganhava, era aplicado na compra de terrenos, fazendo com que o seu património crescesse dia após dia. O seu corpo encantador como a apetência carnal juntava-se numa coisa só. O útil e o agradável andavam de mãos juntas. A outra. Mais jovial e desportiva, adorava carros de alta cilindrada. Era o seu prazer que custava bastante dinheiro mas que o obtinha com razoável facilidade. Bastava-lhe emprestar o seu corpo e dar o que tinha no meio das pernas.
A quem chamava a isto um “figo” era quem levava uma vida dupla, e de que maneira, a tinha. Sempre soube aproveitar-se dos homens que por “um rabo de saia” tudo fazem e dão. Eram e são as regras da oferta e procura.
Sempre gostou deste “modo estranho de vida” tendo entrado no mesmo sem saber como, mas tendo na plenitude da sua inteligência, a certeza que não está arrependida da preferência que entendeu fazer. Já o desejava quando criança. Faltava às aulas para se esfregar com os colegas mais calmeirões.
Uma matrona cheia de contrastes: em horário de expediente, na baixeza humana ou, na espelunca, assim considerado pela clientela; as noites, em ambiente da classe alta com alguma selectividade pelo meio; nos fins-de-semana, decididamente na capital no meio finório mas longe da ribalta.
No dia em que fez dezassete anos, como dos três seguintes, nunca se dignou procurar ou dar sinal de vida a quem tanto sofreu por ela.
Eis, Beatriz em todo o seu esplendor!
7
Depois do divórcio, do abandono da minha filha e de uma nova vida, tudo começou a encaminhar para a normalidade. Comecei a sentir gosto pela vida como tudo o que fazia. Algo de novo nascia na minha vida, levando-me a rejuvenescer, desmerecendo apenas nos dias de nostalgia; naqueles dias cinzentos em que as nuvens andam baixas; os burrifos de água fazem com que a tristeza invada toda o meu ser. Nunca gostei dos dias em que olhamos para o Céu e até o azul se sente amargurado por razões que ele próprio não sabe explicar; dias em que me apetece ir até à Praia de Baleal para me sentar nos rochedos, vendo as ondas enraivecidas a bater nos recifes enraivecidos numa fúria que o branco da espuma se espalha pela imensidão do infinito. Horas e horas infinitas que levo nesta fraqueza mas que do silêncio vindo dos bateres fazem com que me eleve para o desconhecido sem saber como as horas passam para depois regressar até ao meu lar pela orla marítima, vendo aqui e alia alguns bancos perdidos de cacimba, cuja humidade me amacia o caminho. São momentos que não gosto de relembrar porque deixaram marcas profundas no meu ser.
Ainda hoje pergunto a mim própria onde fui arranjar forças para superar os infortúnios que me acompanharam nos últimos anos. Muita coisa para um ser humano frágil como eu. Mas sinto-me feliz demais porque consegui sair da fossa em que tinha andado, sem saber como, ao ponto de, hoje me sentir uma mulher deste mundo e pronta para esperar pela tempestade se o destino assim entender.
O livro da minha vida tem páginas escritas que jamais as quero abrir. Que fiquem seladas para todo o sempre ou que o calor da terra as resseque de tal forma se algum dia tiver a tentação de nelas mexes que estalem com se quebram as folhas quando secas pelo calor do Verão.
Muita coisa mudou e muita coisa se modificou. Com o que recebi das partilhas que me couberam no divórcio, comprei uma vivenda na Tufeira. Nem grande nem pequena; o suficiente para mim e para qualquer imprevisto que possa surgir ou alguma visita pernoite na casa que me encanta.
No espaço frontal tenho um pequeno jardim onde me delicio com os aromas das flores que tanto estimo. As rosas são as minhas predilectas ao ponto de com elas conversar e desabafar aquilo que vai dentro de mim; nas traseiras, a minha pequena horta, na qual planto todas es verduras necessárias. No fim de mais um dia de trabalho e do após ter recolhido ao meu santuário, depois de ter comido alguma coisa, dispo a roupa que usei para vestir uma bata.
Descalço-me e enrosco a mangueira na torneira para começar a regar a terra ressequida a fim de que durante a noite possa sentir a fresquidão que lhe faltou durante o dia e nas horas mais quentes. A terra já conhece as minhas pisadas como o meu gato sabe a que horas chego a casa. Uma sensação difícil de explicar a de andar descalça pela terra. Existe uma energia que nem nós próprios compreendemos.
Miraflores deixa-me os fins-de-semana livres. A ela estarei sempre imensamente grata pelo apoio que me deu nas más horas da minha vida como soube compreender quando lhe disse que ia comprar uma casita.
- Um direito que te assiste como fico feliz de saber que a tua vida está a entrar dentro dos eixos.
Enquanto as coisas não se encaminharam, todos os dias pela manhãzinha me perguntava se estava tudo bem. Se alguma coisa me corria mal ou se estava mal disposta, ele sabia logo, ao ver a minha cara.
- Quem tens hoje Mariana, que estás com uma cara como que toda a gente te deva dinheiro?
Humano demais. Não lhe escondia o que tinha, como muitas vezes me ajudou a resolver as dúvidas que iam surgindo para quem tinha que enfrentar o futuro de cabeça erguida. Evitava a todo o custo falar de Beatriz. Sabia, tão bem como eu, que era algo muito amargo que trazia dentro de mim; o suficiente para não me lembrar nem que me falassem.
Aos poucos, tirei a carta de condução para depois de aprovada no respectivo exame, comprar um carrito. Um velho Ford que comprei em segunda mão e aturou de bom grado as minhas burrices enquanto não ganhei a prática. Com ele podia ir a toda a parte como diminuir o tempo nas voltas do dia a dia, para além de conhecer um pouco mais daquilo que não sabia existir. Comecei, logo experiente e segura na condução do velhinho, como gostava de lhe chamar, que me levava a todo o lado e vez alguma me deixou pendurada por qualquer imprevisto.
Se ia passear, levava sempre comigo a minha fiel confidente e camarada de trabalho, a Felismina. Velha amiga sempre pronta para estar ao meu lado nos momentos mais difíceis da minha vida, como conselheira naquilo que eu não era capaz de resolver; por ignorância ou não sei o quê. Nasceu e criou-se nos arrabaldes da Serra da Boa Viagem. Pavorosas memórias tem do tempo que por lá passou. Tinha uma formação, considerada superior para a profissão que desempenhava. Tanta, que Miraflores emprestava-lhe livros para que aumentasse a sua cultura. Depois de lidos, o patrão dispensava-a do serviço para que lhe resumisse o que leu. Algumas oratórias assisti. Orgulhava-me do que via e ouvia como dos elogios que recebia de quem lhe pagava o ordenado ao fim do mês.
Pena foi, a vida também lhe ter passado a perna e para sobreviver ter-se que sujeitar a trabalhar para os outros. Se tivesse tido quem a ajudasse e espicaçasse seria uma grande mulher, no sentido lacto da palavra.
Mas o destino não quis e teve que dedicar-se à vida serviçal. Criamos uma amizade tão profunda que nenhuma de nós tomava decisão alguma sem nos consultarmos uma à outra a fim de que não fizéssemos alguma burrice como aquelas que fizemos no passado.
O ter sido violada pelo pai, para depois a morte deste, também ser pelo padrasto, fê-la sofrer de tal forma como ficar a odiar tudo que fosse homem. Sentiu a violação aos nove anos, sendo obrigada a sofrer as investidas do pai em silêncio até aos catorze anos, data em que faleceu num acidente. Ia alcoolizado de tal forma que numa curva saiu da sua faixa e foi-se meter debaixo de uma camioneta que circulava no sentido contrário. Ficou completamente esmagado pelo rodado.
A mãe, uma mulher tonta ou sempre ansiosa por ter algo de um homem no meio das pernas, ainda o marido não tinha falecido há seis meses e já estava a viver com quem seria o padrasto de Felismina. Seis meses depois, quando dava tratava do gado, sentiu uma faca encostada ao pescoço e uma mão a tapar-lhe a boca para que não gritasse. O padrasto violou-a naquele momento até aos dezoito anos, altura em que se revoltou pelo que estava a acontecer como ainda da cumplicidade da mãe que a deveria defender do tarado.
Ao cairmos para na lama, as pessoas em vez de ajudarem-nos a sair, ainda nos carregam para nos afundarmos mais. Foi o que lhe sucedeu. Sabido que era na aldeia a triste sina de Felismina, as pessoas, especialmente os homens, mais pareciam abutres, prontos para debicarem a vítima. Se lhes ofereciam emprego, o resultado era ter o que os anteriores tiveram dela, mesmo que fosse esforçada a ceder. Nunca ninguém a quis ajudar sem segundo sentido.
Homens animalescos e famintos de carne feminina como que a mulher fosse uma peça de carne vinda do matadouro pronta a ser consumida ou como cão por vinha vindimada. Nas esquinas das casas com varanda e janelas fechadas, onde não entravam pegadas do dono, ouvia-se passos leves e rostos inquiridores esperando pelo passar da vitima para depois num puxão amordaçado com o silêncio da mão na boca, fizessem aquilo que lhes ia na real gana.
Nas descidas dos penedos, quando a vitima ia em busca de lenha, no seus terreno, para à noite aquecer aquilo que o frio entendia tirar, nas bordas de baixo, dissimilados de carneiros estavam perigosos lobo.
Se o silêncio não imperasse a vergonha recaía por quem acusou o violador, como se a mulher fosse a sombra de um manto que se tivesse de sujeitar a tudo.
Nas noites de trevas ou no escuro das nuvens que desciam quase até ao cimo das videiras, tenebrosas figuras de homens musculosos esperavam quem se aventurasse a tais saídas. Para os encobrir do assédio, abriam as portas dos currais para que os bois fizessem barulho com os seus chocalhos ou trazendo na sua companhia os seus cães para assustarem os galináceos. Estes barulhos permitiam a quem os originava a cumplicidade de esconder dos outros aquilo que iam fazer. Terras encharcadas de porcaria que até abafavam as botas cardadas de quem as usava. Tudo lhes era permitido como a eles, os homens, a razão estar sempre de seu lado. Para azar de quem tivesse de passar por estes caminhos, mostrava-se sem querer mas obrigatoriamente aos que estavam encostados ao balcão da taberna do Abílio.
Um balcão com uma comprida pedra de mármore roxo, toda lascada e carcomida por tanto nele esgravatarem. Nódoas de azeite, das latas de conserva, aqui e acolá que encardiam o que já tão escuro era pela sujidade embutida pelo passar dos anos. Até o trapo de tão sujo estar se desfazia em borbotas sempre que o dono fingia limpar o que estava sujo.
O chão encharcado de cascas de amendoim e de pevides para se juntar aos esqueletos dos minúsculos carapaus que Abílio vendia a quem não era capaz de beber sem ter um “dentadinho” para acompanhar. Escarretas cuspidas de bocas fedorentas pelo ardor do álcool requeimado colavam-se à borracha das botas.
Encharcados-se de zumbidos vindos da meia lata pegajosa com o saído dos mal cheirosos cascos de carvalho para depois de desatinados rondarem, de longe e perto, quem passou e quem estava, para numa sinuosa arte se aventurarem na busca daquilo que queriam. Alguns fartos de beberem davam-se ao luxo de apostar pela surdina que tinham que comer esta ou aquela. Quando desmentidos por outros da mesma laia, imperava a lei do mais forte. Murro para aqui sopapo para ali. O segredo dos feitos ou a vitória do vindo a ser obtido, era o selo de garantia dos garanhões. Aquele que violasse o hermético, uma navalhada o esperava quando o momento fosse oportuno ou quando, em grupo, fossem à caça alguns estilhaços se perdessem, quando na verdade deveriam ser dirigidos ao que botou a palavra. Se não entendesse o recado, no momento e hora certa, algo de anormal lhe sucederia, caso contrário recairia num familiar mais próximo e indefeso.
As mulheres, pouco mais podiam fazer. Se de algo soubessem ou desconfiassem, o mutismo imperava, caso contrário, carradões de porrada lhe caíam nos sacrificados corpos, de tão gastos estarem pelo esforço que executavam no amanho da terra. Pouco mais lhes sobrava que não servir o seu dono ou de quem o substituía. Pobres mulheres que nunca foram mulheres para a vida as obrigarem que na sobrevivência tudo é permitido.
Limitavam-se a falar para o Vento: - Coitadinha, que há-de ser uma desgraçada!
Felismina, não o foi nem é, porque soube distanciar-se de quem apenas queria dela, senão o seu corpo ou o pouco dinheiro, que começou a ter graças aos rendimentos obtidos do trabalho que executa. Uma mulher ajuizada e poupada., porque soube retirar-se da aldeia da podridão na altura certa.
Foi ela que foi comigo à agência do Banco da Tufeira, a fim de me ensinar a abrir uma conta em meu nome e em nome de minha filha, mas sem ela saber. Aqui depositei o resto que me sobrou valor monetário que me coube no divórcio.
Era o meu “pé-de-meia” para fazer face a alguma fatalidade que pudesse surgir no futuro como um dia ajudar Beatriz, que a minha intuição feminina e de mãe me dizia, que quando menos desse por isso, me viria visitar ou viver para a casa que ainda não conhecia.
Percorremos centenas e centenas de quilómetros vendo o desconhecido. Por estas estradas de Portugal muito ficamos a conhecer. Nunca tive apego para visitar a região do Sul, talvez por grande maioria dos portugueses se deslocarem para lá, quando da época das férias.
Penso que esta inclinação se deve mais aos motivos, pelo nosso passado histórico ter começado no Norte e por estas bandas existirem soberbos monumentos que marcam a nossa grandeza, deixando-nos a todos, orgulhosos do património que simboliza a própria história.
Levantamo-nos ainda algumas estrelas perdidas andavam em busca do melhor caminho para se esconder. Duas horas passaram para que tudo tivesse nos conforme, de maneira a que, durante a viagem se algum imprevisto pudesse acontecer, que nada nos faltasse. Partirmos em direcção a Santiago de Compostela. Um manto de nuvens negras pairava no ar. Mais as avistávamos mais parecia que o vento as empurrava em nossa direcção Começavam a ficar escuras. «Não tarda que delas se descomponha um diluvio; logo neste dia que vou fazer a viagem mais longa viagem com a Felismina». Coisa de pouca dura. Depois do ponteiro das horas ter andado dois números acima, já o Céu estava azulado, mantendo-se assim por alguns dias.
*
Santiago de Compostela é uma cidade de movimento incessante, por causa dos muitos visitantes e da vida agitada que nela se vive. Tudo gira em torno da mítica Praça do Obradoiro, verdadeira clareira entre duas ruelas do centro histórico e onde se concentram os três monumentos da cidade: a Catedral de Santiago, o Palácio do Ayuntamento e o antigo Hospital de Los Reyes Católicos.
Depois de percorrermos uma rua estreita e empedrada, cheia de bares por ambos os lados com prédios baixios mas possuidores de varandas aristocrático, características da região galega, eis a Catedral na nossa frente.
A reacção dos peregrinos ao chegar à praça da Catedral é imprevisível: alguns choram outros admiram a sua beleza e há aqueles que, além de todas as experiências vividas concluem que acima de tudo o mais importante é simplesmente estar no fim dos caminhos do “Caminho”.
Chegar à catedral é onde se aguarda um único momento: o “abraço” ao apóstolo Santiago, imortalizado em pedra, como prova do ritual que leva famílias inteiras, grupos de amigos em busca da realização da sua fé.
Os “Caminhos de Santiago” pertencem a cada um. Uma coisa muito pessoal que começa quando cada peregrino sai da porta da sua casa em direcção à catedral da Galiza. Caminhos que leva a ver crentes com o símbolo da “Vieira” indicando que se segue na direcção certa e numa viagem que passa por rios, bosques, cursos de água, igrejas ou conventos, aldeias e pequenas vilas.
