terça-feira, 17 de junho de 2008

O Afonso das Gaivotas


Por: António Centeio
Levou grande parte da sua vida no mundo do vinho. Paródias em cima de paródias. De tal forma, que já não podia passar sem andar com nódoas na roupa de tanto beber. Tornou-se um desleixado, como a sua família, passou a ter vergonha dos seus actos e das situações que criava. Quantas vezes a mãe do seu filho não o tinha que ir buscar à praia e deitá-lo dentro de um carro de mão, trazendo-o para casa, de maneira que as pessoas não o vissem deitado na areia curtindo os efeitos do que tinha bebido horas antes. Os seus amigos em vez de não o desinquietar ainda sentiam satisfação de encaminha-lo para o meio da lama para depois dele se rirem ou dele, fazerem um farrapo. As vergonhas foram tantas, que sem dar por isso, quem seu sangue tinha nas veias, começar a abandoná-lo porque não lhe conseguia dar-lhe a volta e já não estava disposto a passar por tantas vergonhas. Quando no estado normal despertava, então um complexo de culpa, junto de vergonha, levava-o a reflectir, durante pouco tempo, para de seguida sentir as lágrimas pelos remorsos da reles vida que levava. Passados estes momentos de solidez, seguia logo para as pequenas tabernas para começar o que já era habitual.
Só começou a despertar quando lhe disseram, em estado sóbrio, que seu filho sentia vergonha de quem seu pai era. Nunca se tinha apercebido que, quando trocava o passo, o filho mudava de passeio ou fingia não o conhecer, porque a idade que já tinha não lhe permitia ser enxovalhado pelas pessoas, como estas, só o viam como «o filho do desgraçado de quem nem pai sabe ser». Perdeu tudo e todos. A família que mais o protegia deixou-o só e abandonado porque não conseguia fazer dele o homem que em tempo foi e que todos admiravam. Nunca descobriram a razão que o levou a entrar no mundo do vinho. Ao ver-se sozinho prometeu a si próprio que iria deixar a vida que andava levando para iniciar uma outra nova. Assim fez e assim cumpriu.
Hoje leva os dias alheios a tudo que o rodeia, excepto as suas companheiras silenciosas. Pela manhãzinha quando se levanta da sua amorfa cama, situada numa pequena casa de rés-do-chão, que é húmida por estar numa ruela, onde o Sol nunca entra e de tão estreita ser, passa pela pequena padaria onde ainda se fazem vianhinhas, comprando – com as esmolas que lhe dão – meia dúzia.
O velho padeiro de tanto o conhecer, coloca-as no seu velho e usado saquinho de flanela dando-lhe ao mesmo tempo restos de pão que sobra do dia anterior para quem de si está junto. Depois segue o percurso até ao Picadeiro para atravessar o areal. Senta-se de seguida bem perto do mar para só se levantar ou mudar de sítio quando a maré começa a subir. Do saco tira a vianinha que acha ser a maior e mais macia para a mastigar lentamente. Do oferecido, desfaz o miolo em minúsculas bolinhas e vai espalhando-as em seu redor para as gaivotas que lhe fazem companhia – já o conhecem por estar sempre na mesma posição e no mesmo sitio. Criou hábitos nas aves, como os hábitos que sustentou durante anos, ao ponto de ambos saberem o que podem contar uns dos outros. De tal forma, quando menos esperava uma das companheiras voadoras, julgando que tinha direitos sobre quem lhe dava de comer, um dia subiu-lhe para o seu ombro para começar a bicar-lhe a sua cabeça com o seu cumprido bico, coisa que o assustou.
Sem saber porquê, se não era a mesma era uma outra, nos dias seguintes repetia-se a proeza. Começou a enxotá-las porque as bicadas faziam-lhe doer-lhe a parte que protegia o seu fraco cérebro. Mais as enxotava mais elas o apoquentavam. Os dias começaram a tornar-se incómodos e sofríveis para não dizer de angústia. Teve que mudar de poiso porque já tinha medo de quem tanta companhia lhe tinha feito. Assentou arraiais, algures debaixo de um rochedo, que de esquina, destrinça a extrema das praias com nomes diferentes mas que são só uma. Deixou de ser um homem para ser uma criança. Mal vê uma gaivota voando lá no alto olhando para baixo em busca de outros alimentos ou de algum peixe à toa do oceano ou enquanto espera pela chegada dos barcos que regressam da faina, assusta-se para se mirrar de tão assustado estar. Julga, de quem tem medo, seja alguma conhecida que na outra banda lhe bicava a cabeça mas que agora lhe vem pedir contas daquilo que deixou de dar. Só regressa ao lar quando o Sol começa a mudar para o outro lado da terra. Detesta as gaivotas e encolhe-se quando ouve os seus cantares. Nos sonhos, vê as gaivotas dentro de casa sobrevoando e consumindo o pouco que resta do seu corpo, deixando-o esburacado e sem forças para resistir a quem tanto deu de comer.
Salta da cama, feito um doido, para se sentar na mesma. Dobra as pernas, para no meio dos joelhos meter a sua cabeça vazia; então cai em si. Noites turbulentas que o levam a vadiar nas madrugadas silenciosas, mas assustadoras. Vale-lhe como protecção, os homens do mar que já o conhecem desde o tempo que viam o Afonso das Gaivotas falando para as gaivotas, ou as gaivotas falando para ele.
Recolhem-no numa das velhas barracas que serve de arrumação para os apetrechos da pesca, fazendo-lhes ao mesmo tempo companhia, não como homem, mas como alguém que ainda é gente, merecendo mais compaixão do que atenção. Resguardam-no, não pelo incómodo que possa dar mas por causa do seu medo das gaivotas. Dele não se riem mas da sua desgraça tem pena – apenas está para ali. Levou anos demais da sua vida a meter a cabeça debaixo do chão, como a avestruz, quando devia olhar as coisas de frente. Um desgraçado, com amostra de gente, que se deixou dominar pela fraqueza da vida e do vinho.

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