Por: António Centeio
Camila nasceu com uma deficiência. A perna esquerda era mais curta do que a outra cerca de cinco centímetros. Levou toda a vida a coxear coisa que pouco a importunou como nunca deixou de ser quem era por mancar. Viveu sempre a sua curta vida num mundo de miséria e lágrimas. Não lhe bastasse, encontrou para pai de seu filho outro azarento, tornando os dois a vida galhofeira dentro das suas fracas possibilidades. Diziam para quem lamentava a sua pouca sorte que «uma coxa e um bêbado levam uma vida feliz. Sabemos antemão que nunca seremos como os outros nem tão pouco teremos o que eles têm» para acrescentarem «somos felizes à nossa maneira. Quanto ao resto que se lixe». A quem não compreendesse o sentido das palavras que lesse a velha história do “Sapateiro e a Rainha”. Moravam numa barraca de madeira ressequida. Nos dias chuvosos, a água que caía «vinda de não-sei-donde» entrava pelas gretas fazendo com que lá dentro tudo fosse uma chafurdice. Até as palavras de raiva contra a pouca sorte se juntavam com a «massa do pão que o diabo amassou». Aqui nasceu o rebento que lhes fez companhia durante uma trintena de anos. Tempo suficiente para o filho também ser um infeliz porque deles dependia. Dizia Camila nos momentos de desolação «tal filho tal pai. Bons dois coirões me saíram na rifa da minha pouca sorte. Não me basta ser manca, quanto mais estes dois incapazes que não sabem viver se não à minha custa».
Por vicissitudes alheias à vontade dos dois, no fim do seu ciclo de vida tiveram que andar a caminhar durante alguns anos – quase todas as semanas – para o tribunal da comarca, ora como acusados ou como testemunhas de quem lhe pagasse o dia. Para eles, era indiferente testemunhar a verdade ou a mentira. O que precisavam era que a «parte interessada nos seus préstimos» os trouxessem de volta ao poiso e passasse para a mão da Camila aquilo com que se «compram os melões». Para a mão dela, porque nestas coisas de «fiel depositário» o marido não merecia a mínima confiança já que por via do seu estado crónico a que se sujeitava constantemente, tinha uma certa tendência para depositar a «jorna do palavreado» na “Taberna do Xico”. Talvez, por andar sempre com a “jorca” é que não olhava nem reparava que a mulher mancava.
Tudo isto durou até ao dia que testemunhou um caso acontecido na aldeia. A determinada altura do julgamento o juiz perguntou a Camila: «na verdade viu o sujeito que está a ser acusado de roubar aquilo que Bonifácio afirma lhe faltar? Na sua inocência e ignorância apenas respondeu ao magistrado: «Eu não estava lá Excelência. Se aqui estou a testemunhar é porque o senhor Bonifácio me pagou o dia para apenas dizer que vi aquele malandro a roubar-lhe laranjas e algumas couves para levar porque não tinha mais nada para dar ao filho» acrescentando na sua genuína ignorância «quanto ao resto nada mais sei a não ser que o meu patrão me diga mais alguma coisa». Porque o ilustre não estava para aceitar brincadeiras e muito menos mentiras, aplicou-lhe o recolhimento: «cinco dias de prisão no Governo Civil» com a seguinte admoestação: «da próxima vez leva o dobro de dias».
Remédio santo, nunca mais Camila e marido fizeram duo testemunhal. Mudaram de profissão para passarem a fazer arraial no “assento de registos” atestando com o dedo que a «assinatura de fulano foi feita na presença de tais ilustres atestadores». Mais não diziam. Do que recebiam ainda sobrava para algumas poupanças, livrando-se ambos de se sujeitarem a «alguns dias às escuras».
Quando chegou a altura do filho cumprir o serviço militar, este assentou praça na “Casa Bandeira”». Neste dia, Camila e marido aperaltaram-se da melhor forma. Até pediram ao vizinho a «gravata dos funerais» para que o «jorcoso» fosse dignamente apresentável para a cerimónia.
Fizeram a viagem na sua carrocita, puxada pelo “jerico”, besta esta, já habituada a longas caminhadas por causa dos desvios de recolhas nocturnas que os donos costumavam fazer nas épocas de crise. Chegados à cidade, prenderam o burro junto do poste que iluminava o mercado municipal e seguiram o resto do percurso a pé pela “Travessa do Bebedouro”.
O passeio era estreito mas facilitava o andar de Camila, porquanto metia a perna defeituosa na borda do lancil e a outra na estrada. Assim o corpo endireitava-se mais, deixando de ser, ou parecer, «uma cepa torta» como gostava de lhe dizer o companheiro
As pessoas que iam no passeio retiravam-se para dar passagem a Camila por causa do seu estado, não deixando de mirar «o andar da pobre coitada”. Na rectaguarda desta seguia o pai do mancebo.
Finalizada a cerimónia, que enterneceu a «melhor mãe e mulher do mundo» como lhe dizia o filho, quando estava sóbrio, regressou pelo mesmo caminho que havia percorrido pouco tempo antes. Chegada junto da carroça o marido com cara de poucos amigos perguntou-lhe asperamente: «porque que é que os homens olham tanto para ti?»Camila, olhando directamente para o parceiro, responde-lhe «Ai, homem d’um corno, não vês que é por ser côxa! Não me digas que só agora viste que sou manca?
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