Um caminho, que segundo documentos antigos, a Península Ibérica foi um espaço importante onde o Apóstolo Santiago divulgou o cristianismo. Nos princípios do século IX, a descoberta do apóstolo Santiago, o ‘Maior’ teve sobre milhares de peregrinos um enorme efeito de fé.
O Caminho de Santiago pode ser resumido de várias maneiras. Como um longo trilho que desafia tarimbados caminhantes, ou uma viagem pelos interiores de uma Europa primitiva, de hábitos camponeses e religiosos, onde o tempo parece estacionado na idade Média
Caminho pode ser entendido como uma peregrinação mística em busca de autoconhecimento. É também uma jornada entre belos monumentos arquitectónicos que variam dos estilos românicos e gótico até Gaudi, o famoso arquitecto espanhol que concebeu um palácio na cidade de Astroga.
No fundo, o Caminho de Santiago agrega todos estes conceitos e mais, transformados e glorificados numa recriação simbólica da passagem do apóstolo Tiago pelo norte da Espanha na época Cristã.
De acordo com as precárias narrações dos primórdios do cristianismo, foram estas terras que Tiago escolheu para levar a mensagem de Cristo logo depois de sua morte, em Jerusalém. Tiago, irmão de São João Evangelista, teria chegado à Ibéria, uma província do Império Romano, e ficado ali por cinco ou seis anos.
Tiago pregou do litoral ao interior e, de volta à Palestina foi decapitado em Cesaréia, nas mãos do rei judaico Herodes Agripa, que proibiu até mesmo que ele fosse enterrado. Seus restos foram lançados fora dos muros da cidade. Mas, pouco antes de morrer, Tiago pediu a dois dos seus discípulos, Atanásio e Teodoro, que seu corpo fosse levado de volta à Ibéria.
Seus restos assim teriam sido depositados numa tumba de mármore e levados num barco até à cidade de Iria Flavia – hoje Padrón, às margens do rio Ulla. A viagem seguiu por terra até um bosque chamado Libredón, onde ele teria sido enterrado em 44 d.C. Esquecido durante séculos, em 813 um eremita de nome Pelayo, segundo a lenda, sendo guiado por uma chuva de estrelas, chegou ao bosque de Libredón.
No ponto exacto onde as estrelas caíram estava enterrado o corpo do apóstolo. Um rei espanhol mandou construir no lugar uma capela de pedras e um mosteiro. Assim, nascia o mito de São Tiago e uma das mais famosas rotas de peregrinação. Para visitar a tumba, pessoas partiam numa jornada cheia de perigos que aos poucos acabou sendo essencial. Ao redor do túmulo cresceu a cidade de Compostela».
*
O dia tinha estado permanentemente debaixo do pico do Sol fazendo com estivesse embraseador. Próximo do crepúsculo, sentei-me junto da mirrada palmeira que tenho no meu jardim. È o momento em que gosto de ver bem na minha frente toda a confusão da rua que desagua de frente para a minha casa. Permite-me ver quem sobe e desce de automóvel como quem circula pelos passeios. Na Tufeira conhecemo-nos uns aos outros com sabemos a quem pertence os passos que se perdem na calçada do passeio, seja de dia para melhor ser pela calada da noite.
No Céu pequenas nuvens que parecem farrapos de algodão. Muito longe, vindas, talvez de dentro do azul, algumas estrelas vão ganhando posição; umas mais brilhantes do que as outras.
Do lado de lá de Espanha, um cinzento vai-se alongando na cúpula para pouco tempo depois desaparecer como por encanto. Olho, sem querer e a Lua Cheia começa a tornar-se majestosa como o Céu fosse todo seu. As estrelas saem do seu caminho para que a bola do pastor comece a ganhar forma como forma começa a ganhar o escuro que se aproxima.
Nem uma aragem de ventania para que a noite seja fresca. Vale-me a fresquidão vinda da terra que poucas antes horas reguei. É o momento muito único que mais gosto do final do dia e do começar da noite. O cheiro da terra seca que depois de molhada começa a pairar. Um aroma agradável que me faz levitar numa atmosfera de consolo.
Até a relva que embeleza alguns canteiros se revira para se contorcer pelo chão húmido que a sacia de prazeres como prazer sinto quando inspiro aquilo que me agrada mas que ao mesmo tempo não sei de onde vem e, pouco me interessa. Tempos vão em que desejei estar debaixo dela, no silêncio da catacumba, tendo como companhia os vermes parasitas.
Agora não: quero viver a vida, esquecendo o passado mas não sonhando com o futuro a fim de ter os pés bens assentes no presente. Atrás, apenas vou buscar um pouco da experiência que adquiri mas sem mexer nas páginas que se fecharam. Burra seria, propiciar asneiras que não se devem repetir.
Olho para o cimo da rua e enxergo a meio uma figura feminina, saindo de dentro de um carro, estacionado pouco antes, para agora descer o caminho enquanto transporta uma mala. O que me chama a atenção, não é a mala, mesmo sendo coisa rara por estas bandas, mas de tão excêntrica ser a mulher, obrigando-me a esfregar a vista, que se vai mirrando, com as palmas das mãos para ver melhor.
- Meu Deus!....quem será aquela figura de gente que não me é estranha?
Mais olho, mais sinto arrepios, tantos que o meu pobre gato começa a miar como uma gata com o cio, roçando-se insistentemente pelas minhas pernas que começa a incomodar-me.
- Mas que tem o raio do gato que nunca se portou assim?
- Será possível e verdade o que estou a ver?
Mais se aproximava mais as minhas incertezas aumentavam para ao mesmo tempo começar a sentir algo de estranho dentro de mim.
Pouco mais de uma centena de metros faltavam para atravessar a rua que entroncava com a que descia e tive a certeza que aquele corpo espampanante não era mais nem menos do que Beatriz. As lágrimas corriam-me na cara com o unto de um dilúvio. Não era possível ser a minha filha. Mas era.
Abracei-a contra o meu corpo. A carne da minha carne e o sangue do meu sangue estava na minha frente. Tanto tempo sem a ver.
- Minha querida filha, por onde tens andado? Como estás diferente e mais mulher?
- Oh Beatriz! Que saudades tinha de ti: Como é possível estares há tanto tempo longe da tua mãe e nem uma sinal me deste ou uma palavra me escreveste para saber onde estavas?
- Mãe, não faças cenas à porta da casa que podem nos estar a ver!
Beatriz não tinha mudado nada. Fria e distante, como se uma mãe abraçar uma filha fosse uma coisa do outro mundo.
- Se soubesse o que já corri e as voltas que dei para saber onde morava? Estava a ver que me ia embora novamente.
- Como te podia dizer que já não morava na casa do Sr. Miraflores se não sabia onde paravas e muito menos a tua morada.
- Mas entra para a nossa casa querida. Bem me parecia que algo ia acontecer hoje. Andava estranha. Até a Tareco andava esquisito, como que a querer-me anunciar que qualquer coisa por aí vinha.
Mal, entrou perguntou logo onde era o seu quarto para levar as suas coisas, como parecendo que eram muitas. Quando voltou, sentamo-nos na salinha de estar, perguntando-lhe eu a razão das razões que a levaram a sair de casa sem se despedir de mim como me dizer o que já sabia.
Reparei, que estava uma mulher feita como um corpo esbelto possuía, o suficiente para dar cabo da cabeça aos homens.
- Beatriz, como está diferente e tão bonita?
- Deixe-se dessas coisas mãe e falamos de outras coisas, por exemplo o que a levou a comprar esta casa que mais parece um alpendre?
Condoí-me com o que disse como fingi que era um elogio, quando sabia que me estava a rebaixar, como sempre gostou de fazer.
- Filha, não é bem um alpendre, mas sim a nossa casinha que comprei com o muito sacrifício com o dinheiro que recebi de teu pai, após o divórcio. Sabes que temos que poupar porque não sabemos o dia de amanha?
- Por amor de Deus, mãe, podias ter melhor gosto, quer na casa quer no local?
- Mas Beatriz, achas que esta casa, tendo no rés-do-chão, uma cozinha enorme e uma dispensa que cabe lá dentro quase um armazém, uma sala de jantar, uma sala de estar, uma arrecadação para passar roupa e costurar, debaixo do vão da escada, um pequeno sótão, duas casas de banho, uma marquise que me encanta nas manhãs de Verão, vendo o Sol a nascer e este quintal, quer na frente quer nas traseiras para depois no piso de cima ter três quartos, outras duas casas de banho e uma sala, para além da varanda que vais de uma ponta à outra do prédio é um alpendre?
- Deixe-se dessas lamúrias! Quanto deu pela casa?
- Olha Beatriz, depois de feita a escritura e mobilada, gastei uns milhares
- Mas recebeu assim tanto dinheiro do pai?
- Como sabes o pai tinha bens suficientes, como nos casamos por “Comunhão Geral de Bens”, teve-me que me dar a minha parte, retirada a tua parte que ficou na posse dele.
- Que é feito do pai?
- Para te ser franca, não sei e pouco me interessa. O que te posso dizer é que nunca mais o vi após a separação como nunca se preocupou em saber nada de ti, salvo se com ele contactavas.
- Também nunca mais falei com ele.
- Mas dizia-te Beatriz, que o pouco que sei foi o que ouvi por ai: que pediu transferência e foi para não sei onde.
Não deixava de olhar para a minha filha. Uma mulher perfeita. Elegante e bem vestida. A roupa que trazia vestida não era qualquer uma. Devia ter custado uma pipa de massa.
- Gastaste tudo o que recebeste do pai?
- Claro que não filha! Ainda tenho na conta da agência, aquela que o senhor Armando é gerente, o sobrinho da Etelvina, lembras-te? Tenho lá o suficiente para passarmos uma velhice sem sobressaltos e temos esta casa que está em meu nome.
- Que pensas fazer do dinheiro que lá tens?
- Deixá-lo lá a render para um imprevisto que surja. Afinal nem preciso dele, o que ganho dá-me para mim e ainda sobra.
- Se bem compreendo, ainda trabalhas no Miraflores?
- Claro que sim filha! E, o senhor Miraflores gosta muito de mim, sempre se preocupou com a mãe como quase todos os dias pergunta por ti. Espero continuar lá por muitos anos.
- Agora diz-me duas coisas Beatriz que tem sido o meu tormento: porque te foste embora sem me dizeres nada e o que fazes?
Levantou-se do sofá para ir até à marquise. Fui atrás dela, esperando que me respondesse.
- Realmente isto tem uma boa vista para a serra. Deve ser lindo de manhã ver a bola de fogo aparecer por detrás daquele alto, e apontava para onde estava a olhar.
- Responde-me filha, para que a minha consciência esteja em paz. Quando me lembro do que fizeste e do tempo que estive sem saber nada de ti, até me falta o ar.
Voltou-se para mim, e sem eu esperar, veio na minha direcção para me abraçar enquanto soluçava de tanto chorar. Tudo numa fracção de segundos quem nem dê por estar lavada em lágrimas. Foi preciso sentir algumas gotas das suas lágrimas para a abraçasse ainda com mais força.
- Olhe mãe, fazemos assim: esqueça o que aconteceu e deixes de ser curiosa. A vida só a mim diz respeito, logo não se preocupe. Não me têm junto de si?
- Mas porque não respondes ao que te perguntei?
Larga-me bruscamente, para numa voz de cólera e com os olhos cheios de raiva, me dizer:
- Esqueça o que quer saber e não me faças essas perguntas. Se entender que lhe devo dizer os motivos do acontecido, digo-lhe senão me apetecer.... O que interessa é que estou junta de si e aqui ficarei.
- Nem do que pensas fazer do teu futuro posso saber?
- Porra, mãe! È surda ou quê? Não ouviu o que lhe disse?
Compreendi perfeitamente o que me queria dizer, quer em termos críticos como depreciativos. Nunca foi para mim a filha que as filhas costumam ser para as mães. A minha consciência não me pesa porque tentei dar e fazer o melhor por ela. Se falhei ou o contrário, ainda hoje busco a resposta, que me atormenta sempre que tento entrar nas causas daquilo que nem eu próprio sei explicar.
Seja como for, os dias iam passando. Eu ia trabalhar como de costume para Beatriz ficar em casa. Levava os dias sem fazer nada. Nem a cama fazia como deixava a casa de banho toda desarrumada. Quando lhe perguntei os motivos a resposta foi que estava acostumada a que lhe fizessem tudo. Perguntei-lhe, quem e como, para prometer a mim própria nunca mais o fazer porque a resposta que recebi foi de me atirar ao chão.
Sabia, porque ouvia, que os dias eram passados ao telefone. Nunca consegui entender as conversas feitas com alguém do lado de lá. O que era dito mais não era do que uma babilónia de códigos que juntando as frases perdidas, dificilmente consegui juntá-las com o objectivo de chegar a uma conclusão. Nem todas eram de bom timbre. Após terminadas aparecia-me junto de mi com um cara como que eu tivesse culpa de tudo.
Levando os dias inteiros em casa, desconhecendo eu os seus planos para o futuro, delineei os fins-de-semana começassem a nos dar a possibilidade de viajarmos um pouco no meu Ford conhecendo outros locais e outras gentes. Assim, Beatriz conheceria coisas diferentes.
Não que eu fosse uma aselha a conduzir, mas reconheço que não sou um ás ao volante. Pedi-lhe se queria conduzir dado ter melhores reflexos do que eu ou se queria levar o seu automóvel, daquele que saiu quando chegou a casa. A resposta foi que não estava para mexer no «seu carro» para irmos na “carripana” o meu carro. Sempre a humilhar-me e a levar-me a abaixo.
Meu Deus, que mal fiz à minha filha, para me tratar assim? Desisti de saber as razões como do rancor que sentia. Todo o seu ser e formas de falar eram de raiva para tudo e com todos, até para comigo, sua mãe.
Foi assim que fiz vários passeios com Beatriz. Visitei a Casa Museu dos Patudos, em Alpiarça. Um palacete extraordinário e uma obra-prima do arquitecto Raul Lino. Nas varandas do museu, voltadas para o rio, que lá longe desce a caminho da Barra de São Julião, pelo intermeio, perdemos de vista a extensão da planície ribatejana, constituída de vinhedos.
Caminhamos pelas galerias do museu e tudo nos deslumbra. Faz-nos deslumbrar. No interior do solar, em tempos, a morada de José Relvas, o homem que no dia cinco de Outubro de mil novecentos e dez proclamou bem alto na varanda do município de Lisboa «Viva a República!» sonhamos com a história dos nobres, da sua cultura e do amor à arte. Relvas deveria ter sido um homem com uma cultura acima da média para a altura em que viveu.
Fiquei a saber por intermédio da funcionária que explicava ao pequeno grupo em que nos incluíamos, que «José Relvas para além dos imensos cargos que desempenhou derivado ao seu alto cargo de ministro, advindo por ter sido um dos mais defensores do novo sistema político como um acérrimo entusiasta para o sucesso da república e ter sido um amante da cultura, como se pode ver pela obras presentes nesta casa, foi ainda um grande benemérito. Deixou toda a sua fortuna e património aos pobres da terra que o recebeu e que sempre o tratou como um filho seu fosse».
Lembro-me como fosse hoje, da paz de espirito que sentíamos quando percorríamos as enormes salas, ouvindo a desenrolar de quem tanto sabia do passado de um dos maiores vultos da nossa história. Uma casa que nos faz sonhar e idealizar aquilo que não nos é possível. A Biblioteca, a Sala dos Primitivos, Galeria Verde, Sala de Jantar, a Sala das Colunas, o Salão Renascença, o piano que deliciava os prazeres dos nobres, o segredo guardado da morte do filho de José Relvas e todos os segredos que a envolvem. Depois o mobiliário, as porcelanas, as pinturas, as pinturas, as tapeçarias e os tapetes de Arraiolos. Como este homem possuía tanta sensibilidade artística.
