Por: António Centeio
Tinha uns olhos pretos como uma azeitona que assentes num branco límpido faziam lembrar o branco do casario nos montes nas planícies alentejanas. Apenas o seu olhar mostrava estar sempre numa agitação de tristeza. A sua pele com uma cor a puxar para o cálido do deserto e o seu cabelo escuro fazia com que fosse uma criança bonita.
Com uma doença esquisita desde a sua nascença, levava já nos seus dez anos muitos dias passados no parapeito da janela do seu segundo andar ora vendo quem passava ora vendo outras crianças brincando no recreio de uma escola frontal à sua casa que fazia extrema com a rua movimentada. Tão movimentada que: carros, bicicletas, animais e outros meios de transportes puxados pelo homem, a poeira do ar – por causa do movimento e das confusões – fazia da comprida artéria uma babilónia de coisas que tanto alegrava quem não podia nela circular ou brincar.
Depois a elevada temperatura, as vozes misturadas que mais pareciam uma orquestra desafinada, as buzinadelas estonteantes dos carros e a gritaria das crianças faziam deste lugar um sítio encantador alheando as crianças dos perigos que as cercavam.
Às vezes até o menino do golfinho por andar sempre com o desenho do mamífero estampado na camisola, passeava ao ombro o seu saguim dando estes guinchos delirantes. Costumava arreganhar os seus pequenos dentes, brancos como os icebergues, para assustar quem distraídamente circulava. O menino do golfinho tinha uma missão: passar de vez enquanto por baixo da janela de Leilla. Depois assobiava num som agudo, para quem estava em cima, ouvisse e visse que nos seus ombros ia aquilo, que numa troca de olhares, fazia macaquices de propósito para quem não podia brincar.
Eram estes curtos e mágicos momentos que os dois pequenos seres sabiam ser exclusivo de ambos. O dono do macaco nunca soube dos motivos da “criança não brincar com o seu bicho”. A única coisa que sabia era que a amiga do seu bicharoco tinha «uns olhos lindos como as estrelas do deserto».
Por não poder andar e ser como as outras crianças ouvia e via coisas que os adultos não viam ou fingiam não ver. Pela altura e posição que tinha a seu favor estava todos os dias numa situação de privilegiada. Às vezes sua mãe, para não a contrariar, fazia-lhe quase todas as vontades. Uma delas era dar-lhe o almoço na boca mesmo que muitas vezes não soubesse o que estava a comer, tal era a sua curiosidade para ver as brincadeiras das outras crianças. Os seus olhos estavam sempre voltados para quem brincava.
De tão pequena ser sua boca nunca se abria para qualquer lamento. Sofria interiormente mas evitava que sua mãe se apercebesse. Já a tinha visto muitas vezes chorar e ouvir palavras confusas, ditas num turbilhão de frases sem nexo, mas compreendendo que a sua doce e protectora sofria por nada poder fazer.
A mãe olhava-a bem nos olhos e via que as suas azeitonas brilhavam num choro cujas lágrimas nunca escorriam pela face mas enrolavam-se naquilo que um dia a sombra da terra taparia para sempre.
O desgosto de ambas era morarem num bairro daqueles, onde as disputas da lei do mais forte eram as coisas mais normais deste mundo, fazendo com que muitas vezes a desordem se instalasse na zona e onde nem a policia mostrava vontade de ir, não pelos residentes mas pelos negócios escuros que lá se faziam aos olhos do dia não havendo interferência de ninguém, excepto daqueles que viviam dos rendimentos dos produtos que vendiam. Um desassossego que importunava quem lá morava como amedrontava quem visse e falasse.
Muitas vezes as raimonas da bófia como lhes chamavam os traficantes do bairro, visitavam as ruelas mais escuras mas sempre vigiadas por quem encostado às velhas e sujas paredes fingia nada ver ou perceber para servirem de pombo-correio a quem percebia dos sinais que se perdiam nas noites.
Todos sabiam no mundo em que viviam mas todos tinham feita a promessa «nada saber para os estranhos» de modo a que o silêncio por não ser comprado era ameaçado. «Um inferno este bairro. Se tivesse dinheiro comprava uma casa numa zona sossegada e civilizada nos subúrbios da cidade» dizia muitas vezes a mãe solteira para o seu rebento quando via confusões e a retirava da janela.
Até ao dia em que esta lhe pediu para lhe fazer um pudim de leite-creme. A mãe que não queria que nada faltasse a Leilla porque sabia que a sua vida seria curta, o seu maior desejo era fazer com que se sentisse feliz. Num instante, correu para a mercearia mais próxima para comprar o que tanto iria adoçar a boca da coisa mais querida que tinha neste mundo.
