quarta-feira, 11 de março de 2009

Manel, o velho pastor


Por: António Centeio




Uma longa estrada de terra que acaba numa contornada curva embocando depois em dois caminhos tortuosos que seguem: um para o mouchão dos franceses, outro para o malagueiro dos choupos. Demarca-os duas altas e espessas árvores.
Do lado esquerdo, antes dos desvios, pequenos cerros de terra, espessos de erva rastejante, intervalados por duas raquitas amostras de velhos troncos que teimam em manter-se de pé. Um pequeno charco recolhe águas da chuva servindo de bebedouro ao gado.
Do lado oposto, junto ao caminho, uma velha e extensa cerca de madeira com dois metros de altura. Ao comprido, velhas tábuas de madeira espaçadas umas das outras, cerca de vinte centímetros no sentido horizontal, que em tempos muita sombra fizeram e pregadas em barrotes na vertical separados uns dos outros a uma distância de um metro. Vedam a herdade para quem passe ao lado saiba que existem extremas. No seu interior, velhas árvores vivem da humidade da terra. Depois, terreno a perder de vista, cheio de verdura, vendo-se ao longe grandes salgueiros que escondem o rio Tejo.
Da estrada até ao rio, a meio, uma pequena casa de madeira toda ferrada a tábuas, mas só de uma divisão. Nos dias de Inverno, apenas se vê o fumo a sair da sua chaminé. Quatro janelas de madeira, quando abertas, servem de entrada para a claridade do dia. A da noite é a chama de um velho candeeiro a petróleo que ilumina quem nela vive. Uma velha porta segura por duas dobradiças feitas de um metal qualquer, chiam quando a abrem ou fecham, excepto quando, fica aberta ou quando o vento a faz abanar.
Nesta planície viveu durante muito tempo o Manel, pastor, que passou anos inteiros na pastagem guardando as suas manadas de gado.
Quando o Sol nascia, Manel começava o dia abrindo a salgadeira onde estava guardado bocados de carne da última matança do porco. No meio de uma das várias camadas de sal, tirava o gordo toucinho já amarelecido para de seguida cortar uma fina fatia. De cima da mesa, abria a pequena lata redonda e lá de dentro cortava o quarto de pão do dia. Depois, voltava-se para o que estava a aparecer no céu. Sentava-se no seu torcido mas pequeno banco de madeira, que com pouco mais de vinte centímetros, estava acima do chão.
Pequenos fragmentos de toucinho e de pão eram cortados com o seu inseparável canivete de bolso. Era o seu pequeno-almoço.
O gado despertava aos poucos para pachorramente vir cercando a casa, de quem, dali a pouco o levaria para a pastagem. Anos e anos de costumeira. Tantos, que conheciam os hábitos uns dos outros. Muitas vezes Manel perguntava a si próprio se era ele que conhecia os hábitos dos animais se estes os dele. Pouco depois seguiam para a pastagem. Enquanto o gado pastava, o pastor levava o seu tempo debaixo dos velhos salgueiros sentado no banco que o acompanhava sempre. Nos dias quentes apetecia-lhe passar para o outro lado do rio ou neste tomar banho. Como não sabia nadar, das duas uma, ou teria que o fazer num dia que houvesse pouca corrente ou tinha que fazer como alguém disse: «Para me forçar a atravessar o rio, tenho que atirar as botas para o lado de lá. Assim tenho que as ir buscar». Nunca o atravessou.
Entre as duas tábuas que serviam de sustento ao banco metia o seu pequeno saco feito de restos de panos usados, onde estava o almoço feito no dia anterior, a merenda, a cabaça com três quartos de vinho tinto, duas pequenas pontas de corno que serviam de galheteiro, para de seguida ir à procura de bocados de lenha. Quando encontrava alguma mais verde ou macia, trazia-a. Começava o seu trabalho favorito. Fazia conchas de madeira, garfos, colheres de sopa, charruas, forquilhas, carroças puxadas por cavalos, charretes engalanadas e as mais variadas miniaturas de ferramentas agrícolas. Adorava fazer estruturas de relógios que mais pareciam as antigas capelinhas que só lhes faltava o maquinismo para poder funcionar.
Foram estas coisas que ao longo dos anos fizeram com que o Manel se tornasse num dos melhores artífices da charneca ribatejana. Dos confins do mundo procuravam-no para poderem admirar as suas obras. Por algumas, era-lhe oferecido elevadas quantias que para um modesto pastor mais não eram do que uma fortuna. Recusava sempre, porque pouco lhe interessava desperdiçar a vida em busca da fama ou na abundância do dinheiro. Valorizava mais que na sua vida deixasse obra feita para poder ser recordada na memória do tempo.
O seu lema era: aumentar o património para quando na velhice andasse com a «tralha às costas podê-la mostrar aos outros». Afirmava com convicção que as «peças de artesanato não devem ser vendidas mas sim expostas para que não se perca a tradição».
Encontrei-o um dia destes numa feira de antiguidades expondo parte dos seus objectos, onde alguns, nos dias que correm já são relíquias valiosas. Nos seus noventa e oito anos de idade, jorra saúde e alegria.
Disse-me: «quero durar mais dez para fazer uma exposição geral dos bonecos que arranjei ao longo dos anos. Não quero que acabe a tradição dos homens do campo». Apenas se emocionou quando se lembrou da apanha do figo, quando era moço. Já não conduz as suas manadas de gado, mas tem saudades do tempo em que se sentava à sombra dos salgueiros cortando bocados de madeira para «fazer as suas coisas».
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