Beatriz deslumbrou-se com as porcelanas de Sévres e de Saxe, os azulejos hispano-árabes, medalhões, várias peças da Companhia das Índias, cerâmicas do Rato e da Bica do Sapato e Vista Alegre; os bronzes de Chapu, de Mercié e de Frémiet. Painéis provenientes do Convento de Santo António da Chamusca dão realce à Sala de S. Francisco. De fora encanta-nos o jardim, o alpendre a torre.
Fomos fazer um longo e descontraído passeio a pé pelas muralhas de Óbidos para apreciar a vista tão típica com as casas caiadas de branco e de barras coloridas de amarelo e azul tão brilhante; visitamos a imponente fortaleza concebida com evidentes preocupações palacianas, não deixando de manter o pendor militar nas sucessivas linhas de mata-cães em todo o sentido monumental que á o Castelo de Ourém. Gostei de ver a passagem coberta que unia o paço a uma torre cilíndrica, vestígios da ligação ao antigo castelo muçulmano refeitos nos começos da monarquia. Mas que paisagem soberba nos oferece o Castelo de Ourém? Até parece que o mundo é todo nosso; desci mais um pouco e fui ver o sitio onde nasce o Almonda, uma nascente que jorra água cristalina vinda das profundezas da Serra de Mira de Aire, fazendo-a desembocar no inicio do pequeno lago, que por sua vez caminha pachorramente para a cidade mais próxima; nem meias dúzia de passos dados, logo a seguir à queda da água, que nos faz sonhar pelo barulho do fluido, catorze tropeças, com sítios bem demarcados, leva-nos a recuar no tempo para imaginar as lavadeiras que branqueavam a roupa, cuja água mais nenhuma vez passaria por debaixo de seus pés; nas proximidades os restos dos moinhos de azeite e de cereais que eram movidos pela força da água no sítio conhecido pelo “Moinhos da Fonte”; o castelo de Tomar, fundado no século doze, depois de cuidadosa escolha do sítio. O castelo tinha a finalidade de ser cabeça da Ordem do Templo e de consolidar a posse de territórios conquistados. Aproveitou-se na sua construção, muita pedra da cidade de Além da Ponte, a Sellium romana, na margem fronteira do Nabão. Este castelo revela a mais avançada arquitectura militar da época, a que se realizava na Terra Santa. Trazida foi por Gualdim Pais e outros Templários, duas cintas de muralhas, o emprego conjunto de torres redondas e cubelos, semelhanças de portas de muralhas, a maravilhosa Charola inspirada no Tempo de Jerusalém; fui para o Alentejo, mais concretamente para as proximidades de Elvas para ver com os meus olhos a cidade que é portuguesa mas que não é nossa. Uma velha história que comecei a ouvir no tempo dos bancos da escola: Olivença como a Ponte de Nossa Senhora da Ajuda ou também conhecida pela Ponte de Olivença. Uma ponte fortificada com um torreão a meio, que ligava Elvas a Olivença, constituída por dezanove arcos. Foi durante a Guerra da Sucessão Espanhola ( século dezoito) que foi destruída pelo exército castelhano, ficando assim interrompida a única ligação entre as duas cidade. Uma maldade que faz com que Olivença esteja ocupada pelos espanhóis, pois para lá irmos temos que atravessar território espanhol; das janelas do magnífico castelo de Leiria, vê-se a cidade toda e, a perder de vista, o famoso Pinhal de Leiria. Por um momento parei no tempo para imaginar D. Afonso II, reunindo as primeiras cortes em que estivarem representantes do povo para no reinado seguinte. D. Dinis, o rei agricultor e poeta, escolher o castelo para residência. Foi nele que D. Isabel, a Rainha Santa, educou o futuro Afonso IV. Como é bom sonhar: ver aquelas janelas em arco fazendo lembrar os trovadores medievais e donzelas encantadas com as cantigas de amor de amigo. Lá longe, o Pinhal, mandado plantar por D. Afonso III, intensificando D. Dinis a plantação de “verdes pinhos” para suster o movimento das dunas. Descer a rua que no passado tanto sentiu o passear das donzelas, seguindo depois para as margens dos rios Lis e Lena para acabar na região intermédia que foi uma “terra de ninguém” onde os bosques e as charnecas predominavam, mal aflorando ali o humano; andar pelo lugarejos que nos levam aos confins da floresta, vendo aqui e acolá fadas e duendes, deslumbram quem sabe ouvir a natureza.
- Ainda gostava de saber essa tua mania de só quereres visitar montes de pedras? Que me interessa a mim estes masmorras vazias e desprezadas que até assustam?
- Beatriz, sempre gostei de saber um pouco da nossa história. Nem sempre tive a possibilidade de o fazer. Não sabes a alegria de poder agora andar a viajar por terras de Portugal para que possa imaginar o que fomos e o que somos. Um dia talvez saibas a sensação que é andar passeando na companhia dos nossos filhos.
Por mais tentasse lhe agradar, tudo o que fazia ou propunha estava errado. Se induzia assuntos que nos dissessem respeito, a sua opinião era ineficaz; se falássemos da nossa vida e da sua situação, havia logo disparate por sua parte com um palavreado que não acreditava que fosse utilizado pela minha filha. Sempre tive um cuidado especial para nunca falar mal junto dela, enquanto criança como outros o fizessem. Defendi e defendo, que com o tempo, as crianças aprenderão aquilo que os pais não lhes ensinam. É assim a rotação do mundo e das coisas, porque as alterar?
Comecei a concluir «se não falas para mim começo a fazer o mesmo. Deu resultado. Levava o tempo, que estava em casa ou na companhia dela num completo mutismo. Nem se chateava ou me ofendia como eu continuava ao que estava habituada. Pura e simplesmente ignorávamos uma à outra. Nada disto queria, mas reconheço que não fui capaz de encontrar a melhor maneira para que tudo se invertesse.
Das poucas vezes que falava, sem lhe perguntar o quer que seja, deixava-me no ar que deveria trabalhar em algo muito estranho mas lucrativo. Falava-me em compras que fez como dos preços que pagava, para além dos ambientes que frequentava, sem me dizer quais, que mesmo não tendo inteligência para avaliar tinha esperteza de ser necessário muito dinheiro para o que acaba de ouvir.
Como a minha filha arranjava dinheiro em tal quantidade, desconhecia por completo. Algo que começou a remoer bem dentro de mim, levando-me a pensar coisas que, sendo verdadeiras, não seria possível Beatriz praticar. Se fosse, então que eu levasse o resto da minha vida sonhando para não saber daquilo que deveria saber. Todo o meu futuro que fosse como a avestruz; com a cabeça debaixo da areia.
Que pode fazer uma mãe quando a filha lhe diz que «leva uma vida estranha, escolhida por ela mas incompreendida pelos outros?». Não podemos fazer nada, resta-nos aceitar, mesmo que nos primeiros dias tenhamos a impressão que o mundo caiu em cima de nós.
Trinta dias tinham passado desde a chegada de Beatriz. Na oitava hora do oitavo dia do mês antecedente ao nono, de um ano da década de oitenta, o Diabo entrou em minha casa para apregoar que nada às vezes o que pensamos se torna realidade para depois a vida se encarregar de nos trocar a volta.
- Mãe, daqui a pouco vou-me embora. Não quero deixar de lhe dizer o que faço mas não lhe digo onde estou. Julgue-me como quiser.
- Que queres dizer com isso querida filha?
- Quero-lhe dizer que a minha profissão, que por acaso até me dá bastante dinheiro a ganhar, é a prostituição!
Nada de que não tivesse já pensado, mas até ouvir da boca da minha filha vai uma grande distância. Não sabia se deveria falar, escutar ou mandar-me para o chão aos turbilhões pela triste noticia que acabava de ouvir.
Fiquei sem um pingo de sangue. Fiquei com a sensação de que a terra se tinha aberto, onde estava, para me engolir as palavras que acabava de entrar nos meus ouvidos. Perguntava a mim mesma, como um dia dizer aos outros que a profissão da minha filha era «puta»?
- Estás a brincar com a mãe, filha?
- Achas que o que disseste sejam conversas que uma filha tenha para a mãe?
- Ouça, mãe, quer queira quer não, sou aquilo que lhe acabei de dizer. Se aceita ou não o problema é seu. Mais lhe digo:
- Na antiguidade, em muitas civilizações, a prostituição era praticada por meninas como uma espécie de ritual de iniciação quando atingiam a puberdade. No Egipto, na região da Mesopotâmia e na Grécia, via-se que a prática tinha uma ritualização. As prostitutas, consideradas grandes sacerdotisas – portanto sagradas – recebiam honras de verdadeiras divindades e presentes em troca de favores sexuais.
- Mais lhe digo:
- Com o advento do cristianismo houve a tentativa da eliminação da prostituição. Porém existia o culto ao casamento, onde a política e a economia sobrepujavam aos sentimentos, e as uniões eram arranjadas somente por interesse, reforçando a prostituição. Não sabe, mas fica a saber que o poder das prostitutas era muito grande; muitas tinham grandes conhecimentos. Por estas e por outras é que me considero uma pessoa importante, pois parte dos meus clientes são pessoas que estão bem colocados na sociedade. Não se esqueça que na época em que a Grécia e Roma polarizaram o domínio cultural, as prostitutas eram admiradas, porém tinham que pegar pesados impostos ao Estado para praticarem a profissão. Na Grécia, existia um grupo de cortesãs, chamadas de heteras, que frequentavam as reuniões dos grandes intelectuais da época. Eram muito ricas, belas, cultas e de extrema refinação; exerciam grande poder político e eram extremamente respeitadas. Eu não sou refinada e muito menos respeitada, mas não pago impostos e ganho dinheiro com fartura.
Não sei se os meus ouvidos estavam com zumbidos ou, por causa do barulho que algumas folhas secas faziam quando caíam no chão em virtude de as árvores estarem a começar-se a despir-se, o certo é que não percebi nada do que Beatriz me disse. Como seria possível a filha que andou dentro da minha barriga falar em «coisas de putas» como falássemos da coisa mais corriqueira? Teria feito mal a alguém noutra vida qualquer para tudo isto me estar a acontecer?
- Mas filha, onde aprendeste isso tudo e como falas em prostitutas com tanta facilidade?
Olhou para mim com olhos ensanguentados de sangue e soprando mais forte do que o vento para numa corrida brusca empurrar a porta, agarrando o que tinha trazido quando chegou. Estancou bem diante de mim, que até tive receio de me ir dar algum estalo na cara, para me dizer:
- Vá bardamerda, que me vou embora! –
Não lhe bastasse, ao abrir o portão, deu-me de presente, estas palavras que vez alguma, na minha vida, as esquecerei.
- Por estas e por outras é que não passa de uma reles criada? Nunca mais saberá nada de mim.
Dois dias depois, Felismina encontrou-me toda arreada. Veio á minha casa procurar-me porque eu não apareci ao serviço e facilmente deduziu que alguma coisa tinha acontecido. Não fosse ela, tenho a impressão que quem me encontrasse teria que me levar para o cemitério. Não sei como dormi quase quarenta e oito horas seguidas.
Foi Felismina que me deu força para suportar e aceitar esta partida do destino. Tenho a impressão de que andei abalada durante meses. Valeu o apoio de quem sabia da minha situação que se cingiram a omitir toda a historieta de algum curioso ou curiosa. Os meus patrões tudo fizerem para que esquecesse o sucedido como me estimularam para seguir o caminho traçado por mãos alheias e andasse de «cabeça erguida».
Conselhos que aceitei, levando-os às riscas, mesmo confessando que me foi bastante doloroso. Mas o tempo tudo faz esquecer como nos ensina a aceitar aquilo que os nossos filhos sonham para a vida deles. Até sabemos perdoar-lhes o mal que fazem e os caminhos que escolhem, mesmo que alguns sejam bem amargos para nós.

8
Cinco anos passaram sem saber notícias de Beatriz. Tudo me é indiferente. O que já passei e ouvi de quem menos esperava tornou-me fria demais. Passei a viver única e simplesmente para mim. Gosto da vida que levo como da liberdade que tenho. Continuo a passear e a visitar o que não conheço. Pena tenho de não ter mais tempo e outros meios para ir para o lado de lá do mar.
Os dias são passados na rotina habitual como as minhas amizades se resumem a meia dúzia de pessoas. Jamais deixarei de estar ao lado de quem me apoiou no dos momentos mais difíceis da minha vida.
Mentiria a mim própria, se não reconhecesse que alturas existem em que ouço o meu coração a chorar. De bem longe, sinto alguém clamando por mim. O sangue de meu sangue grita uivos de dor e amargura, pedindo ao vento que me chama para lhe acudir. Como, se não sei, de onde vem os bramidos profundos que me despedaça o coração? Tudo se torna um negrão; a minha alma e o meu ser desfaz-se como o frio no quente. Minhas pernas fraquejam e a minha voz fecha-se. Ruídos estranhos entram por mim dentro fazendo com que as veias do meu pescoço quase queiram sair de onde estão. Os cantares dos passarinhos tornam-se num choro rodopiante que quase poisam na minha dor.
Muita coisa aconteceu na meia década que passou. A vida continua. Certo dia fui, pela primeira vez na minha vida a uma biblioteca, a da Junta de Freguesia da Tufeira. Como gostei de ver prateleiras cheias de livros. Detalhei, sem vergonha a minha ignorância quando à leitura. A funcionária ouviu-me sem me interromper vez alguma. Numa voz doce e de quem compreende as mensagens das palavras levou-me até junto do primeiro livro que li, vindo de uma biblioteca pública. Começava um nova vida, e de que maneira.
- Venha comigo, para lhe aconselhar um livro. Deve começar pelos contos e lendas para saber dos fascinantes relatos sobre a vida dos deuses, heróis e homens comuns.
Para me encorajar, retirou um livro: sozinhas que estávamos, leu-me um pouco da história que vinha escarrapachada na capa do livro.
- Homero deu aos Gregos a sua epopeia: a Ilíada e a Odisseia. Vários séculos mais tarde, Virgílio escreve para os Romanos a continuação: a Eneida. Após a queda da cidade de Tróia, Eneias abandona a pátria e conduz os seus companheiros troianos até uma terra prometida, um novo mundo. Relatam-se neste livro os principais episódio desta fantástica aventura mediterrânica. Do encontro dos deuses e dos homens, de dramas e maravilhas, nascerá o povo romano.
Gostei de a ouvir. O caminho contrário à ignorância começou a ser desbravado. De tal forma que passado pouco tempo, mandei colocar na minha “sala de estar” várias prateleiras para em breve receberem os primeiros livros. Todos os meus tempos livres - da noite - eram passados aqui. Não encontro palavras para descrever a sensação de: estar junto de uma lareira, nas noites tempestuosas e frias do Inverno, sentada num sofá, com a luz de um “candeeiro de pé alto” iluminando o caminho da busca da sabedoria e do conhecimento; depois ouvir os estalar dos cavacos ressequidos, fazendo fagulhas que parecem as castanhas quando estão a ser assadas.
Certo dia, pela manhã, compareceu o carteiro no meu local de trabalho, coisa não muito comum, para me entregar um aviso a fim de levantar na estação uma carta com aviso de recepção. No dia seguinte apresentei-me onde me foi indicado para levantar o escrito. Era uma carta que o senhor Armando me enviava e onde me notificava para me apresentar no seu local de trabalho para tomar conhecimento de “assunto de seu interesse”.
Quando depositei a dinheiro vindo da causa oriunda do divórcio, o filho da Etelvina – depois de ter saído da escola dedicou-se aos estudos até conseguir entrar para o banco. Subiu os degraus um a um tendo chegado ao cargo hierárquico que desempenhava. Não ficou por ali. Mais tarde e por mera casualidade, vim a saber, por intermédio da mãe que encontrei na Feira do Cavalo, que já estava num Conselho de Administração de uma empresa qualquer, pertença do grupo bancário – aconselhou-me a colocar algum valor no fundo qualquer de investimentos. Falou e explicou muito bem mas não percebi nada do que disse.
