domingo, 1 de junho de 2008

Azares da vida



Por: António Centeio

Os azares batiam-lhe à porta como as folhas a cair das árvores no Outono. Não sabia de onde vinha tanta desgraça como se alguma praga lhe tivesse sido rogada. Quando acordou nem queria acreditar no que a esperava. «Oh, diabo, que aconteceu por estas bandas?».
Na coelheira estavam tesos a meia dúzia de coelhos, que com bagas esquisitas – vendidas na mercearia do Felisberto – eram alimentados.
«Isto foi alguma desgraça que aconteceu ou um mal que veio com a noite, pois os bichos estavam ainda ontem despertos como um toutiço para agora estarem de pernil esticado».
Chamou a vizinha Benvinda para que assistisse com seus próprios olhos ao que esperava dentro de dias, matar um deles, quando sua filha viesse passar o fim de semana com a mãe, depois de estar quase á seis meses no Porto, onde vivia, sem lhe dar noticias.
«Logo esta desgraça agora, vizinha, quando a minha menina vem passar uns dias comigo», respondendo-lhe a quem com ela vivia a paredes-meias «não se preocupe que lhe dispenso alguns dos meus».
Pirilampos vindos do lado da vala acendendo pequenas luzes como quem anda a apanhar gambuzinhos, só podia ser quem tanta desgraça trouxe a quem tratava dos bichos com tanto carinho.
«Raios parta esta vida que às vezes nem vale apena viver! Tanto sacrifico para numa noite tudo se perder. Até parece que me caiu a desventura em casa quando não fiz mal a ninguém?»
Por mais que consolasse, sua vizinha falava para as paredes por tão pouca atenção lhe dar quem a tinha chamado.
«Então não se lembra do que me aconteceu a mim, antes do S. João? Os malfadados dos bichos não me entraram pela rede mosqueteira e não me morderam os bichos que estavam tão cheios? Oh já não se lembra? Deve ter sido a mesma coisa que aconteceu aos seus. De inveja sua pensei ser o mal, porquanto os seus respingavam crescer enquanto os meus definiam. Até pensei que alguma reza amaldiçoada me tivesse rogado, mas vejo que não, porque a desgraça aqui tombou»
Valia-lhe o galináceo que tinha nos fundos, bastando que apanhasse uma ou dois, para quando a nortenha chegasse um bom “frango no forno” lhe fosse dado. No meio do bichesa, de tudo um pouco havia.
Bastava que as maiores de crista vermelha ou de pescoço pelado, a mão lhe deitasse, amanhando-a pela manhãzinha para que a filha soubesse que a carne castanha é melhor do que a branca.
«É das farinhas filha e dos restos das couves que lhes corto aos bocadinhos para as juntar com as cascas da melancia! Não as alimentasse assim e ias ver como a carne das galinhas não prestava para nada? Julgas que aquela mixórdia que o Felisberto vende presta para alguma coisa? O que ele vende mais não são que restos de sêmeas, da mais ordinária que há. A sua ganância pelo dinheiro leva-o a vender gato por lebre.
Ainda a semana passada a vizinha padeira o viu a meter uma coisa esquisita no azeite que nos vende para trocar o grau do azeite e enganar os fiscais».
Mas comprava-lhe o que dizia fazer mal aos bichos. Nem sempre tinha para alimentar a criação com restos de comida, porque desde que o marido morreu e a filha partiu lá para cima, deixou de fazer paneladas de couves como a horta deixou de produzir «por via da falta dos braços do homem».
Não lhe bastasse a maldita das cruzes, que de tempos a tempos a deixava de rastos, cujas dores eram tantas que até pareciam chuva de estrelas cadentes a cair-lhe em cima, quanto mais agora o mal do coelhos, que lhe tinha dado um trabalho de inferno a criar. Estava à beira da sexta feira, véspera do dia em que a filha chegava, para depois de almoçar, ter pegado no avental, enfiando-o pelo pescoço abaixo e metido no bolso a faca, segurando de seguida o alguidar para apanhar as duas melhores galinhas, que lhe vinham fazendo a vida num inferno de tanto saltarem para cima do muro da vizinha. Sem saber como, desciam como pássaros fossem para depenicarem o couval da Benvinda, que a levava a chamar nomes esquisitos aos bichos, ou à sua dona, que em abono da verdade, muitas vezes fazia ter ouvidos de mouca para não responder a quem lhe chamava de desleixada, continuando assim a boa vizinhança.
Caminhava para o galinheiro, quando entorpeçou no raio da pedra que servia, com outras, de calçada ao seu quintal. O alguidar fez-se num fanico e os cacos voaram por tudo quanto era sítio. Valeu-lhe a faca não estar com o diabo, senão tinha-lhe furado o ventre.
Em fanico deveria tornar-se quem lhe rogava pragas que fizeram com que nem acreditasse no que estava vendo em frente com os seus olhos de pitosga. As aves tinham esticado o pernil como uma enxurrada de enxofre ali caísse.
Ainda não se tinha recomposto daquilo em que não acreditava para ouvir os gritos de catástrofe, vindo do lado de lá do muro. O mal tinha-se espalhado na criação da Benvinda e não só.
Espiolhado bem as causas e informadas pela vizinhança de ter sucedido o mesmo sintoma a quem criava bicharada, só havia uma conclusão: o mal estava no fornecido pelo merceeiro.
Descampou a rua em peso na loja do dito, que prometeu fornecer de galináceos a quem ficou sem eles como mudar de marca das sêmeas que algum garoto doidão em acto de malvadez, envenenou com substância desconhecida, levando assim que nenhuma ave da ruela escapasse em epidemia que por ali desaguou em dia de bruxaria.
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