quarta-feira, 28 de maio de 2008

As sombras de Estevão



Por: António Centeio

O espaço, que faz do adro frontal da igreja uma zona deslumbrante, é suficiente para ter no seu interior várias acácias. Alguma, bastantes rugadas pelo passar dos anos e outras ainda com muitos invernos para suportar, assim a natureza o entenda.
Uma delas, talvez pela perfeição que a natureza a dotou, diferencia-se das outras. A sua longa ramagem e a sua abóbada majestosa fazem com que, nos dias quentes, a sua sombra seja procurada por pessoas que neste local despejam para o Vento, palavras e desabafos de amargura contra as partidas que a vida oferece.
Debaixo da acácia, existe um velho banco de madeira já carcomido pelas ventanias invernosas e temperaturas escaldantes, que algumas vezes, sufocam e negam pequenos rasgos de fresquidão a quem sentado está no mesmo.
Pena não poder falar este velho banco, porque se o pudesse fazer, muitas histórias teria para contar de tantos desabafos já ter ouvido. Até as suas deterioradas tábuas se derramassem as lágrimas que por elas já escorreram numa pequena poça de água cristalina se transformaria. Algumas, de tão salgadas e amargas serem, secariam por completo as raízes que debaixo da terra se refrescam.
A terra que segura e ampara os quatro pés do assento também sentiu muitas vezes o cair de sublimes palavras soltas que roubadas foram pelo Vento a quem para ela olhava.
Algumas, de tão belas serem, enlaçaram-se por magia nas entranhas da terra para em segredo assustarem os vermes que delas se aproximavam, porque no seu entender, só as palavras escondidas sabem arrecadar os segredos para quem lê mas não sabe o que está a ler.
Acácias, árvores sombrias e imponentes, que nas noites chuvosas deixam cair pingos grossos, que de tão grossos serem, magoam quem por debaixo delas esteja. Mas, sabem oferecer o conforto a quem delas as ouvir falar e compreender que a sua seiva, da terra vem.
Talvez deste saber, Estevão, de seu apelido, pobre de espirito mas rico de saber, as suas tardes fossem todas passadas no adro da igreja. Para ele, este espaço tinha algo de místico.
O verde envolvente, o branco das paredes, o divino que rodeava toda a área, o simbolismo da cruz e de quem em tempos nela foi pregado como o voar dos passarinhos, deliciavam-no. Só às vezes, quando o barulho do silêncio o apoquentava, para de seguida ouvir o bater das avé-marias, é que se sentia incomodado.
Depressa retomava aos olhares perdidos no horizonte para meditar nos tempos que a vida lhe tinha sorrido, dando-lhe aquilo que ele nunca soube compreender, levando-o ao mesmo tempo, a perguntar a si próprio, se “tinha merecido o que nunca pediu”.
Ele, que tanto gostava de olhar para as estrelas nas noites de solidão, ficou uma presa dessa mesma solidão. De tudo o que tinha, de tudo o que arranjou, de tudo que construiu e de tudo que amealhou, levado foi pelas estrelas.
Apenas lhe resta uma coisa: sentar-se no banco, que por baixo da acácia existe, para passar o tempo na claridade do dia a “lembrar-se daquilo que foi para pensar naquilo que é”.
De olhar contínuo e erguido para o vazio, apenas anseia que a escuridão chegue, porque nas trevas, pode encontrar nas ruas sinuosas da cidade restos de alimentação que mais não são do que “as sobras que os outros deitam fora”. Depois de encontrar este conforto interior, tenta procurar abrigo para dormir numa barraca situada na planície que faz frente com o terreno onde estão colocados quatro muros compridos, altos e largos, pintados de branco, tendo no seu interior alguns cedros, onde a terra é pesada e fria; onde Estevão, gostaria de estar à muito para não sentir o passar das estações.
O seu maior desejo, nas dezenas de anos que já têm e nas centenas de luas que já viu è: “encontrar uma estrela” para o “levar como levou as suas coisas”.

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