Como era amiga da mãe, confiei nele como nas referências e elogios que ouvia de tempos a tempos de sua mãe, dando-lhe autorização para que fizesse o melhor que entendesse, pois se havia alguém conhecedor na matéria, seria ele e nunca eu.
Deu-me uns papéis quaisquer em branco para assinar, salientando-me na altura, não me esqueci destas palavras que o «investimento tem riscos elevados» mas vale a pena corrê-los porque a correr bem, ganha uma «pipa de massa».
Agora comunicava-me que a aplicação que fizemos nas “acções” tinha terminado o «prazo de aplicação». Queria que lhe dissesse que destino a fazer ao dinheiro. Já a algum tempo que pensava em comprar um bocadinho de terra. Juntou-se o útil ao agradável. Continuava a manter a reserva para os maus dias que por ventura aparecessem, que isto do dia de amanhã, ninguém sabe quando o “mafarico” está atrás da porta.
Dei o meu aval para que fosse colocado à ordem na minha conta pois precisava de fazer um outro tipo de investimento. Anuiu de boa vontade, aconselhando-me que após os gastos, se algum sobrasse voltasse à sua presença para falarmos de novos investimentos. Não lhe fiz a vontade porque comprei aquilo que sempre sonhei, a minha fazenda.
Agora que a minha vida estava estável e saída da escravidão, aquele bocado de terra andava debaixo de olho.
Aquele bocado de terra que trazia debaixo de olho. Disposta algures no sitio denominado “Patudos”. Um palmo de terra bem entravacada entre as “Acácias” e rio Tejo. Terra castanha escura, forte como só a terra friática costuma ser. Tudo dá a quem a cultiva. Limpa e desinfectada pela natureza, quando das cheias, que mais podia querer? Mais ou menos cinco hectares remediava a minha fome pelo amanho.
Fui criada nela e bem cedo tomei o gosto do que é ver a terra a sorrir para quem a cuida; de a ouvir gemer quando a enxada entra nas suas entranhas; nos fins das tardinhas do Verão, andando pisando-a para que os estalidos dos torreões se esmagam pelo nosso peso; de ver nas videiras e nas oliveiras pequenos ninhos de melros e pintassilgos; de ver saltitando pelos carreiros, coelhos e lebres selvagens que sabem quem é dono daquilo que os alimenta.
Dei à herdade o nome de “Migadalho”. Talvez em memória de quem faz parte do meu passado e que tanto amou um bocado de terra com o mesmo nome. Tanto gostava dela que para não ter que a vender, salvando assim de a sua fortuna de ir por água abaixo, não se quis desfazer dela por nada deste mundo. Bem caro lhe ficou.
O “Migadalho” era a menina dos meus olhos. Nela comecei a entregar parte do meu esforço como as gotas de meu suor. Replantei novas videiras, algumas oliveiras e outras qualidades de árvores. A meio mandei reconstruir o poço que dava água em pipa. Debaixo do seu nascente passava um veio de água. Por cima do bocal, tinha uma romãzeira, cujos ramos se entrelaçavam numa armação de madeira que nos finais de cada ano estava carregada de fruta. Passado algum tempo já apanhava as melhores uvas da região.
A meu lado, com uma enorme satisfação, tive sempre como companheira a minha fiel amiga Felismina. Gostava da terra como eu, não fossemos as duas o fruto da terra. Quando soube da compra, deu saltos como uma criança. Ofereceu-se logo para me acompanhar e ajudar no que fosse preciso. Desta fidelidade, tudo que obtínhamos da terra, depois de vendido, os lucros eram divididos irmamente. Dedicou-se à causa como a coisa sendo dela.
A minha vida não era um mar de rosas. Não podia, nem devia exigir mais da vida do que aquilo que me dava. Tudo parecia caminhar a bom porto. O tempo começou-me a faltar mas bem aproveitado dava para tudo, sobrando tempo para as minhas leituras que me fazia despertar e aperceber da ignorância que me acompanhou no passado. Todos os dias quando acordava agradecia a Deus por tudo que me dava, perguntando a mim própria, se o sofrimento que tive mais não foi o resultado do bom que agora recebia. Estava grata e, de que maneira, ao divino. Uma fé que ainda hoje me acalenta. Talvez fosse nesta fé que consegui sobrepor os obstáculos que assomaram na minha vida. Se soubesse o que sei hoje, não os passava mas contornava-vos.
Comprei um carro mais moderno para que tivesse uma maior segurança e comodidade. Uma carrinha “Opel”, além de me transportar para onde queria ainda me dava bastante jeito para levar pequenos utensílios para o “Migadalho”. Uma escolha feita exclusivamente por mim, da qual não me arrependo. Ao entrar no Stand senti-me a mulher mais importante do mundo. Acabava de entrar no mundo dos homens sem deles estar sujeita ao que fosse. O vendedor ao ver-me entrar, depois de informado do que procurava, iniciou um conversa de vendedor da banha da cobra. Cortei-lhe o diálogo, dizendo-lhe:
- Quanto custa aquele carro?
Dava a informação do valor, apenas lhe respondi que comprava o mesmo e que iniciássemos de imediato a burocracia, de forma a trazê-lo de seguida. Ficou embasbacado com a minha afrontação. Tenho a impressão de que nunca encontrou pela frente uma mulher decisiva numa compra. Foi a minha intuição que me disse para comprar aquilo que procurava. Mal meti o pé no degrau, a minha voz interior disse-me «Leva-o». Assim fiz como quando me lembro desta coisa estranha não encontro qualquer lógica.
À noite, fui buscar a minha confidente, para que juntas fossemos a Fátima. Um local sagrado muito importante para mim. Mal entrava no espaço sagrado sentia como uma onde de vento passando dentro de mim, limpando a minha alma como se ela estivesse encardida. O meu Ser transfigurava-se de uma forma estranha. Dava-me paz de espirito. Retornava pronta para mais uma batalha.
Sempre que podia não dispensava a leitura. Em mim própria ia descobrindo aos poucos que o meu conhecimento aumentava cada vez que agarrava um livro para o ler. Bem cedo descobri que a filosofia era o meu mundo. Aprendi bem cedo que aquele que possui a vontade firme e confiante de usar sempre a razão o melhor que lhe é possível, e praticar nas suas acções o que julga ser o melhor, é verdadeiramente sábio. Encontrei na filosofia ensinos que mudaram radicalmente a minha formação tacanha que fazia parte da minha pessoa. De Spinoza aprendi que «interessam-me os actos humanos, não para me rir deles, nem para deplorá-los, nem sequer os detestar, mas simplesmente para compreendê-los».
Sem saber como, apercebi-me que a minha ignorância estava a ser substituída pela minha ganância de saber e querer aprender mais e mais. Sentia em mim algo que me levava a aprender o que não sabia. Bem dentro de mim sentia uma força que me empurrava para a busca do desconhecido. Cada livro que lia fazia com que encontrasse mais duvidas. Pedi a Felismina que durante determinado período tomasse conta do meu “Migadalho” porque ia em busca de novos horizontes. Num ápice, tirei o bacharelato de contabilidade, porque sempre tive queda para os números. Custou-me imenso como me custava as viagens de ida e volta que fazia para a cidade do Mondego, mas valeu apena, mesmo que alguma vez viesse a usufruir ou a colocar na prática o que aprendi. Não tirei uma licenciatura porque seria obrigada a deslocar-me para Lisboa a horas indisponíveis para o emprego que continuava a ter, no qual, Miraflores era o primeiro a incentivar-me com o «vai para a frente».
Suspendi provisoriamente esta ânsia de querer para hoje o mundo de amanhã. A idade pesava-me para às vezes perguntar a mim próprio a razão desta sofreguidão.
Dizem que a vida é supostamente uma maravilha. Andei perdida no deserto para ver o oásis bem perto. Quando julgava estar a alcançá-lo uma miragem tomou conta de mim.
Se a vida é uma maravilha, então, digo: «uma ova». Quando menos esperamos levamos com um bocado de nuvem em cima de nós que até andamos de lado. Há conjunturas como encontro e desencontros. Conheci as duas faces de uma só moeda. Tudo é uma só coisa mas com substâncias diferentes.
Que raio de sorte a minha, que cada vez que as coisas me começam a correr bem, vem lá de cima uma estrela perdida para acertar em cima de quem não a esperava e muito menos tinha pedido a alguém que caísse. A vida, que nunca lhe fiz mal, agourou-me as pisadas que faço na terra. O destino, se alguém for, persegue-me como que me castigando por razões que desconheço. Mais do que nunca chego à conclusão que algo estranho nos comanda como nos encaminha em direcção ao abismo, cuja profundidade desconhecemos.
Lembro-me perfeitamente, do que me aconteceu a alguns anos no Dia das Almas. Estava sozinha em minha casa, tendo como companhia o Pantufa cão de minha vizinha, que por ter que se deslocar à capital a fim de fazer uns exames médicos, me pediu que ficasse com o canídeo por um dia. Não me importei como o Pantufa deve ter ficado contente com a mudança imprevista, já que durante a estadia na casa que não era a dele, mas não alheia de todo, acompanhou-me sempre nas passadas que dei. Às vezes não podemos encontrar quem não quer ser encontrado mas quem na procura nos encontra. Na minha cozinha, quando se entra, do lado direito: algumas prateleiras rectangulares pregadas ao comprido na parede, que servem para armazenar a mais variada louça; por baixo um pequeno móvel que guarda os talheres para ao lado ter a máquina de lavar louça. Na outra parede, uma longa bancada, tendo de um lado um pequeno armário assente no chão, onde guardo sacos, guardanapos, toalhas e mais apetrechos de apoio; a meio, o fogão; encostado a este, o lavatório para depois na outra parede, tendo no meio a porta, que dá para a marquise e, por detrás desta, quando aberta o frigorifico, que na parede lateral, que faz o quadrado, a mesa que serve para as refeições e mais coisas, quando necessário.
No Dia das Almas, deveriam ser para aí umas nove horas, jantava uma refeição ligeira, na paz de Deus. Tinha fechado a porta da cozinha que dava ligação para o resto da casa. Fazia-o sempre, mais por uma questão de hábito do que outra coisa. Sempre evitava que o cheiro dos fritos se espalhasse pela casa adentro.
Junto à maquina de lavar a louça, encontrava-se o Pantufa sentado em cima das suas patitas traseiras para amparado pelas mãos, olhar-me espantado ou esperando que lhe desse alguma migalha do que saboreava. Um cão todo castanho tendo a meio da testa, um pequeno sinal branco com um formato de um triângulo. O seu pelo de tão macio ser mais parecia veludo; uns olhos escuros para com o contraste do seu focinho, num contraste se tornar, dando a impressão, que toda a sua cara, era um mar de ternura para parecer ao mesmo tempo de ter que se conformar com a vida de cão que levavam nada podendo fazer mas tudo aceitar
Não lhe dei malga de pão alguma porque lhe estava distanciada e absorvida em pensamentos vazios olhando para a parede situava na minha frente, aquela que segurava as prateleiras. O meu estado consistia em pensar em tudo para ao mesmo tempo não pensar em nada.
Quanto menos esperava e sem razão alguma, segundo o que na altura se me afigurou Pantufa dá em ganir e dar saltos que me assustaram dos uivos que mais parecia ceder a dores de agressivas ou de tanto pontapé estar a levar. Mais gania mais se encolhia, tentando encostar-se entre o móvel e a máquina de lavar. Parecia que alguém lhe estava batendo. Sem saber como, as portas das prateleiras abriram-se; pratos começaram a sair lá de dentro para se escavacarem-se todos no chão, dando a impressão que uma pessoa os tirava para os mandar para o chão.
A tudo isto, Pantufa assistia em silêncio continuando a fazer gemidos baixinhos, e olhando para mim como que me perguntando «que se passa.....que está acontecendo?... Só nós estamos aqui e como é possível estar a acontecer tudo isto?....».
Estávamos os dois amedrontados. Já pensava se não seria algum tremor de terra. Mas impossível porquanto nada mais mexia, logo....; mal puxo a cadeira para trás para abrir a porta e me por na alheta, levo um valente chapadão na cara que até fiquei azamboada. Misteriosamente a toalha da mesa e tudo que estava em cima da mesa é puxado violentamente por uma mão misteriosa.
Não vi ninguém nem sei explicar como as coisas acontecerem. O que sei é que mal abri a porta Pantufa deu em correr como um desalmado para se esconder não sei onde, porque imenso tempo depois é que me apareceu, manso como um cordelinho, rentinho ao chão, como vindo de pantufas mas com os olhos cheios de medo. Toda eu tremia como varas verdes. Fui logo para a casa de banho, porque sentia sensação de ter mudado de cor. Ao olhar para o espelho, vi bem vincada na minha cara, cinco dedos de uma qualquer mão.

9
Tinha levado o dia a contar moedas com o meu patrão para depois as limpar com um produto especial que foi comprado por ele em Inglaterra, quando de uma deslocação que fez a uma qualquer Feira Internacional de Antiguidades. Um homem meticuloso que analisava ao mínimo pormenor deficiências que para o leigo seria chinês. Sem querer, fui aprendendo, que nas pequenas coisas se escondem outras muitas grandes. Gostava de trabalhar com Miraflores. Dividia os seus conhecimentos comigo, mesmo que a maioria das vezes não percebesse nada do que me explicava. Um gosto que não se coadunava comigo. A única alegria que sentia era a maciez dos objectos com séculos de existência e de toda a história que os acompanhava. O meu mestre era perito em detalhes aprofundados.
Quando cheguei a casa, uma surpresa esperava-me. Beatriz esperava-me sentada no sofá. A seu lado uma mala de viagem e uma pequena bolsa. Como estava quando abri a porta como ficou quando entrei.
Fiquei sem fala apanhada pela surpresa de ter a minha filha novamente em casa e muito menos quando não a esperava. Deduzi logo que não deveria ser coisa boa. Fui directa a ela para a abraçar e beijá-la. Ao mesmo tempo levantou-se para retribuir o que lhe ia fazer. Mal se pôs em pé começou logo a chorar e a pedir-me perdão de tudo o que me tinha feito. Neste momento, senti que algo se opunha à junção dos nossos corpos. Desapertei-me e olhei para a causa. Beatriz vinha grávida. Só me faltava esta! Fiquei completamente azamboada.
Perguntei-lhe como aconteceu e quem era o pai da criança. Apenas me respondeu que não sabia para adiantar que faltava apenas «uma lua para nascer» se nada acontecesse em contrário. Ao mesmo tempo pedia-me que a ajudasse a ter o filho como estivesse sempre a seu lado na hora do parto. Não sabia se devia ria ou se chorar.
- Descansa, Beatriz que uma mãe nunca abandona uma filha e muito menos a filha da sua filha que minha neta é!
Estava mudada e faladora para mim, coisa que estranhei. Pediu-me que não entrasse em detalhes sobre a gravidez. A seu tempo tudo saberia. Disse-me, sorrindo,
- Não é uma neta mas sim um neto. Chamar-se-á Miguel!
Um sorriso que me comoveu. Há tantos anos que não via um sorriso da minha filha com tanta ternura dizendo que «não é uma neta mas sim um neto». Julgo que neste momento um vento qualquer vindo de Sueste apagou tudo que estava gravada na minha memória quando ao acontecido.
Corri como uma desalmada para o meu quarto. Ajoelhei-me de frente para a imagem de Nossa Senhora da Conceição, que tenho no meu quarto, agradecendo-lhe a graça que acabava de receber.
Quando voltei já Beatriz ia a caminho do seu quarto, tendo deixado a mala, acabando eu por levá-la.
