sábado, 30 de maio de 2009

O Jardim do André
Por: António Centeio

Um corpo de homem mas com uma cabeça de criança. Adora sentar-se na relva do jardim conversando com as crianças como se uma criança fosse. Esquece-se que tem vinte anos enquanto os outros andam pelos dez. Mandrião mas bonacheirão. Quando me sento no banco do jardim vendo as crianças pulando e gritando para ao mesmo tempo inventarem brincadeiras esquisitas, muitas vezes sem querer ouço as suas conversas.
De todos, um se destaca. Aquele que quer ser criança mas já é homem. Observo-o sem se aperceber. Nada de especial tem mas impressiona-me a sua fisionomia. As suas imensas gargalhadas fazem mais barulho do que trovões no Inverno, as suas conversas são adulteradas com dizeres sem nexo. Diálogos que acabam por afastar quem lhe tem respeito, não pelo que diz, mas pelo seu corpo.
Intriga-me a sua maneira de ser. Penso que dissimula, sem querer ou sem saber, qualquer coisa. Uma pureza que me emociona. Ri com os olhos para num milésimo de segundo mostrar amargura e rancor, noutro tanto tempo, correm-lhe pela cara, grossas lágrimas. Tantas que as crianças andam sempre a perguntar-lhe «porque choras?» Não sabe responder nem explicar. A sua vida deve ser feita de contrariedades ou de algo estranho, porque de tão crescido ser, é um enigma.
Porque os seus pequenos amigos já o abandonaram por causa das suas conversas não fazerem sentido ou por não acreditarem nele, fica sozinho no terreno, que até há bem pouco tempo estava cheio de petizes. Senta-se na relva com os joelhos dobrados e com a cabeça no meio das pernas olhando para a verdura que debaixo dele está. Esgravata as pequenas folhas, como se nelas estivesse a ler alguma página de um livro qualquer. Deixa a sensação que na terra está escondido um qualquer cofre que por mais que procure não o consegue encontrar. Talvez pensando naquilo que nem ele próprio sabe explicar. Bem dentro de si, o enredo do pensamento e as personagens devem fazer parte da sua mente vazia. Por mais que queira não encontra o caminho ou o sentido. Então, levanta-se e de seguida caminha pelo chão que lhe amacia os pés, metendo as mãos no bolso. Caminha, dando pontapés na relva como sendo esta culpada das suas agonias. Cabisbaixo e aos safanões vai dando sinais se o mal está nele ou do que faz parte dele.
São nestes momentos que concluo que algo não deixa ver o mundo que lhe pertence ou que não o deixa compreender aquilo que ele próprio não sabe. Nunca o vi acompanhado de verdadeiros adultos como nunca percebi o sentido da sua vida. Sempre o vi sozinho com a sua cara rechonchuda como o vejo diariamente enquanto espera por quem lhe faça companhia. Tenho a sensação que procura qualquer coisa na vida mas nunca conseguirá encontrar. Às vezes até parece que anda perdido no meio da floresta onde nem os pássaros lhe querem fazer companhia. Quando se encosta às redes que protege o espaço desportivo, olha para o cimo das mesmas. Com as suas enormes mãos faz gestos de querer subir uma imaginável árvore que o levará ao seu refúgio.
Desperta quando vê as crianças que vem brincar, perguntando a si próprio se aceitarão, a sua presença porque outras não têm para brincar. Logo formado os grupos do costume, André, mais não é do que um rapaz com corpo de homem mas com cabeça de criança. Faz tudo para agradar mas pouco lhe ligam – não inspira confiança a quem julga ser como ele.
Nos fins das tardes, quando o jardim começa a ficar despovoado, desvia-se para a rua íngreme, paralela ao espaço infantil, para começar a subi-la. Sem pressa e sem qualquer preocupação, enquanto sobe o caminho, faz na delonga o arrastar dos seus sapatos que mais parece querer arrancar as pedras da calçada. Várias vezes segui o seu percurso para ver onde morava ou para vê-lo entrar para na sua casa. Depois formaria o meu pensamento dos porquês das suas razões e atitudes. Mas desisti, porque no fim do cimo da rua, entra no arvoredo, seguindo um caminho que no meio deste passa, de tão cerrado ser, perco-o de vista, ficando eu, sem qualquer sinal do lugar onde se recolhe ou de quem o acolhe. Esfuma-se esguiamente pelo meio dos imensos troncos - a não ser que saiba que lhe sigo os passos.
Nunca vi ninguém procurando-o ou chamando por ele. Depreendo que será tratado por alguém, porque o seu aspecto demonstra que não deve ser criado apenas com pão e água como a sua roupa não é de maltrapilho.
Quando regresso, penso como será a vida dele e se a razão das suas atitudes não será pelo pouco desamparo que lhe dão. Algures, alguém deve cuidar dele.

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