A força do mal estava atrás da porta e quando nada indicava rebentou uma confusão de fugitivos e fardados para num abrir e fechar de olhos, os tiros e balas cruzarem-se por percursos desconhecidos para quem já conhecia as sinuosas ruas e esconderijos dos malfeitores.
Uma bala maldita perdeu-se no alvo a atingir para fazer um ricochete embatendo de seguida na testa da pequena criança que nada dizia aos outros mas que tudo via.
A mãe quando chegou a casa com o leite satisfeita de mais um capricho ir dar a quem tudo merecia, encontrou no soalho gasto, de tanto pisado estar, sua filha banhada de sangue.
Branca e transpirando como uma desalmada, apenas viu o pequeno corpo de Leilla com os olhos muito abertos olhando para o Céu. Ficou-lhe para sempre a imagem dos pequenos braços abertos alongados no chão dando a impressão que esperava a mãe para lhe dar o último abraço. Abraço este que não recebeu mas que deu a quem tanto amava.
Então num relance, levantou-se e olhou para onde a filha sempre olhava mas ninguém viu como nada ouviu.
Ainda hoje, está por saber como o Sol deixou de entrar em casa ou se alguma tempestade do deserto lhe entrou pela casa adentro levando-lhe quem tudo era para ela.
Com uma profunda fé, mas ao mesmo tempo sentindo uma revolta interior abalada por desconhecer os desígnios divinos prometeu a si própria que a partir do momento que deixou de ver e ter a sua pequenina todos os dias estará à janela olhando para onde olhava Leilla com a esperança de um dia poder ver no meio de quem brinca alguma estrela ou alguma sombra que a leve a julgar que aquilo que era seu voltou.
Se nada disto acontecer então que a sombra escura a leve para junto de quem já não tem. Nas noites de solidão, lembra-se do calor que dava a quem tanto precisava para se aconchegar no peluche cheio de borboto de tanto mimado ter sido.
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Copyright © 2008. Todos os direitos reservados. O leitor não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida autorização do autor.
Tinha uns olhos pretos como uma azeitona que assentes num branco límpido faziam lembrar o branco do casario nos montes nas planícies alentejanas. Apenas o seu olhar mostrava estar sempre numa agitação de tristeza. A sua pele com uma cor a puxar para o cálido do deserto e o seu cabelo escuro fazia com que fosse uma criança bonita.
Com uma doença esquisita desde a sua nascença, levava já nos seus dez anos muitos dias passados no parapeito da janela do seu segundo andar ora vendo quem passava ora vendo outras crianças brincando no recreio de uma escola frontal à sua casa que fazia extrema com a rua movimentada. Tão movimentada que: carros, bicicletas, animais e outros meios de transportes puxados pelo homem, a poeira do ar – por causa do movimento e das confusões – fazia da comprida artéria uma babilónia de coisas que tanto alegrava quem não podia nela circular ou brincar.
Depois a elevada temperatura, as vozes misturadas que mais pareciam uma orquestra desafinada, as buzinadelas estonteantes dos carros e a gritaria das crianças faziam deste lugar um sítio encantador alheando as crianças dos perigos que as cercavam.
Às vezes até o menino do golfinho por andar sempre com o desenho do mamífero estampado na camisola, passeava ao ombro o seu saguim dando estes guinchos delirantes. Costumava arreganhar os seus pequenos dentes, brancos como os icebergues, para assustar quem distraídamente circulava. O menino do golfinho tinha uma missão: passar de vez enquanto por baixo da janela de Leilla. Depois assobiava num som agudo, para quem estava em cima, ouvisse e visse que nos seus ombros ia aquilo, que numa troca de olhares, fazia macaquices de propósito para quem não podia brincar.
Eram estes curtos e mágicos momentos que os dois pequenos seres sabiam ser exclusivo de ambos. O dono do macaco nunca soube dos motivos da “criança não brincar com o seu bicho”. A única coisa que sabia era que a amiga do seu bicharoco tinha «uns olhos lindos como as estrelas do deserto».
Por não poder andar e ser como as outras crianças ouvia e via coisas que os adultos não viam ou fingiam não ver. Pela altura e posição que tinha a seu favor estava todos os dias numa situação de privilegiada. Às vezes sua mãe, para não a contrariar, fazia-lhe quase todas as vontades. Uma delas era dar-lhe o almoço na boca mesmo que muitas vezes não soubesse o que estava a comer, tal era a sua curiosidade para ver as brincadeiras das outras crianças. Os seus olhos estavam sempre voltados para quem brincava.