*
Belo dia, quando Beatriz tinha saído para ir colocar uma carta no correio, fiquei sozinha em casa a arrumar e fazer as lides da casa como fazer a cama de minha filha. Ao olhar para cima da sua mesinha de cabeceira, reparei num pequeno livro, sem título, que me pareceu uma agenda. Peguei nele, mesmo sabendo que estava a mexer em alho de Beatriz, mas a curiosidade de saber qual o livro que estava a ler, algo foi mais forte do que eu. Abri-o ao acaso. Na folha estava escrito a esferográfica o seguinte:
“O Meu Diário”
Dia 25 de Junho de 19..
«Levantei-me pelas nove horas dirigindo-me logo para a casa de banho a fim de tomar banho; após o banho tomei o pequeno-almoço para de seguida me vestir de acordo com o que o Abreu me pediu: de saia curta e com um enorme decote, de maneira que os homens olhassem bem para mim.
Às dez e meia estava no bar do “Hotel da Rotunda” para acompanhar o meu cliente, o Abreu e, fazer de sua secretária na “Convenção sobre Economia” que se realizou na parte da tarde, no mesmo hotel.
Sentei-me numa das extremidade da mesa onde estavam os oradores e de frente para a assistências, que me comiam com os olhos, já que estava de perna trocada e mostrado-lhes o melhor que tenho, as pernas.
Eram seis quando a Convenção terminou para de seguida todos se despedirem do Abreu, meu “director” e cliente de primeira. Nunca vi um homem tão babado por receber tantos elogios de quem lhe dizia dissimuladamente «que rica secretária tens» ou «a tua secretária deve ser cá uma cavalona» para lhe acrescentarem «não acredito que ainda não a comesses». Senti-me vaidosa como a alguns mais atrevidos dei o meu “cartão de visita”.
Pelas vinte e uma hora jantamos no hotel na companhia de uma casal amigo de Abreu com o qual iríamos passar a noite. Uma noite de luxuria para acabarmos os quatro na cama a dormir sem sabermos como adormecemos.
Dia 26 de Junho de 19..
Acordei estonteada e cheia de fome pela noite que passamos. Depois dos respectivos banhos, o casal seguiu para Cascais e Abreu deixou-me em minha casa. Pagou-me bem, mas muito bem, pelo dia e pela noite – aliás como era seu timbre sempre que precisava dos meus serviços ou de mais alguma colega.
Guardei este dinheiro na minha mala de viagem, que tenho em cima do guarda-roupa do meu quarto. Logo que puder vou passar oito dias no melhor Hotel de Paris com a minha amiga».
Ia a mudar a folha quando ouvi os passos de Beatriz. Nada lhe disse mas tudo pensei, como lamentei a sua vida e, porque não, a minha dolorida sorte como lamentei a confirmação daquilo que sabia mas que nunca quis acreditar.
Onde está a dignidade de quem andou dentro de mim e de quem ensinei que a «honestidade é para a mulher uma honra?»
Pobre filha e desgraçada que sou! Que fiz de errado ou onde falhei para tudo isto me calhar a mim?
Eu, que tentei dar a melhor educação à minha filha, de lhe ensinar ao longo dos anos o que é o «espirito de família» mesmo que o pai fosse um “filho da mãe” tudo acabou no «mundo do deboche». De nada valeu, aquilo, que de melhor desejei, para quem, sempre pensei vir a «ser uma grande mulher no futuro».
Mundo de ilusões é este em quem vivo!
*
Fiz-lhe companhia e ouvi tudo o que tinha para me dizer. Estava uma mulher diferente. Aberta para a mãe e desabafando o que lhe ia na alma. Ao apoiar a sua cabeça no meu ombro, arrepiei-me de uma forma impressionante, dizendo para comigo:
- Querem lá ver que a minha filha ao ter um filho, a fez mudar?
Deixei-a no quarto a descansar e arrumando as suas coisinhas para que não sentisse violada a sua intimidade e o seu mundo. Vim a saber, durante a hora de jantar, que na mala vinha o enxoval do meu neto.
Depois da refeição e da limpeza da cozinha, pediu-me que a acompanhasse ao quarto para ver as roupinhas da bebé e aconselhando-a na distribuição com fins de arrumação. Fi-lo com todo o prazer. A emoção apertava o meu coração. Estava a mexer nas roupinhas do meu Miguel. Não podia ser verdade.
No dia seguinte, fui trabalhar como não podia deixar de ser. Pedi ao meu patrão que me dispensasse um pouquinho de pouco tempo, derivado precisar de falar com ele de um assunto muito sério. Pedi-lhe que Felismina estivesse presente.
- Não é tarde nem cedo. É agora mesmo. Vai chamá-la que cá vos espero.
Sentamo-mos de frente para Miraflores contando-lhes o sucedido. Escutaram-me com toda a atenção e minuciosamente deram-me bons conselhos. Antes de nos retirarmos, o mais idoso, advertiu-me:
- Aconteça o que acontecer, podes contar sempre comigo e aqui com a Felismina. Mas tem cuidado com a loba que deve ter vindo com alguma fisgada.
Na porta, Felismina apenas me disse:
- Logo vamos as duas juntas para falarmos melhor e para te dizer algumas coisas.
Alertou-me para as medidas que deveria tomar, sem esquecer que estava em cima da mesa um ser humano. Por mais ordinária e má, que fosse a mãe, a criança não tinha culpa nenhuma de ter vindo ao mundo e de ser filho de quem é, mesmo não sabendo quem fosse o pai.
- Lembra-te, do que já te fez como da maneira, que te tratou. Se agora está mansinha para ti é porque precisa da tua ajuda para desenvencilhar o que arranjou. Não vás nas cantigas dela sabe impor-te, caso contrário podes pagar bem caro.
- Estás-me a rogar alguma praga ou quê minha cachopa d’um raio?
- Claro que não estou, mas já passamos demais na vida para nos deixarmos levar por uma desmiolada. Não te esqueças que a tua filha sabe mais num dedo do que nos duas no corpo todo.
«Desenvencilhar o que arranjou?» Não me saiu da cabeça estas palavras. Continham um pouco de verdade. Eis mais um tormento que se me apresentava quando já julgava tudo estar sanado. A próxima Lua Cheia estava a aproximar-se. Que fazer? Aguardar o andar da carruagem.
Durante quase trinta dias, a nossa relação foi mesmo de mãe e filha. Falávamos um pouco de tudo como nunca nada tivesse acontecido entre nós duas como o espirito de família alguma vez tivesse sido abalado. Palavras certas nos momentos adequados. A minha felicidade não cabia na terra
Acabamos por nos conhecer uma à outra politicamente. Discutíamos, no bom sentido, a situação política que o país atravessava. Sem nos aperceber verificamos que antagonizavam as nossas ideias.
Sempre fui defensora dos resultados que saíram da Revolução Russa o dos seus fins para o mundo, sendo um dos seus pilares fundamentais a igualdade para os povos.
- Tanto foram pilares fundamentais que atrasou dezenas de anos a realização da sociedade livre no mundo. Disse-me Beatriz, para acrescentar:
- Que queria a mãe esperar de um povo analfabeto e de místicos? Os Czares transformaram a vida de milhões e aterrorizaram outros tantos. As promessas dos bolcheviques que prometeram paz e distribuição das terras para as camponeses, mais não foi que um ódio profundo para tirar do poder a autocracia absoluta então instalada há séculos e estabelecer eles próprios. No entanto não deixa de ser um paradoxo que a Rússia no século XIX, pobre e brutalizada, terminasse por gerar grandes talentos da literatura mundiais tais como Gogol, Dostoevski, Tchecov, Tolstoi e outros.
- Mas onde aprendeste estas coisas todas para fazer de ti tão sabedora, de coisas que eu nunca ouvi e muito menos li? Que bela oratória tem tu. Como irias longe se tivesses enredado por bons caminhos!
- Lá está você com essas manias. Já lhe disse que por ser o que sou, lido com pessoas importantes e cultas.
- Digo-lhe mais: durante o tempo louco dos stalinistas, foi consagrado como Socialistas, a premissa de todos os meios de produção que se encontravam nas mãos do Estado e, como as classes haviam desaparecido, as massas passaram a controlar a produção. Apenas se alteraram as formas para tudo ir dar ao mesmo. Mãe, a sociedade é uma hipocrisia. Derruba-se a classe instalada para se colocar outra. Todos nós contribuímos. Criticamos os que saíram elogiando os que entram, para com o tempo chegarmos à conclusão que apenas mudaram as flores para os vasos continuarem sendo os mesmos. Que havemos de fazer?
Na verdade, reconheci que tinha um pouco de razão, porquanto a igualdade apregoada aos quatro cantos do mundo, o tempo aos poucos demonstrava que mais não era do que lérias, beneficiando sim, quem das cúpulas partidárias fazia parte. Para estes não existiam paridade mas sim regalias enquanto o povo sofria as consequências.
- Tem sido os resultados das revoluções e fórmulas sociais que nos fazem andar revoltadas com os esquemas abruptos que inverteram tudo aquilo em que acreditamos, continuando a acreditar para a história nos ensinar que o equilíbrio é difícil de se tornar realidade.
Assim tem sido para continuar a ser desde o princípio do mundo. O contrário daquilo em que sempre acreditou dá-nos a todos como benefício a liberdade de expressão, por que quanto ao resto tudo mudou para continuar na mesma.
Que aceitamos as coisas como são e que não vivamos de ilusões. Ilusões já nos dão em quantidade os políticos. Não bastas as injustiças da Natureza que não as podemos evitar, agora as da sociedade e das suas convenções, podemos evitá-las, só que estamos de tal forma envolvidas por elas que quanto mais nos desviámos mas elas nos envolvem, com normais sociais que mais não são do que perfeitos embustes. Tudo graças aos homens.
Mudamos é de conversas, porque eu nasci, como você, do povo e na classe operária. De bom não herdei, como pode imaginar, nem a condição, nem as circunstâncias. Apenas me aconteceu ter uma inteligência naturalmente lúcida e uma vontade um tanto ou quanto forte. Mãe, é que não deixo de utilizar e abusar, porque se fosse nas cantigas dos princípios dos revolucionários, bem estava lixada.
Gostei de ouvir o paleio de Beatriz. Perguntei a mim mesma como no seu mundo estas coisas eram discutidas. Talvez por frequentar ambientes que só sei existir por ter ouvido?
- Filha, filha, como podia ser uma grande mulher!
Ia trabalhar e Beatriz fazia o que podia em casa: arrumava o que tivesse fora do sítio, lavava a louça e as horas vagas, ocupava-as passeando pelos arredores até fazer tempo que eu chegasse a casa.
Foi comigo várias vezes à agência bancária e juntas abrimos uma conta, em nome das duas, para futuramente a podermos movimentar. Solicitei cartões em nome dela para que sempre que precisasse de dinheiro o pudesse levantar ou fazer qualquer movimento. Nada mas absolutamente nada lhe escondi.
Ficou combinado que logo registado Miguel, outra seria aberta em seu nome, oferecendo-lhe parte das minhas poupanças. Afinal, é o meu neto!
Perdemos horas infinitas contando histórias dos antepassados para que Beatriz pudesse mais tarde contar ao filho. Só não falávamos de tudo que dissesse respeito ao presente de minha filha. Acompanhou-me várias vezes, mais a Felismina ao “Migadalho”.
Sentia nela interesse por tudo que ouvia como via, para além de se preocupar pelos imprevistos que existe na agricultura. Incentivou-me a comprar «mais um pouco de terra» porque no fundo seria «um investimento e a terra não se gasta».
- A mãe até tem dinheiro suficiente na conta que dá para o que lhe proponho, não tem mãe?
- Claro Beatriz que chega e ainda sobra mais algum. Se for mais ou menos o preço do “Migadalho”!
Abri a minha mala e mostrei-lhe os extractos do movimento bancário como das poupanças como os cartões de outras pequenas contas que mantinha em duas dependências bancárias da cidade.
- Ena mãe, isto é quase uma pequena fortuna.
- Nunca chega filha. Quanto mais houver melhor para o Miguel!
Dias houve em que chegava a casa e tinha tudo arrumado, depois de Beatriz ter revolvido tudo. Quando lhe perguntei porque fazia tal coisa, respondeu-me:
- Para te ajudar e saber os lugares das coisas. Afinal vou viver contigo e sendo tu minha mãe, não faz sentido andar-te a perguntar onde está isto e aquilo.
- Deus te ouça, querida filha. Já não era sem tempo o que acabei de ouvir.
- Estarei sempre a teu lado.
Poucos dias decorreram após dez luas cheias. O Céu estava cheio de estrelas, algumas sorrindo; outras vasculhando o que debaixo delas acontecia. Devia passar pouco mais da meia-noite, quando vi até à marquise para arejar um pouco. Não me sentia bem. Dentro de mim algo quase me sufocava.
O tempo estava esquisito, atrofiando-me por dentro como algo estivesse para acontecer. Sempre tive meio destes sinais. Ainda criança quando estava alguma coisa para acontecer começava por sentir algo de estranho em mim. O tempo veio a confirmar que sempre recebido os sinais qualquer coisas deveria acontecer.
- Mãe!.....Mãe!.....vêm cá por favor......MÃE!...... Por favor....ajude-me......
Era Beatriz a gritar que até parecia que o mundo estava a derrocar. Corri como uma louca ter com ela. Os sinais do parto estavam a começar. Mandei-a vestir-se e comecei a trazer para o meu carro todo o preparo, arrumado que já estava, desde a alguns dias, de maneira que ao mínimo aviso partíssemos para o Hospital.
Às cinco horas do quinto dia do oitavo mês lunar, nasceu Miguel, meu primeiro neto - fruto do meu fruto. Quando o peguei ao meu colo, senti o meu corpo arrepiar-se. Um arrepio estranho que me banhou de lágrimas, de tão quentes serem, senti o seu calor a caindo sobre meus pés. Chorei não de tristeza mas de alegria.
Naquele momento voltei-me, com o meu neto, para o crucifixo que estava pendurado na parede, por cima da cama. Pedi interiormente, a quem na cruz estava espetado, que nos abençoasse nós três dos infortúnios da vida, porque para sofrer já bastava o que eu tinha sofrido. Supliquei-lhe que protegesse durante toda a vida quem segurava nos meus braços como lhe guiasse nos caminhos que encontraria pela frente, de maneira que nada lhe acontecesse «Tu, que aí estás e que representas toda a fé que tenho, que ouças as minhas preces». Benzi-me e olhei para quem na cama estava deitada esperando que lhe desse o que dela era.
Sempre sonhei que tudo acontecesse num ambiente familiar: que estivesse com, meu marido e genro todos presentes para juntos saborearmos o prazer de vermos pela primeira vez o nosso neto e o filho de quem entrou na nossa família. Infelizmente não tive a possibilidade de ver o sonho de muitos sonhos. Não deixei de ser quem sou por causa de um infortúnio dado por quem me deu a maior alegria da vida: o meu neto.
Três dias depois regressámos de onde tínhamos partido. Durante oito dias dei todo o apoio a Beatriz para que nada acontecesse ao bebé como aprendesse aquilo que não sabia.
Tratar de um recém-nascido não é como tratar de um adulto, mesmo que esteja doente. Todos os cuidados são poucos como as coisas mudam constantemente.
O meu patrão fez questão de me dispensar os dias que necessitasse. Fiquei uma semana porque não queria abusar de quem tanto me ajudava. Sensibilizou-me a sua atitude de aparecer de repente em minha casa, a fim de ver o meu neto, como lhe trazer uma pequena lembrança, que em abono da verdade deveria ser cara: um fio em ouro com um acessório, que dava para ser usado quando Miguel fosse um homem.
Deve ter-lhe custado um montão de dinheiro, mesmo tendo muito, julgo eu, porque nunca o contei mas pelo que tinha e pela vida que levava como os seus, não contar as notas uma por uma para saber que tem muito. Já me bastava contar-lhe as moedas antigas. Um consideração que teve para comigo, mas especialmente pelo inocente que foi feito no mundo da podridão.
