segunda-feira, 21 de julho de 2008

A vendedora de peixe




Por: António Centeio

Vende peixe numa banca do Mercado Municipal. Gosta que a tratem por vendedora de peixe ou peixeira. Desde que não os considerem depreciativos pouco lhe importa. Afinal está na banca para vender o que a sustenta como sua família. Orgulha-se da profissão como do que faz. Se lhe comprarem todos os dias o peixe que recebe então é a mulher mais feliz. Sente-se uma vendedora realizada quando lhe agradecem a atenção como se sente satisfeita quando recebe elogios pela forma como amanha o peixe a pedido de quem o compra.
Antes de ir à sua banca, costumo dar uma volta pelo interior do mercado. Adoro a azáfama dos mercados e os diálogos das vendedoras que tentam vender os seus produtos. De tantos dizerem o melhor do que vendem, às vezes só lhes falta meter o selo de garantia para sabermos a sua origem ou sermos seduzidos pela qualidade da terra em que são plantadas as verduras. Diga-se em abono da verdade que algumas «comem-nos os olhos» de tão bom aspecto terem. Gosto de olhar e de mexer na verdura para meter conversa com quem tem as mãos gretadas pelo amanho da terra. São para mim a melhor garantia do que estão vendendo, vem de onde dizem vir.
O suficiente para já ser conhecido no mercado pela minha presença. Uma das vendedoras, que mais não é do que uma senhora dobrada pelo passar dos anos que delega na filha o somar dos números, convidou-me um dia destes a visitar o «seu terreno» bem perto da cidade para ficar a saber as voltas que as coisas dão até chegarem onde estão.
Fiz-lhe a vontade. Quando menos esperava apareci-lhe no momento da apanha das couves e do seu arranjo como das alterações que seguidamente sofrem no seu pequeno tanque. Serve para as lavar e conservar; para seguidamente ficarem muito bem arrumadinhas em cima da sua velha camioneta que na madrugada seguinte seguirá com destino ao mercado da cidade.
Vi também a apanha das cenouras e das sacudidelas que sofrem para terem boa apresentação para quem as comprar.
Aquele cheiro da terra fez-me lembrar tempos passados em que nas noites de Verão ia passear devagarinho no meu automóvel com os vidros todos abertos nos terrenos agrícolas de pessoas conhecidas com uma única missão: sentir o cheiro da terra. Senti este cheiro no cair da terra que as cenouras traziam.
Gosto de ver toda a zona dos queijos e da quantidade de queijos que aqui se vendem como gosto daquele cheirinho do pão quando vindo das padarias e da maneira que as vendedoras o tem arrumado. De tantos estarem atentas no que estão a fazer nem dão pelas pessoas que circulam várias vezes pelas redondezas das suas bancas. Estão lá para «vender e não para ver quem passa» foi a resposta que uma padeira me deu quando lhe pedi para explicar-me qual o nome do tipo de pão que tinha à venda mas que nunca tinha visto. Apenas me pediu que aguardasse até que «não tivesse fregueses para atender». Explicou-me toda a mistura de que era composto como da sua feitura.
Quando já vi o que tinha que ver ou ouvi o que tinha que ouvir, então sorrateiramente encosto-mo por escassos minutos para ver, sem ninguém aperceber-se dos movimentos da vendedora do peixe
Uma cara triste, talvez marcas de uma esquecida amargura do passado ou de alguma recusa da vida; porque não, de alguma partida da vida? Vale-lhe o sorriso que os seus olhos espalham pela face fazendo-a parecer a melhor mulher do mundo como que tenhamos que simpatizar com ela logo à primeira vista.
Gosto de lhe comprar o peixe para toda a semana. Nunca me entendi com a qualidade do peixe nem com os seus nomes. É ela que me diz – este aqui é corvina e aquele acolá é peixe-espada. Se levar o primeiro pode fazer os mais variados cozinhados; se levar o outro arranjo-o de forma que depois de frito «é de comer e chorar por mais».
Sabe que sou um ignorante na cozinha. Afinal há anos que lhe compro o peixe e sempre confiei nela como nos seus conselhos e recomendações. De tal forma, se hoje sei alguma coisa sobre «cozinha» a ela posso-lhe agradecer.
Sei também, porque me disse que os seus «antepassados eram pessoas que viveram sempre junto do mar». Daqui, continuar a desempenhar de outra forma aquilo que lhe ensinaram e que fez sempre parte da sua vida. Disse-me ainda que nos seus tempos livres, costuma ir «passear à Nazaré» porque nesta linda terra «estão as suas raízes». Costuma sentar-se em cima das rochas que servem de base a um sítio que chamam o «Sítio da Nazaré». Então olha para o horizonte durante horas para ver se consegue ver quem se perdeu na apanha daquilo que vende e se alguma sereia do mar lhe conta as histórias de quem nas noites de tempestade se perdeu e nunca mais voltou.
Disse-me também, porque perguntei-lhe, que a cara que tem mais não «são do que marcas das dores que o vento do mar deixou como das saudades das coisas passadas e da perda das pessoas que lhe eram queridas». Compreendi perfeitamente o que queria dizer. Só não me soube explicar porque sorri com os olhos.
Ainda existem pessoas que sabem contornar os obstáculos da vida mesmo que os seus olhos chorem quando se lembram de tempos vividos mas que nunca deixam correr pela face qualquer lágrima. São pessoas feitas de granito. Nunca dobram às agruras do tempo como preferem: morrer de pé quando a vida teima que morram de joelhos.
Por estas e outras razões, continuo todos os sábados a ir ao Mercado Municipal, não pelo seu sorriso como da sua cara triste mas pela simpatia que irradia e pelo sorriso encantador que espalha nos olhos de quem lhe compra peixe.
Visite na Internet o site:
www.gazetadospatudos.com
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados. O leitor não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida autorização do autor.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Meu velho amigo e camarada Parente