De tão pequena ser sua boca nunca se abria para qualquer lamento. Sofria interiormente mas evitava que sua mãe se apercebesse. Já a tinha visto muitas vezes chorar e ouvir palavras confusas, ditas num turbilhão de frases sem nexo, mas compreendendo que a sua doce e protectora sofria por nada poder fazer.
A mãe olhava-a bem nos olhos e via que as suas azeitonas brilhavam num choro cujas lágrimas nunca escorriam pela face mas enrolavam-se naquilo que um dia a sombra da terra taparia para sempre.
O desgosto de ambas era morarem num bairro daqueles, onde as disputas da lei do mais forte eram as coisas mais normais deste mundo, fazendo com que muitas vezes a desordem se instalasse na zona e onde nem a policia mostrava vontade de ir, não pelos residentes mas pelos negócios escuros que lá se faziam aos olhos do dia não havendo interferência de ninguém, excepto daqueles que viviam dos rendimentos dos produtos que vendiam. Um desassossego que importunava quem lá morava como amedrontava quem visse e falasse.
Muitas vezes as raimonas da bófia como lhes chamavam os traficantes do bairro, visitavam as ruelas mais escuras mas sempre vigiadas por quem encostado às velhas e sujas paredes fingia nada ver ou perceber para servirem de pombo-correio a quem percebia dos sinais que se perdiam nas noites.
Todos sabiam no mundo em que viviam mas todos tinham feita a promessa «nada saber para os estranhos» de modo a que o silêncio por não ser comprado era ameaçado. «Um inferno este bairro. Se tivesse dinheiro comprava uma casa numa zona sossegada e civilizada nos subúrbios da cidade» dizia muitas vezes a mãe solteira para o seu rebento quando via confusões e a retirava da janela.
Até ao dia em que esta lhe pediu para lhe fazer um pudim de leite-creme. A mãe que não queria que nada faltasse a Leilla porque sabia que a sua vida seria curta, o seu maior desejo era fazer com que se sentisse feliz. Num instante, correu para a mercearia mais próxima para comprar o que tanto iria adoçar a boca da coisa mais querida que tinha neste mundo.
A força do mal estava atrás da porta e quando nada indicava rebentou uma confusão de fugitivos e fardados para num abrir e fechar de olhos, os tiros e balas cruzarem-se por percursos desconhecidos para quem já conhecia as sinuosas ruas e esconderijos dos malfeitores.
Uma bala maldita perdeu-se no alvo a atingir para fazer um ricochete embatendo de seguida na testa da pequena criança que nada dizia aos outros mas que tudo via.
A mãe quando chegou a casa com o leite satisfeita de mais um capricho ir dar a quem tudo merecia, encontrou no soalho gasto, de tanto pisado estar, sua filha banhada de sangue.
Branca e transpirando como uma desalmada, apenas viu o pequeno corpo de Leilla com os olhos muito abertos olhando para o Céu. Ficou-lhe para sempre a imagem dos pequenos braços abertos alongados no chão dando a impressão que esperava a mãe para lhe dar o último abraço. Abraço este que não recebeu mas que deu a quem tanto amava.
Então num relance, levantou-se e olhou para onde a filha sempre olhava mas ninguém viu como nada ouviu.
Ainda hoje, está por saber como o Sol deixou de entrar em casa ou se alguma tempestade do deserto lhe entrou pela casa adentro levando-lhe quem tudo era para ela.
Com uma profunda fé, mas ao mesmo tempo sentindo uma revolta interior abalada por desconhecer os desígnios divinos prometeu a si própria que a partir do momento que deixou de ver e ter a sua pequenina todos os dias estará à janela olhando para onde olhava Leilla com a esperança de um dia poder ver no meio de quem brinca alguma estrela ou alguma sombra que a leve a julgar que aquilo que era seu voltou.
Se nada disto acontecer então que a sombra escura a leve para junto de quem já não tem. Nas noites de solidão, lembra-se do calor que dava a quem tanto precisava para se aconchegar no peluche cheio de borboto de tanto mimado ter sido.
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1 comentário:
António
Que bonito o que eu li.
A tua escrita revela muito sentimento.
Sinceramente, fiquei sencivel...chorei.
Agradeço a embio do teu trabalho.
Os meus cumprimentos de amizade.
Margarida
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