Não esquecerei esta amabilidade de quem nunca julguei a ter. Mesmo não tendo razão alguma contra Miraflores antes pelo contrário, gostei do feito e mais quando Beatriz lhe agradeceu do fundo do coração a prenda que recebeu das mãos do patrão da mãe. Deu-lhe um forte abraço e um beijo fraternal na testa. Miraflores ficou comovido pelo inesperado, pedindo licença para se retirar por que tinha outros compromissos assumidos para pouco tempo depois. Uma «reunião importante» disse-nos em jeito de encontrar no dito uma maneira de sair de onde já não queria estar mais.
Acompanhei-o à porta para uma vez mais lhe agradecer. Estávamos os dois enternecidos demais.
- Não te esqueças do que te disse, quando estivemos na minha casa mais a Felismina? Para acrescentar – mas não deixes de tratar nem do Miguel.
- A propósito, posso ser o padrinho do garoto?
Não sabia o que responder por ter sido apanhada de chofre e não estar à espera de um pedido destes, vindo de quem tão importante era como estar a oferecer para ser o tutor de uma criança, filho de quem era, mesmo sendo a minha filha.
- Senhor Miraflores por mim tudo bem, mas deixe-me falar com a Beatriz porque não sei o que ela pensa da situação, pois, digo-lhe francamente, foi questão que nunca me apresentou.
- Está bem! Fala com ela e depois diz-me qualquer coisa. Adeus, e retirou-se
Engraçado! Foi neste momento que me apercebi de nunca ter falado com Beatriz sobre este sacramento.
Antes de subir, encostei-me à ombreira da porta meditando no que acabava de ouvir. Eu que aprendi nos ensinamentos da igreja que o baptismo foi ordenado por Cristo e só agora descobri que nós as duas passamos sempre ao lado da questão. Falo em «nós» mas apenas posso falar de mim porque não sei o pensamento da mãe do meu neto.
Pensando bem, claro que quero que o baptismo de Miguel ocorra com um cerimónia formal com a presença de convidados e respectivos padrinhos. Os padrinhos, assim me ensinaram, são pessoas, que na eventualidade da morte dos pais, neste caso, a mãe, criam uma criança como um católico.
Mas que coisa esta de nunca ter falado e muito menos me lembrado do raio do baptizado? Lembro-me tão bem deste sacramento. Deveria ter para aí uns cinco anitos quando meu pai me acompanhou à igreja de S. Vicente a fim de cumprir o juramento. Lembro-me como fosse hoje quando recebi a água fria na minha testa e de ter resmungado que o padre se fartou de rir.
Mais tarde, a catequista, que era uma chata da breca, olhava-nos nos olhos, com cara de tudo saber e de nos impingir argumentos de uma coisa que nós nunca tínhamos lido em parte alguma mas que acreditávamos nela piamente.
Mesmo sendo chata, sabia como poucos, histórias com séculos, que nos contava de uma forma tão subtil que fazia com que nos interessássemos pelo passado contribuindo ao mesmo tempo que nos envolvêssemos.
Lembro de um pequeno folheto que nos deu, citando “Werner Keller” que por palavras de mestre nos explicava a sabedoria de Salomão e da Rainha de Sabá. Nunca me esquecerei das historietas que o mesmo mencionava. A sua forma de escrever era feita de uma magia de palavras levando-nos a querer sempre mais.
«Salomão tinha quatro mil mangedouras de cavalos para carros (de guerra) e doze mil cavalos de montar (1 Reis, 4,26).
Fortificou todas as aldeias destinadas a entrepostos e que não tinham muros, as cidades destinadas a carros, as cidades destinadas a gente de cavalo (1. Reis, 9,19).
Equipou também o rei Salomão uma frota em Asiongaber, que é perto de Ailat, na praia do mar Vermelho; na terra da Idumeia....eles tendo chegado a Ofir.... (1.Reis, 9,26,28).
Todos os vasos por onde bebia o rei Salomão eram de ouro; toda a baixela da casa do Bosque do Líbano era de ouro puríssimo; não havia prata, nem se fazia apreço algum dela no tempo de Salomão. Salomão tinha no mar barcos de Tarsis, que acompanhavam a frota de Hirão. Uma vez, cada três anos, os barcos de Tarsis, que traziam ouro, prata, marfim, macacos e pavões (1 Reis, 10, 21, 22).
A casa que Salomão edificou em honra do Senhor...estava toda coberta de ouro puro (1 Reis, 6,2,22).
Do Egipto e de Coa eram trazidos cavalos para Salomão...também da mesma forma traziam cavalos para todos os reis dos hititas e da Síria (1 Reis, 10, 28, 29).
O peso de ouro, que era levado a Salomão todos os anos, era de seiscentos e sessenta e seis talentos (1 Reis 10,14). Não parece isto tudo uma fantasia?
Um homem, mesmo que se trate de um rei de quem tantas coisas se contam, é difícil que não se incline à vaidade. É certo que há na Bíblia narrativas que alguns eruditos consideram como lendas. Tais são por exemplo, a história do feiticeiro Balaão e da burra que fala (Núm., 22) ou a história de Sansão a quem a larga cabeleira proporcionava as suas forças (Juí., 13-16).
Salomão era indubitavelmente um monarca progressivo. Sabia genialmente chamar a si os peritos e os técnicos estrangeiros para os fixar às suas empresas. É este o segredo dos extraordinários e rápido desenvolvimento, de outra forma inexplicável, que converteu o simples país agrícola do seu pai David num estado económico de primeira grandeza.
A rainha de Sabá, tendo também ouvido falar da fama de Salomão, foi a Jerusalém para o experimentar com enigmas, levando consigo uma grande caravana de camelos, que iam carregados de aromas, de grande quantidade de ouro e de pedras preciosas ( 2 Part., 9,1).
O grego Dionísio escreve pelo ano noventa da nossa era: - Na Arábia Feliz respiras sempre os doces perfumes de magníficos aromas, seja do incenso ou da maravilhosa mirra. Os seus habitantes possuem grandes rebanhos de ovelhas nos prados e as aves voam para alie de ilhas longínquas e trazem as folhas da canela.
A Arábia do Sul era já, no Velho Mundo, o primeiro país na exportação de especiarias e continua a sê-lo. Não obstante, parece estar envolvida num espesso e misterioso véu. Ninguém tinha visto com os seus próprios olhos. A “Arábia Feliz” continua a ser um livro fechado a sete chaves».
Sete chaves que me levaram a ler e reler, como a coscuvilhar todo o enredo existente entre estas duas pessoas com um papel predominante no sagrado livro. Sem querer e sem saber como, levou-me a folhear outros livros, fazendo com que a minha fé aumentasse de dia para dia, ao ponto de Deus fazer parte de mim e sem ele não poder passar. As pessoas mais ignorantes, perguntavam-me o porquê de tanta fé e a razão de que acreditava em algo que não via. Respondia-lhes que: acreditar em algo e ter fé não é preciso ver, basta crer. Aos mais obstinados, aplicava-lhe a velha teoria. «Acredita no Vento?». A resposta era sempre a mesma «Claro que acredito! Isso nem se pergunta.». «Então se acredita no Vento, coisa que não vê, porque não acreditar também em Deus?»
*
A catequista, como mais velha que era e, dos anos que já demonstrava levar nesta profissão de fé, logo não poderia ser mentira: «O baptismo é o ponto em que a pessoa recebe o perdão dos seus próprios pecados – como se uma criança acabada de nascer já tenha pecados, pensávamos nós. No capítulo dezoito do livro de Ezequiel, Deus explicou ao profeta que cada pessoa é tida como responsável por seus próprios pecados e as pessoas não podem ser responsabilizadas pelos pecados de seus ascendentes”. Mais tarde, quando comecei a ler o livro sagrado, entendi que o que me ensinaram não batia certo com algumas coisas que estavam escritas.
- Mas que coisa agora havia de me lembrar. Deixa-me é ir para cima que a minha filha deve estar precisando de mim.
Beatriz estava amamentando Miguel. Gostei de ver esta cena. Senti-me comovida. Momentos raros que poucas vezes se repetem. Pena de não nos podermos ver a nós próprias a beleza do nosso próprio quadro, em que a árvore vê o seu próprio fruto. Senti-me orgulhosa de estar a ver o que via.
Descriminei por palavras minhas o que antes proposto foi por quem se despediu nós para ficar a saber de Beatriz que estava de acordo, desejando que não passasse muito tempo para que em caso de fatalidade nada pudesse acontecer ao filho.
- Ainda bem que o teu patrão se ofereceu para padrinho de Miguel.
A semana passou depressa. Apresentei-me ao serviço para no mesmo dia, depois de sairmos do trabalho, Felismina acompanhar-me ao berço que aconchegava quem dormia. Ficou pasmada com a cara bonacheirona do Miguel enquanto olhava para a mãe.
- Beatriz desejo-te as maiores felicidades para ti e para o Miguel. Que sejam muito felizes. Tens o bebé mais lindo do mundo.
- Posso-te fazer uma pergunta que ao mesmo tempo é um pedido?
- Claro! Claro que pode.
- Posso ser a madrinha do Miguel? É que o senhor Miraflores fez-me uma conversa e propôs-me que a madrinha fosse eu. Aceita?
Beatriz olhou para Felismina. Durante alguns segundos meditou na resposta olhando para a mãe. Em vez de dar a resposta puxou docemente quem tinha ao colo para colocar a sua boca na mama. Estava na hora da amamentação.
Mariana, sentia que o chão que pisava estava a tombar-se por causa da afirmação que esperavam.
- Claro que pode Felismina. Fico muito contente por isso e mais, quando sei a amizade e consideração que tem para quem está a seu lado.
Quem não gostou destas palavras, mas nada disse, foi a mãe. Muito para si própria, pensou» esta filha, esta filha.....»
Quem estava em pé, abraçaram-se mutuamente numa felicidade que só é compreendida por quem sabe o que é o sofrimento.
- Obrigado Beatriz por teres aceitado o que te pedi. Agora não leves a mal mas tenho que me ir embora, pois tenho umas voltas a dar.
Beatriz acompanhou a visita, que junto do portão lhe sussurrou:
- A tua filha não vai mudar. Tem cuidado Mariana, não confies muito nela!
Ao fim de duas semanas, deslocamo-nos à Conservatória, a fim de efectuarmos o registo que quem ainda não tinha nome oficial. Um momento que me marcou e entristeceu profundamente que por pouco quase chorava. Não pelo que estava a fazer mas pela causa da circunstância de junto de nós não estar presente quem de direito, o pai de meu neto. Mais uma partida que a vida acabava de me oferecer, dando a impressão que poucas ou nenhumas me tivesse dado.
*
Miguel acaba de fazer o seu primeiro mês de vida. Na véspera fizemos as duas, uma pequena festa como que os poucos dias passados já fossem anos. Gostei da iniciativa de Beatriz. Antes comprei um pequeno bolo numa pastelaria da cidade para que depois do jantar o momento fosse festivo, como foi.
Deitamo-nos cedo já que na manhã seguinte tinha que ir tratar da renovação do meu bilhete de identidade. Nada como sair cedo de casa a fim de não perder muito tempo e, antes de ir para o local de trabalho, pudesse passar por casa para oferecer à minha filha uma pequena caixa com alguns bolitos, coisa que sabia ela gostar.
Depois de tratada a burocracia e pago os devidos emolumentos, cujos trocos sobrados davam para compra os acepipes. Não sei porquê, nunca gostei de andar com muito dinheiro. Prefiro ter em casa o dinheiro, dentro de uma caixinha de madeira, que já não me lembro desde quando a tenho - dá-me prazer ver as notas juntas com as moedas, todas arrumadinhas. A caixa de madeira são daquelas que trazem charutos. Nem muito altas nem muito baixas, mas delgadinhas.
Foi-me oferecida por um senhor, que não me recordo quem, quando de uma visita a casa de meus patrões. Ia deitá-la fora por vazia estar. Pedi-lhe que não o fizesse mas que me fosse dada, pedido que se admirou, levando-lhe a perguntar-me por qual a razão que queria aquela «tralha». Lá lhe expliquei o meu interesse, que já não sei qual foi, respondendo-me de seguida:
- Sendo assim então que seja feita a sua vontade. Gosto de ver todas as pessoas felizes, especialmente adultas que gostam de brincar e de ter coisas como as crianças. Como se riu Miraflores e o convidado.
Com a pressa, ao descer as escadas do velho edifício do tribunal, não sei como, dei um trambolhão que pensei ir desta para melhor. Não fosse um homem, que na altura passava, tenho a impressão que ficava para ali estatelada até me conseguir por em pé, tal foi a cambalhota.
- Oh minha senhora como é que você caiu que até pensei que se tinha partido toda?
- Sei lá meu senhor! Olhe é a porra das pressas que acaba sempre nisto.
- Tenha calma, que o mundo não acaba hoje.
A coxear e a limpar a saia que ficou toda suja, fui correndo para a pastelaria, a fim de me ajeitar: dois pasteis de nata, duas bolas de berlim, dois bolos de arroz e três broas podres. Estas broas são de comer e chorar por mais.
Enquanto a molengona da empregada me ajeitava a doçaria, olhei para o meu estado. O meu pulso estava todo arranhado e a perna direita sangrava, mais parecendo que tinha sido cortada com uma lâmina. Não foi este objecto mas a aresta do raio do degrau, que de tão afiado estar, por pouco não me cortava toda.
- Hum....só me faltava esta. Mais depressa mais devagar. Puta de sorte a minha, disse para comigo em voz alta.
- Que está dizendo minha senhora? Está me chamando “puta”.
Fiquei sem pinga de sangue quando a empregada se voltou para mim de olhos chispados vomitando ódio e ainda por cima com o instrumento de apanhar os bolos em direcção a mim e bem perto dos meus olhos.
- Por amor de Deus menina, disse lá tal coisa. Nem pense nisso. Desculpe o que ouviu e não pense outras coisas, o que disse foi «Puta de sorte a minha». Não é nada consigo. Não vê no estado em que estou? Recuei um pouco e mostrei-lhe o sangue que me pingava quase pelo corpo todo para ao mesmo tempo já estar a sujar o chão.
- Ah...então sou eu que lhe peço desculpa porque percebi o contrário. Desculpe minha senhora, mas desculpe-me mesmo. Sabe é que como estava curvada a tirar os bolos da montra, percebi o que lhe perguntei. Desculpe!
- Pronto, não faz mal. Afinal a culpada fui eu que falei mal e esqueci-me que estava num local público.
- Até vou ser mais rápida a fim de que vá ao médico se tratar.
- Qual médico qual carapuça! Vou é já para casa dar estes bolinhos à minha filha que me deu o neto mais lindo do mundo, disse-lhe eu.
- Então muitos parabéns. Tome lá os bolos que são oferta da casa. Saí a correr, agradecendo a gentileza.
Quando cheguei a casa, quase voei de maneira a não perder tempo, mais preocupada em não chegar atrasada ao serviço, porque nunca gostei de chegar depois dos horários estipulados. Sempre fui assim. Quando andava de “carreira” se a chegada estava prevista para as oito, às sete e meia já lá estava. Antes fosse eu a esperar do que os outros. Um hábito que ainda hoje mantenho e que não quero perder.
Entrei em casa e fui directa ao quarto de Beatriz. Não estava, apenas Miguel. Estava dormindo como um anjo. Um pequeno cobertor abafava-o, vendo-se de fora a sua carinha rechonchuda. Chamou-me a atenção a falta das coisas pessoas de minha filha. Não estavam em cima do móvel. Saí sorrateiramente, de maneira que não acordasse quem dormia.
