sábado, 1 de novembro de 2008

A Rua dos Ferreiros


Por: António Centeio

A Rua dos Ferreiros situa-se num pequeno lugarejo assente no sopé de uma das serras beirenses. Comprida mas sinuosa a seu meio tem a igreja da santa padroeira como junto desta tem o conhecido “Ponto de Encontro”.
Chamada de Rua dos Ferreiros porque, segundo as pessoas mais antigas foi a única artéria da localidade a ter meia dúzia de oficinas de ferreiros já que na mesma se localizavam imensas casas agrícolas possuidoras de imensas carroças.
Do lado Sul, um imenso e bem tratado jardim rodeado de um longo muro com cerca de um metro de altura acrescentado em cinquenta centímetros por um gradeamento todo enlaçado por barras de ferro trabalhadas com duas letras “JC” que mais não significavam de que “Jardim do Carril”. Um trabalho de mestre que impressiona os mais curiosos pela perfeição dos encaixes das duas letras. No seu interior, imensas acácias que dão sombra aos bancos feitos de delgados barrotes e pintados de vermelho.
Ao centro, um coreto que nas tardes de Verão dá poiso à velha filarmónica da terra tocando melodias da época. Do lado direito, o muro têm um emaranhado de arames que segura o roseiral obrigando o jardineiro a andar sempre atento porque os rapazes gostam de roubar algumas rosas para oferecer às raparigas. As rosas são as flores preferidas do velho homem que apoiado de uma muleta descasca naqueles que consegue atingir mesmo que de rasto leve a perna que manca. Nas suas flores é que ninguém pode mexer.
A Norte, um parque de diversão para a criançada. Constituída por dois baloiços, um escorrega, meias dúzia de cavalinhos que rodam com a força dos petizes, seguros a uma artimanha central que serve de equilíbrio e um vaivém que sobe ou desce conforme a habilidade de quem o utiliza.
Entre o parque e o coreto, uma pequeno lago tendo no meio um pequeno repuxo cercado por pedras cheias de lodo que tapa os buracos do xisto. Dentro de água, alguns peixes avermelhados que são o encanto dos miúdos. Sempre que estes mandam alguma coisa para a água vêm logo de seguida para se juntarem em V procurando aquilo que precisam para se alimentar.
No interior de jardim, em forma de triângulos, costeia as acácias, canteiros com as mais variadas qualidades de flores. Locais, onde nas noites quentes os namorados gostam de se esconder porque os poucos candeeiros existentes teimam fazer a noite mais escura do que é.
Rodeia, a única rua de alcatrão, compridos passeios todos de calçada a portuguesa trabalhados com o brasão carrilense. Tanto do lado esquerdo como do direito, um longo casario com casas baixas quase todas caiadas com cal branca, tendo a meio da parede dois ou mais pendurais que servem para segurar pequenos vasos com flores. Nelas moram trabalhadores modestos mas orgulhosos do seu património.
Todas têm, um pequeno quintal onde predomina, batatais, plantações de feijão – verde, alfaces, tomateiros e outros produtos. Rara a casa que a um dos cantos do quintal não tenha uma pocilga ou um galinheiro.
Alguns, poucos, têm a casa frontal com a rua pronta a habitar mas não a usam porque no quintal existe um pequeno barracão onde dormem e fazem a vida diária. Como “casa de banho” um pequeno buraco cavado no fundo do quintal vedado com velhas tábuas onde fazem as necessidades e a que chamam de “retrete do fundo”.
Se a pequena fossa, chamada também de séptica estiver cheia tapam-na com terra para ao lado fazerem outra. A da frente é apenas utilizada nos dias de festa ou quando haja visitas. Querem assim mostrar que possuem a casa em melhor estado que os vizinhos. Uma das poucas vaidades permitidas a quem conseguiu com algum sacrifício o que a maioria deseja.
A meio da Rua dos Ferreiros destacam-se algumas mansões que mais não são do que as casas dos senhores. Demarcam-se pela sua grandeza como pelos seus jardins frontais fazendo com que cada senhor tenha o seu jardineiro privado para que os espaços envolventes sejam maior e mais apresentável. Os aromas vindo das imensas flores fazem com quem junto delas passe tenha que parar para inalar os perfumes. Uma destas mansões é a dos Vianas.
Obrigatória, é a passagem na Rua dos Ferreiros da “Procissão das Velas”. O único último dia do sexto mês é aquele em que as frontarias das casas, seja do mais singelo dono ou do mais ilustre senhor, devem estar engalanadas com as melhores colchas e candelabros com velas acesas.
No meio da rua, pétalas de rosa, rosmaninho e alecrim servem de tapete à passagem do “andor”. Os olhos dos fiéis voltam-se para as colchas de seda que os senhores têm pendurado nas janelas e varandas dos seus aposentos.
É o momento em que a grandeza e a pobreza ou a vaidade e a simplicidade estão lado a lado. Todos querem mostrar o seu melhor. Ainda bem que a imagem assente e exposta no “andor” não liga a estas contradições caso contrário ainda descia de onde está para começar à paulada a quem não segue os princípios daquilo que aprendem na casa de culto que frequentam.
Foi nesta artéria que Amélia num dia de procissão conheceu Fulgêncio. Um homem que a encantou para pouco tempo depois se tornar seu esposo prometendo-lhe de frente à imagem do andor mas no interior da igreja que a faria feliz para «o resto da vida».
Prometeu-lhe sim mas não lhe deu. Ofereceu-lhe foi valentes cargas de porrada. Raro o mês que não arranjava maneira para a ir visitar ao hospital de tanto negrão ter no seu frágil corpo.
Estiveram casados durante cinco anos para se separarem de comum acordo após ele a ter ludibriado com boas conversas para além de muitas estaladas. O tempo suficiente para que o homem conseguisse registar em nome de uma outra «pessoa de bem e de confiança» todos os valores móveis e imóveis pertença da esposa. Não bastasse, até as poucas poupanças desapareceram acabando a infeliz a levar um ralhete da juíza por não ter «dinheiro para pagar as custas» quando «ele é que tratou de tudo».
Hoje, Amélia vagueia nas horas mais quentes do dia pelas ruas da localidade pedindo a este ou àquele que lhe dê algum «porque ainda não tomou o mata-bicho». Aos de igual ao marido, ou piores, aluga o corpo a troco de notas de baixo valor. As noites são encharcadas em grogues pagos pela escumalha que se aproveita da sua fraqueza.
Tempos passaram quando a sua beleza era admirada por aqueles que viam nela a imagem da «santa do andor» tal era a sua boniteza.

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