domingo, 1 de junho de 2008

Gervásio, um excursionista exemplar


Por: António Centeio


Gervásio quando entra na camioneta da carreira sabe que a viagem vai ser de galhofa. O percurso leva-o ao alto da vida para poder ver, mais os outros, que tudo cá em baixo é mais pequeno.
Sempre com um sorriso na cara, mesmo que recentemente tenha perdido aquilo que mais adorava na vida, o seu filho. Diz a quem o acompanha que as tristezas não nos devem ficar para sempre, porque caminhando em direcção àquilo em que acreditamos, estamos a deixar para traz etapas que a vida nos obrigou a terminar, mesmo que, algumas corroam as nossas profundezas e possamos sentir que de dentro de nós, tiraram a frio, algo que nos era muito querido.
A vida é cheia de contornos, alguns bem difíceis. A nossa grandeza e superar aquilo que nos apoquenta para que a vida continue o seu ritmo e, que quem cá fique, encare a tragédia como um beneficio, ou: um reforço para que tudo ande para a frente.
Tem todo o tempo de mundo livre já que deixou de dar satisfações a quem, quase levou a vida, maior do que aquela que o filho teve, a exigir-lhe tudo e mais alguma coisa.
As coisas mudaram de tal forma que Gervásio todas as semanas vai passear na camioneta da carreira que faz excursões, cujo responsável é um vizinho seu, mas por pouco tempo, porque em breve vai viver ali para os lados da serra. Construiu uma pequena vivenda voltada para o enorme montão de pedras, protegidas de verdura agreste e de algumas árvores selvagens. Quando abrir as janelas o ar puro vindo da serra, vai-lhe entrar pelos pulmões adentro.
Enquanto não deixa a casa em que viveu muitos anos, como aqui criou seus filhos, que se fizerem uns homens graças aos bons princípios e educação que receberam, vai dando conselhos a quem olha pelos seus bens enquanto ausente, o vizinho Gervásio, como gosta de dizer.
Dos programas que a sua agência organiza mensalmente para as semanas do mês seguinte, escolhe as melhores e mais económicas para que o seu amigo e vizinho, por pouco tempo, possa esquecer o passado e viva no presente. Assim, o caminhante não precisa de se deslocar ao centro da cidade, onde se situa a representação, para ver os cartazes com lindas paisagens, de encantar até um cego.
Talvez como agradecimento por quem olha pelo que é seu, sem nada pedir em troca, traz-lhe os folhetos para que faça quatro escolhas. Depois de escolhido e aconselhado por quem sabe da coisa, limita-se a indicar e a comprometer-se quando ao devido, o respectivo pagamento, para que tudo fique assente e guardado o lugar do primeiro banco da camioneta, de preferência, o que fica por detrás do condutor, porque assim leva a viagem na galhofa e pode ver tudo como o motorista.
Quando lhe dá na vinheta, levanta-se para se colocar no corredor, puxando pelas castanholas, fazendo com que estalem para acompanhar o som com coisas flamengas – memórias que herdou de seu falecido pai, que em tempos, andou na guerra civil de Espanha.
Os acompanhantes, escutam e sorriem para depois num desvario comecem todos a mandriar contando anedotas e outras tonteiras que o motorista ás vezes até chora de tanto se rir.
A meio da viagem, em hora já determinada, com a devida antecedência, depois de proposto o local, a camioneta deixa de caminhar, a fim de dar descanso ao motor, permitindo assim aos viajantes que puxem das suas cestas e outros apêndices, para assente em longas toalhas, ou cobertores, ser espalhado tudo aquilo que de casa veio para confortar os estômagos vazios que vêm doridos de tanto riso. Os acepipes são expostos para que todos se sirvam e saboreiem o que cada um fez. É o melhor momento do convívio, porque ninguém repara no que trouxeram mas comem o que é de todos.
No final do repasto, é hora de exibição. Todos têm que mostrar os seus dons e habilidades escondidas. Aos que não tem jeito, são-lhe pregadas partidas. De desfeitas, ninguém como Gervásio para as fazer. É um mestre de boa disposição e quando não a têm, engendra-as, não só para ele como para os outros.
Inventa coisas do arco-da-velha, algumas vindas do lado de lá de Espanha, que todos acreditam, tal é a expressão e os sestros utilizados. O que interessa é reinar a boa disposição e a galhofada, mas de maneira que a vida de cada um não se misture com a diversão.
Reiniciada a viagem e feito o percurso como visitados os pontos que foram a causa da jornada, o regresso previsto é feito dentro do combinado.
Foi no regresso, que viram o Sol a ficar cinzento, ali para os lados da serra de Mira. Primeiro começaram o ver uma coisa que parecia um furacão para pouco depois se transformar em nuvens escuras.
Sem saberem como, já o Céu tinha mudado de cor, ficando com um escuro que amedrontava quem viajava como que tudo parecesse o fim do mundo. O cheiro que entrava pelas aberturas das janelas cheirava a fumo. Um fumo que os incomodava e que lhes fez perder o pio.
A serrania ardia como uma desalmada porque lhe faltava um estreito ou um atalho. No sentido contrário, subiam carros de bombeiros com uivos mais altos que os lobos. Quando se cruzaram, todos se arrepiaram por causa do som das sirenes das viaturas vermelhas, que pareciam teimar em não querer subir a serra, quando do lado de lá, pessoas mascarradas de carvão, gritavam por socorro e indicavam com as pás qual o caminho a seguir.
Chegados à cidade, todos perguntavam o que tinha acontecido ou se tinham visto alguma coisa, porque a cidade estava em alvoroço. «Uma desgraça como nunca vista, senhores! A serra arde e os animais fogem como uns desalmados pelas cercanias da serra e pelos valados. Doidos varridos pareciam os bichos. De tal forma que um de tão cego vir da floresta, focinhou na frente da nossa camioneta para depois morrer todo esfarrapado, tal era a sua cegueira».

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