Segui para casa de banho a fim de ver se lá estava Beatriz para lhe entregar a lembrança e me vir embora. Não estava; percorri as outras divisões; não a encontrei. Algo não estava batendo certo: desci e repeti a mesma coisa. «Mau...mau!.. Há aqui qualquer coisa que não está bem!»
Chamar a Beatriz nem pensar que acordava o bebé.....Mas que raio de coisa....onde se terá metido a minha filha». Deu-me um baque e arranquei como uma barata tonta para o quarto dela, direita ao guarda-vestidos.
Estava vazio. Desci e fui à dispensa parta ver se estavam lá a mala dela. Nem vê-las. Pura e simplesmente Beatriz tinha desaparecido ou abandonado a casa como ainda pior, o filho. «Não pode ser verdade o que estou a pensar? Não me querem dizer que a Beatriz foi-se embora abandonando o filho e deixando-o ao meu cuidado. Isto não é possível nem posso acreditar que isto está a acontecer comigo?»
Mas aconteceu! E de que maneira....com tal feição que até hoje, que já lá vão algumas dezenas de anos, ainda estou por saber para onde foi, ou está, a mãe do meu neto como do meu dinheiro.
Passou-me um relance pela cabeça e fui à “caixinha de madeira” ver se estava lá o dinheiro. Nem a amostra de uma moeda. Segui de imediato para o banco, que com a atrapalhação, nunca mais me lembrei do Miguel.
Pedi a um funcionário que me levasse ao gerente que queria falar com ele urgentemente. Contei-lhe o sucedido para me dar numa fracção de segundos a informação «todas as suas contas estão a zero». Já calculava isto. E agora que fazer e como descalçar a bota do sucedido?
As minhas poupanças todas tinham desaparecido, ou melhor: foram levantadas pela minha filha. «Como foi possível tudo isto acontecer em tão curto espaço de tempo e sem me aperceber de algo estranho». O Armando estava mais aflito do que eu. Não pôde impedir nada, nem desconfiou de anomalia nenhuma, visto que tudo foi feito ao balcão, enquanto ele, gerente estava no seu gabinete. O funcionário apenas cumpriu o que a cliente determinou.
Voltei para casa não fosse acordar o meu neto. Nem sei como estava, continuando ao mesmo tempo se não estava a ter um sonho. «A minha filha sair de casa sem me dizer, roubar-me o dinheiro todo e ainda por cima não querer saber do filho? Isto não cabe na cabeça de ninguém.»
A vida umas vezes é justa e outras o contrário. Nunca me importei com o que as pessoas dizem, a vida dá-nos sempre alternativas. Podemos passar fome ou podemos tornar-nos umas vadias, é uma decisão muito nossa como podemos nos tornar no mais reles que possa haver. Eu fiz a minha escolha; a de tratar de meu neto, mas não estava preparada para a partida que Beatriz me fez. O meu âmago deu de si.
A muito custo me refiz daquilo que mais uma vez a vida se dignou me brindar. Um brinde que alteraria para todo o sempre o justo do injusto. Não sou nada, nunca serei nada, mas tive todos os sonhos do mundo.
Com o nascimento de meu neto, neste momento julguei que a minha vida se tinha toda escaqueirada. Beatriz fez com não acreditasse mais nela, mas hei-de morrer com ela no meu pensamento porque a minha fé inquebrantável naquilo que saiu de dentro de mim não se perderá.
Perdoar-lhe-ei o abandono do seu próprio filho mas não esquecerei. Pena não poder beber um pouco da água do rio Lete para me separar do mundo dos vivos e me juntar aos mortos. Tudo será como tem de ser.
Tenho que aceitar que daqui para a frente devo percorrer o meu próprio caminho até ao fim. Cada vez me convenço mais de que o destino possui todo o poder onde o esforço da vontade não passa de uma desculpa.
Telefonei para o senhor Miraflores contando-lhe o sucedido. Poucos minutos depois tinha-o em minha casa, mais aflito do que eu, trazendo como companhia a Felismina. Foi a minha bóia de salvação. Não sabia o que fazia e muito menos o que dizia.
Vendo-me tão aflita e compreendendo o difícil que era a minha situação, desde logo ordenou à minha amiga de sempre que ali ficasse o tempo que fosse preciso para que nada me faltasse como nada acontecesse ao afilhado.
Assim foi e assim pude contar com a ajuda tão estimável da Felismina. Dois meses esteve a meu lado como dia sim de não Miraflores nos visitava a fim de saber como iam as coisas.
Ao fechar-se uma porta outra se abre. Os primeiros anos não foram pêra doce. Chorei muito e muitas pragas roguei a não sei quem pela minha desventurada vida, que sem fazer mal a quem quer que fosse, os azares não me deixavam de bater à porta. As coisas só começaram a ganhar caminho quando Miguel atingiu os dez anos. Antes, de tudo um pouco passei até o “pão que o Diabo amassou” tive que comer.
Tudo que tinha, excepto a vivenda e o “Migadalho” me foi tirado, para não dizer roubado, pela minha filha; tive que criar uma criança, de recomeçar tudo do zero; de tratar e ter que faltar ao serviço, quando de alguma doença que o meu neto tivesse; a vida que pensava estar regularizada desfez-se em pouco tempo: enfim tudo se desmoronou para começar ter de iniciar um percurso com alguém muito querido a meu lado. Miguel foi o meu alento e a minha razão de viver. Hoje não me arrependo nada pelo que passei como pelo que fiz por causa do Miguel. Dediquei-me a ele de corpo e alma.
10
Uma criança singela e inocente mas criada com o amor de avó que fez de mãe. Nada quis que lhe faltasse para não ser uma criança traumatizada. Deixei-me de certos prazeres para repartir com a criança que andou no ventre da mãe, que minha filha era e penso ser, pois coisa alguma sei da sua existência como da vida que leva. Suponho que andará na malfadada sina que lhe calhou por estrela desconhecida das luas ou por se ter tresmalhado como um planeta que poisou em sítio estranho.
Até aos sete anos apoquentação praticamente me deu, salvo aquelas doenças que são normais nos mais frágeis como são as crianças. Algumas me incomodarem amedrontando o compasso de espera que havia entre a malvada e a sua cura. Remédios daqui, antibióticos dacolá, foram-se indo como vieram.
Quando entrou para a escola, era um miúdo curioso como o foi sua mãe. Passaram os anos sem me dar tormento algum ou preocupação de maior, tirada aquela se algum professor me chamava para desabafar que o meu protegido teimava em não ser grande amigo dos livros.
Continha de aflição sim, quando menos esperava se saia com as duvidas que lhe apresentavam no local de ensino ou algum colega de aula lhe perguntava quem seu pai era e que fazia. Fartos de verem todos menos um, ao garoto atormentavam do que não tinha e muito menos sabia onde estar, quanto mais saber quem foi.
Como quem não quer a coisa, deixava acabar o jantar, mas antes ter falado comigo, como o relatório me estivesse a apresentar, para numa de atirador se sair:
- Avó, não tenho pai? E minha mãe que é feito dela?
Alturas que me apetecia estar debaixo dos torrões, que bem pesados fossem, de maneira que esmagassem a minha alma, de tão podre já estar meu corpo. Sentia dentro de mim engulhos que me proibiam de respirar. Não por lhe dizer a verdade mas como a dizer. Angústias que faziam com que os dias nunca acabassem com o receio de Miguel à noite depois do jantar me engalfinhar de dúvidas. Não queria que sofresse desde pequeno sobre aquilo que eu própria também não sabia.
Tarde não foi, que impossível se me tornou evitar de lhe dizer que o vinha remoendo. «Vale mais agora que um dia me jogue à cara». De palavras mansinhas como corria o mês de S.João, que de tanto calor fazer me fazia calores, o momento não podia ser mais retardado.
Levei-o para a marquise, convidando olhar para o brilho da lua e das estrelas cintilantes que teimavam em querer despegar-se do Céu para nos cair em cima. Vindo de não sei donde, os grilos cantavam, parecendo que queriam embalar a voz de quem estava ansioso por desvendar o segredo, mesmo que ainda não lhe tivesse dado sinais de dizer o que menos esperava.
Sempre que mandava a dica olhava-o sorrateiramente para ver a sua cara. Uma cara, não amarga mas de tristeza. Sempre que via o seus olhos sorrirem esperando pela resposta via as suas faces cheias de amargura por não ter o que os outros tinham. Enchi-me de coragem e disse-lhe tudo o que deveria dizer como o que sabia, quer do avô quer da mãe como ainda dos meus antepassados. A nostalgia despertou-me a aproveitei o que ia dentro de mim.
Acontecesse o que acontecesse, entendi aproveitar o momento ou então as coisas tornar-se-iam difíceis quanto ao futuro. Já tinha idade para saber que não são as cegonhas que trazem os bebés.
Ouviu tudo o que lhe dizia em silêncio, nunca me fez pergunta nenhuma. Eu contava por palavras que pudesse compreender sem entrar em grandes metáforas as partidas da vida. Para sofrer bastava-me a mim. Este inocente não tinha culpa alguma do que aconteceu como de quem tinha nascido.
Quando o campanário bateu as últimas badaladas do dia que terminava, disse-lhe que «não são horas de estarmos aqui a ouvir histórias do arco-da-velha. Vamo-nos deitar que o resto fica para amanhã». Estava desperto como um rato quando sente o inimigo próximo. Pediu-me com voz de alma perdida que não o fizesse mas que continuasse com o que tinha começado, depois do jantar. Fiz-lhe a vontade e mandei tudo cá para fora, não omitindo nada de nada.
Deviam ser para aí umas duas horas do novo dia quando nos fomos deitar. Não levava dúvida alguma, visto que nada me perguntou. De cabeça baixa seguiu para a cama, para pouco depois o ir abafar com e lençol porque a noite parecia estar fresca. Quando o tapei, apenas me abraçou pelo pescoço para me dar um beijo e de seguida me dizer ao ouvido «Avó, és a melhor mulher do mundo».
Sorri e retribui-lhe com um beijo cheio de amor, com os olhos emudecidos pela sinceridade de quem me disse as mais belas palavras do mundo.
No jantar do dia seguinte, o calvário das dúvidas caiu-me em cima. Não sei onde fui buscar tanta coragem para responder ao que me perguntou. Coitado, toda a sua cabeça fervilhava de coisas que queria saber, aquelas que a sua própria cabecita durante o dia não encontrava resposta.
Desde que perdi as esperanças de meu neto ter a mãe com ele, logo fiz questão que o meu neto fosse uma criança. Uma criança que não brinca, não é criança; mas o que homem que não brinca perdeu para sempre a criança que nele vivia e que tanta falta faz lhe faz ao longo de toda a existência. Tudo lhe dei e permiti para que a criança estivesse dentro dele para nunca perder este seu lado, mesmo que não saiba para onde me conduzirá o meu caminho. Talvez um caminho louco, às curvas ou talvez em círculos. Seja qual for e vá por onde ir, eu seguí-lo-ei com todas as minhas forças.

*
- Atenção! Atenção.....aproximem-se da bilheteira que as portas do grande Circo Mexicano já abriram.....
- Venham ao Mexicano, o maior circo do mundo! Venham depressa que já há poucos bilhetes....
O circo tinha-se instalado, sem eu saber no Largo do Mercado. Ouvia-se a léguas de distância que o “Circo Mexicano é o maior circo do mundo”.
Miguel nunca tinha visto um circo por dentro, como eu própria, não me lembro de ter visto qualquer circo na Tufeira.
Levei-o ao circo. De tanto ouvir que os bilhetes estavam a acabar, agarrou-se à minha saía, pedindo-me que não demorasse porque os bilhetes estavam a acabar.
- Não acredites filho naquela lengalenga. São eles a anunciar a “ banha da cobra”.
- Que tem a haver a banha com o circo, avó?
Tive que me rir, sem saber o que lhe explicar.
- Esquece o que te disse. Foi uma forma de dizer.
- Venham ao circo Mexicano e tragam as vossas crianças! Venham ver o homem mais alto do mundo; venham ver os tigres da Malásia e a melhor equilibrista do Mundo.
- Venham ver a Marlene, a mulher que anda de bicicleta no ar em cima de uma corda. Venhammmmm, depressa que os bilhetes estão a acabar.
- Estás a ouvir avó? Demoras tanto a arrumar a louça que quando chegarmos ao circo já não temos bilhetes.
Fiz-lhe a vontade, deixando tudo por fazer. Compreendia a sua ansiedade de ver uma coisa que nunca tinha visto. Para mais, quando vinha da escola passou mais os colegas pelo largo e viu toda a qualidade de bicharada que quando chegou a casa me massacrou a cabeça com o que tinha visto. Entonteceu ao ver as luzes da ribalta, os artistas andando a vender fotografias pelas bancadas; fartou-se de rir quando apareceram os palhaços e pasmou-se quando viu a “Marlene” a andar numa bicicleta esquisita numa roda que atravessava de uma ponta à outra a cúpula do circo, segurando ao mesmo tempo uma longa vara; admirou-se com o que os tigre e leões faziam, espantando-se com os truques de ilusionismo que os mágicos faziam.
Como lembrança do “Circo Mexicano” fez-me comprar uma bandeira que mais não era do que uma enorme, aquele que estava estampada por cima do toldo, tendo a meio, as palavras com cor vermelha “Circo Mexicano, o maior circo do mundo.”
*
Mais uma vez nada lhe omiti como nunca culpei a sua mãe. Continuo apensar de que a culpada disto tudo sou pela falta de atenção que dei a Beatriz e daquilo que poderia ter feito mas não fiz. Questões que quando penso nelas me fazem desanimar.
Tudo se inverteu. Miguel assimilou o que lhe disse como me prometeu que o assunto encerrava ali. Já sabia tudo e não queria saber mais nada. Apenas me pediu que nunca o deixasse ou abandonasse como a mãe.
Acabou o seu pequeno discurso, dizendo-me que estaria sempre a meu lado. Nunca me chamaria mãe mas que no seu fundo eu não era a sua avó, mas sim a mãe de sua mãe. Quanto ao pai, nem uma vez sequer se pronunciou. Uma criança falou para mim e um homem ouvi.
Não lhe exigi mais esforços na escola porque bem cedo entendei que os livros pouco lhe diziam. O que lhe importava era o “Migadalho” e arranjar dinheiro para outros para que um dia quando tivesse filhos as terras fossem tantos quantos os filhos.
No décimo quinto aniversário de Miguel, levei por diante o que em mente trazia à muito tempo. Levá-lo a conhecer o Norte do país. Juntava-se o útil com o agradável. Já quase me esquecia o quanto gostava de passear. Já há muitos anos que não fazia o que sempre adorei.
Gozei o meu período de férias e fui mais o Miguel no meu Opel sem destino marcado. Conforme terminasse o dia, onde estivéssemos, por ali procuraríamos um local para dormirmos. Quanto à alimentação a mesma coisa.
Partimos bem cedo e devagar para que meu neto pudesse admirar a paisagem e a beleza das nossas terras, tão desconhecidas de muitos de nós, mas com tantas e tradições e costumes.
Estivemos no Douro, visitamos a Régua e os comboios do Pinhão; nas escadas da Nossa Senhora dos Remédios; No miradouro de São Salvador do Mundo; no castelo de Penedono e a aldeia histórica de Marialva; na terra dos Pauliteiros de Miranda; no Penedo do Durão; no Alto de Santa Luzia; no Mosteiro de Tibães; Serra do Gerês e no Parque Nacional com o mesmo nome; em Aveiro demos um passeio pela Ria e vimos os moliceiros; passamos por Mealhada e fomos até à serra do Buçaco ver o jardim botânico; perdemos quase um dia a vermos a Quinta das Lágrimas, em Coimbra, que foi o cenário de uma das maiores história de amor, vivida por D. Pedro e D. Inês; passamos pela Figueira da Foz e percorremos toda a Serra de Boa Viagem.
Quando regressamos a Tufeira, estávamos os dois deslumbrados de tanto passear e ver aquilo que não conhecíamos.
Senti-me encorajada como recompensada de tudo pelo que passei. Quantas vezes aos fins-de-semana lhe pediam para ir para a brincadeira e me pedia para irmos para a fazenda. Um moço danado para trabalhar e bastante orgulho me dava. Os padrinhos viam nele um moiro de trabalho. Ao atingir a idade de adulto, disse-me
Os livros acabaram. Agora vou trabalhar para que tenhamos alguma coisa nossa. Não se preocupe avó que agora quem amanha a terra sou eu. Chegou a vez da avó descansar.
Mas a avó não pode ainda deixar de trabalhar. O teu padrinho ainda precisa da ajuda da mãe, e mais agora que a senhora dele está tão doente.
Olhou para mim, como pasmado pelo que disse, mandou com a ponta do pé, uma pedra que tinha estado a esfregar enquanto falei para me responder:
- Então trabalha para o padrinho até quereres. Deixa o resto comigo. Ajudas-me mais a madrinha aos sábados e domingos e no Verão, depois de teres saído do trabalho.
Interiormente, sabia que Miguel já não era aquela criança que conheci, pelo contrário. No momento em que soube parte do seu passado e um pouco da história da família, foi como a terra quando é fortalecida com adubo, começou a crescer no tamanho e a fazer-se um homem responsável. Há males que vem por bem. Este foi um deles.
Nos dias mais escuros, no silêncio do espaço vazio, sozinha caiem-me lágrimas frias que vão secando o meu coração. São estes momentos de todo um passado que me fazem recordar as dores que o tempo teima em não fazer esquecer. Fujo deles a sete pés mas não os consigo evitar. São mais fortes do que e aparecem-me na frente quando menos os espero. Ao mesmo tempo, não sei se é bom ou se é mau, uma força misteriosa me anima, dando-me forças para andar para frente, criando ao mesmo tempo energia que desconhecia a sua acomodação. Algo vindo de dentro de mim que me fazem viver de uma forma sorridente esperando pelo futuro a fim de saber o que este me reserva. Acredito que não sou a única pessoa no mundo nestas circunstâncias como não seria a última. Sei, julgo eu, que a sofrer como tenho sofrido a recebedora das surpresas que a vida me tem presenteado, que devem haver sim, muito poucas.
Começo a ter certezas de que Miguel vai ser um homem às direitas e que o futuro lhe sorri. Todos estão de seu lado como o querem ajudar, incluindo a doação de bens dados por quem tem muitos e que de uma forma muito subtil, dá a terceiros a gratidão que outros lhe dedicaram como o souberam servir sem nada pedir em troca, salvo pequenos favores que de outra forma não seria possível chegar onde chegou como concluir questões inadiáveis que a vida por bem ou por mal impingiu.

*

Miguel aproxima-se dos dezoito anos e já pensa em namorar. Já me deu recados que uma donzela caminha a seu lado, seja ela quem for, porque não a conheço, dele sei, porque me o disse, após o casamento virá «morar para a casa da avó Mariana» Ai dela, senão aceitar a imposição. Como começou como acaba.
O “Migadalho” brota a seiva que alimenta o que produz. Aos poucos Miguel alvitrou que comprássemos mais uns hectares de vinha que um vizinho de extrema quer vender por bom preço, desfazendo-se dela para que goze os últimos dias da sua avançada idade e visto que os filhos nasceram para marqueses de bronze.
Aceitei a proposta, deixando ao futuro dono as rédeas do negócio, enquanto de longe, vejo a sua astúcia para regatear o preço que teima em fazer descer.
Não levou muito tempo para que tudo fosse feito e sem ninguém sair prejudicado. Em seu nome ficou o registo, porque a ser enganada mais uma vez que o seja pela minha última raiz, coisa que não acredito mas que o tempo se encarregará de mostrar se me enganei em quem tanto confio. Não lhe resta mais ninguém que não a sua avó. Se me tirar o pouco que tenho, só ele ficará prejudicado.
Por perto anda sempre sua madrinha, que vê no afilhado o filho que nunca teve. Até Miraflores o incita constantemente que vá para a frente. Dos poucos negócios que tem feito em prol da terra, o amigo da família, que seu padrinho é, se resguarda, mas dando ao mesmo tempo, instruções a quem seja intermediário para que não engane quem lhe é tão protegido. Sei porque me disse, Miraflores, tem algures bens móveis que dentro de pouco tempo lhe serão destinados. Ainda não o fez para que o «moço se torne casadoiro»
11
Ainda hoje estou por saber como Tobias soube do meu paradeiro como de tudo o que aconteceu.
Belo dia estava no meu quintal regando uns canteiros de salsa quando a campainha tocou. Enrolei o avental por cima da saia preta que trazia vestida e assomei-me ao portão a fim de ver quem me queria falar
Dei de caras com Tobias. Estava velho para a idade como desalinhado estava a seu cabelo. Já não era aquele homem que conheci como quem me fez sofrer tanto. Há anos e anos que não o via como nada sabia dele. No momento que o encarei apercebi-me como o tempo passou. Sintomas de nervosismo. Até de uma perna mancava e piscava um olho que a tensão estivesse alterada. Um bigode grisalho separava o nariz da boca para quando aberta, alguns dentes lhe faltassem. «Tobias, Tobias quem te viu quem te vê» pensei para comigo para num instante me aperceber que pouco deveria estar melhor. Gostamos de ver os outros como eles são mas esquecemo-nos de nós. Muitas vezes o nosso estado de conservação não é como pensamos. O tempo passa e quando olhamos para trás não sabemos se foi o tempo que passou por nós se nos por ele.
- Que queres de mim? Agradecia que fosses expedito no que tiveres para dizer porque não quero estar aqui ao portão a falar com desconhecidos.
Com um sorriso irónico e de cínico, que não tinha perdido, a razão da sua presença mais não era do que poder ver o neto.
Tinham-lhe dito que morava comigo; que sabia de tudo como da profissão da filha. Mais explicou que não andava bem de saúde de há uns tempos a esta parte e não desejava de maneira alguma partir deste mundo sem conhecer o neto.
- Pela minha parte não verás o teu nem tão pouco falarás com ele. Mais nada tenho a dizer-te, restando-me apenas pedir-te que te vás embora e nunca mais aqui apareças como nos deixes em paz para que ele não apanhe nenhuma desilusão como as muitas que me deste a mim e à Beatriz.
Retirou-se cabisbaixo sem sequer se ter despedido ou dito palavra alguma. Sei que fui agressiva como não deveria o ter proibido de um direito seu, as dos arquivos da minha memória vieram instantaneamente recordações tristes e doridas que me reviveram os momentos mais dolorosos da minha vida. Não queria que meu neto passasse por enganos, não lhes bastasse já os desenganos que a vida lhe deu indirectamente.
Por detrás das cortinas do quarto que foi de Beatriz, mas agora de Miguel, vi, sem ele se aperceber, a sua retirada. Já não era aquele homem pujante que conheci à mais que uma vintena de anos atrás.
«Quantas promessas e sonhos não me fizeste sonhar Tobias? Quanto não me fizeste sofrer Tobias e agora vens aqui com um pedinte a implorar que te deixe ver aquilo que nunca te preocupaste? O tempo não perdoa e a consciência começa-nos a pesar com a idade. Torna-se um tormento que jamais nos deixa.»
Miguel já estava com dezanove anos, quando me apresentou a Teresa, a rapariga com quem namorava a algum tempo, não me tendo apresentado antes porque achava que as «coisas podiam não dar certo». Mas do que me disse já namoriscava com ela, vai para seis meses. Um rapariga bonita e com boa apresentação.
Filha de famílias tradicionais na Tufeira. Tudo gente séria. Humildes de riqueza mas ricos em sentimentos. Pessoas consideradas sem ninguém lhe apontar dedo, pelo quer que fosse. Estava contente pela escolha que tomou o meu neto. Nunca me pronunciei nem lhe dei conselhos para escolher esta ou aquela.
Ajuizei sempre que esta opção só dia respeito ao próprio, caso contrário, era como no tempo medieval. Época em que os pais fornicavam com as filhas; que os padres eram testemunhas da desfloração das próprias filhas; que obrigavam as filhas a casar com quem entendessem.
Altos mandatários eclesiásticos visitavam os bordéis e mantinham várias amantes, aceitavam subornos e negociavam com as bulas papais. A vida era assim no Renascimento como o mundo funcionava no tempo de Alexandre VI, Papa Bórgia e outros.
No primeiro dia em que Teresa entrou na nossa casa, convidei-a para jantar connosco. Fez-se rogada mas acabando por aceitar, depois de ter informado os pais, que eu já os conhecia de vista, tendo a melhor impressão deles.
Falamos de tudo e mais alguma coisa, pois queria que entre nós não existisse rodeios ou qualquer tipo de complexos. Afinal, no futuro faríamos parte de uma nova família. Aproveitei a ocasião para lhe perguntar se via algum inconveniente, se no futuro e, após casada, em passar a viver na minha casa sem eu lhes tirar a independência e me intrometer na vida do casal, acrescentando-lhes na positiva, que a concordarem, no entremeio mandaria construir algumas divisões mínimas nas traseiras, dado ter espaço suficiente. Concordaram com a ideia. Assim foi feito. Seis meses depois já eu vivia num quarto de terreno do quintal com as mínimas condições habitáveis, estando pronta entregar-lhes, após o casamento aquilo que foi a minha casa.
Dia sim, dia não Teresa vinha-me visitar, quer antes de ir para sala com Miguel quer após a sua retirada. Estava-se tornando minha amiga como fazia questão de me ajudar em tudo para ao mesmo tempo, conhecer os hábitos de quem, em breve, chamaria de esposo.
Gostava dela como da preocupação em aprender e conhecer as virtudes e defeitos do futuro marido. Dizia-me muitas vezes, a sós, que não era sua vontade «desagradar Miguel» porque o namorado, meu neto, era «um rapaz tolerante e compreensível com um coração do tamanho do mundo. Por nada deste mundo o quero perder como que seja infeliz»
Comoveu-me estas palavras. Pedia a Deus, todos as noites, que não me levasse deste mundo sem ver o Miguel casado. A minha intuição dizia-me que o meu único neto ficava amparado, e bem; para o resto da vida. Ia ser feliz com a Teresa.
Deus fez-me a vontade, porque me permitiu viver mais alguns anos, os suficientes para que pudesse ver o nascimento do meu bisneto, a quem foi dado o nome de Afonso.
O casamento foi levado a efeito com a maior simplicidade. Após o celebração nupcial, a meio da tarde foi servido um pequeno “Copo de Água” no salão de um restaurante próximo para a tarde acabar no bailarico com os acompanhantes, que mais não era do que a família chegada da noiva, porque do noivo, apenas estava eu, Felismina e a família Miraflores que também foram os padrinhos, e com muito orgulho.
Ia o serão a meio, quando Miguel subiu ao palco onde estava os “músicos” pedindo a todos os presentes alguns minutos de silêncio porque desejava fazer um brinda muito especial.
Um insólito que não estava previsto nem nos passava pela cabeça o que dali ia sair, já que nada foi combinado e não era normal estes imprevistos numa “boda”. Assim sempre me lembro de ter ouvido falar.
Teresa olhava para mim e eu para ela, como que perguntando uma à outra o que estava a acontecer. Ela pensava tudo e mais alguma coisa e eu assustada pelo que estava a acontecer.
- Meus amigos e amigas, desculpem esta pequena partida que vos fiz mas descansem que não é nada de especial. Começo por vos agradecer, o estarem aqui comigo e com minha mulher neste dia especial. Vocês foram testemunhas na igreja da nossa felicidade e continuarão a sê-lo no futuro, visto que bem perto uns dos outros moramos.
Os convidados sorriam para ao mesmo tempo estarem surpresos pelas palavras que estavam a ouvir, pois não faziam sentido como não era hábito o noivo agradecer a quem tinha convidado para a cerimónia.
Quer a minha neta quer eu, continuávamos à espera de algum dito, que a nenhuma de nós duas, nos passaria pela cabeça o quer que fosse.
- Mas se estou aqui, a falar para vós, neste dia muito especial, é apenas para vos dizer publicamente e em voz alta, quanto estou grato a uma pessoa aqui presente, à qual, sem ela nada seria.
No dia do casamento, não é normal um noivo subir ao palco do salão, dando oratória e muito menos começar a chorar. Miguel estava comovido por estar onde estava e apregoar para todos. Meteu a mão ao bolso do colete e tirou um lenço para limpar as lágrimas.
- Peço-vos desculpa por esta fraqueza, mas os sentimentos são mais fortes.
Começávamos a ficar todos preocupados pelo estado de Miguel como do que pensaria a família, mesmo sabendo nós que a emoção o tinha dominado.
- Desculpem mais uma vez e para acabar vou-lhes dizer aquilo que aqui me trouxe: Para agradecer de todo o meu coração a uma pessoa muito querida que aqui está e sem ela, talvez não estivesse. E este “obrigado do tamanho do mundo” mais não é dirigido que à minha Avó Mariana, a mulher do mundo. Do fundo do meu coração e na presença de todos vocês, se hoje sou alguém, à minha avó o devo. Muito obrigada querida avó!
As lágrimas corriam pelas faces de todos os convidados. Quando ouvi as palavras mais lindas do Universo vindas da boca do meu neto, senti-me recompensada por tudo o que fiz e sofri. Jamais tinha passado pela cabeça de quem quer que fosse, que Miguel quando subiu ao palco fosse dizer o que todos tinham acabado de ouvir. Foi neste momento que ouvi o meu coração chorar, por não estar junto de nós, quem deu à luz Miguel.
Oito dias depois, o casal estava a viver na casa que passou a ser deles para eu habitar da do fundo. A felicidade e a harmonia passou a reinar onde está escondida nas entranhas da terra, um pequeno saco que esconde toda a amargura do meu passado, a fim que o futuro seja o meu último ciclo de vida e outros cheios de amor a paz possam continuar para que a vida se complete geração após geração.
Dois anos depois nasceu Afonso, meu bisneto, que mais não era do que a cara chapada de Beatriz. Seis meses depois foi baptizado na Igreja de Santa Teresinha, a santa preferida de Teresa, que fez questão do acto ser levado a efeito pelo padre que os uniu. Como convidados na cerimónia, foram aqueles que participaram no casamento. Tufeira recebeu de braços abertos as pessoas mais queridas da vida como pela freguesia todos admiravam a felicidade da união existente.
*
Nas redondezas das Lapas, vivia Tobias, onde todos o que conheciam. A remoinha do desgosto de não poder ver a filha, a agrura de não ter ido ao casamento como de não conhecer o neto, não o deixava.
No dia de Natal de 19....., todos o viram acabrunhado de tristeza para ao mesmo tempo acharem estranho que andasse vestido com o fato do casamento, coisa muito comentada pelos mais idosos que se lembravam da fatiota - anos atrás o seu tinha um formato de realce foi coisa anormal na época. No interior da igreja andavam os mordomos arranjando os preparativos para a missa.
Pouco tempo faltava para que a solenidade começasse. Ao contrário dos anos anteriores, não corre uma brisa nem uma nuvem no Céu. Ainda está quente, do Sol da manhã, a pedra do chão.
Quando um dos responsáveis pela igreja, vindo da sacristia para abrir a porta, deparou-se com uma desgraça. Nem queria acreditar no que estava vendo como no acontecido. Tobias estava enforcado numa acácia do adro da igreja, árvore, onde debaixo da mesma, tinha dado o primeiro beijo depois de se ter casado com Mariana.
Já vou quase com setenta anos. Agora, tornar-se-ão mais pesados com a angústia que me acompanhará para o resto da vida. Como disse uma filósofo «Nunca desistas de começar, nunca comeces a desistir».
A obra que o leitor acabou de ler é de autoria de António Centeio. A obra este sujeita a Direitos de Autor.
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