Por: António Centeio

Estava ausente quando soube da notícia do falecimento do meu velho amigo e camarada Parente. Ao receber a informação da fatalidade a minha alma transfigurou-se de tal forma que as lágrimas se derramaram pela face como tivesse sido molhada por uma torrente de água. De imediato regressei para que não faltasse ao seu funeral. Assim aconteceu.
Ainda criança quando via a minha pessoa chamava-me logo para saber onde andava e o que estava fazendo. De seguida dava-me conselhos de toda a espécie para que quando um dia “fosse um homem, soubesse honrar quem me deu vida” porque “estes mereciam tal coisa”. Marcou-me profundamente. De tal forma que o considerava como o “meu melhor protector e o melhor professor das coisas da vida,” quer pela sua experiência como ainda pela maneira de falar e sabedoria. Eu era a criança que ele adorava. Encarava-me como seu “favorito” talvez pela amizade que o unia a meu falecido pai como a estima que a minha família lhe merecia.
Sobre a sua pessoa, lembro-me de ouvir as mais variadas e pitorescas histórias que fazia como o imaginasse numa espécie de centurião romano ou um musculoso homem de outro planeta em virtude de seu enorme corpo e cara de respeito que apresentava para com todas as crianças. Algumas não passavam de lendas mas outras eram verdadeiras. Que eu saiba nunca casou e muito menos viveu com mulher alguma mas sabia -porque me disse – que visitava de tempos a tempos a “casa das meninas” onde satisfazia as suas necessidades. As histórias originárias destes encontros ensombraram durante algum tempo a minha imaginação sobre os prazeres da luxúria como me espevitava o caminho para a curiosidade de saber se na verdade a coisa era tão boa como Parente dizia. O tempo se encarregou de ensinar que na verdade ele era um “mestre na arte”.
Originário de famílias de posse, bem cedo se separou de quem o estimava, dispensando ao mesmo tempo a fortuna que os “seus lhe tinham destinado”. Sempre quis viver do que ganhava e levar a vida que gostava. A sua liberdade por preço algum trocou, ao ponto de feito homem, os familiares se envergonharem da sua situação precária e das pobres condições em que vivia. O que lhe interessava era a sua felicidade. Pura e simplesmente marimbava-se para o que diziam e pensavam dele. Sempre satisfeito com a vida ensinava aos mais pequenos – tipo de gente que adorava «nunca devemos deixar de ser aquilo que somos mesmo contrariando a vontade ou os desejos dos outros”. As crianças quando o viam na rua era como vissem o deus dos deuses. A gritaria entoava pela rua e toda a gente ficava a saber que Parente estava rodeado dos mais pequenos. Era a sua alegria e felicidade. Os seus enormes dentes mostravam a grandeza da sua alma. Um homem pronto a fazer e a dar o seu melhor pelos outros sem nada querer em troca.
Quando me fiz homem e iniciei o percurso da vida Parente seguia-me de perto. Se por alguma razão a ausência do seu predilecto se prolongava ia recolher as informações necessárias para saber do ponto da situação: se não lhe agradasse o que ouviu, desbravava caminhos e encruzilhadas para me ver ou aconselhar daquilo que considerava o “melhor para mim”. A experiência da vida ensinou-me que os seus conselhos eram os melhores e os mais certos.
Do meu velho amigo e camarada Parente nunca me esquecerei daquilo que sempre ouvi dizer como algumas vezes cheguei a testemunhar:
Decorria a década de cinquenta do século passado. A sala do cinema compunha-se de várias filas de cadeiras. Distribuídas por classes, davam-lhe os nomes de: “Geral (que chamavam também de piolho) Plateia, Balcão e Camarotes”. No primeiro andar, tipo meia-lua, o “Primeiro e Segundo Balcão”; nos cornos da lua, encaixava-se uma meia dúzia de camarotes, a puxar para o finório com a ajuda de carteiras bem recheadas. Era o espaço dos senhores janotas e das madames vistosas. O “camarote” mais distinto estava reservado “perpétuamente” ao fiel cliente, conhecido por Parente.
A alcunha, vinha por esta figura, considerar nas outras, um laço familiar como que, sendo todos descendente da mesma espécie. De pouco valia argumentar. A origem da família, para o Parente estava escarrapachada no Livro do Mundo a que chamava de Divino. Se em causa fosse posta a sua teoria, enviava os contraditores para a casa do pároco, que mais do que ninguém lhe servia de testemunha.
Um homem aí na casa dos cinquenta. Bem encorporado, possuidor de uma voz rouca que até fazia estremecer quando levantava o timbre. Solteiro, residente numa casa térrea, de uma só divisão, onde numa das paredes tinha pendurado uma velho relógio de capelinha, que para a rapaziada com menos de uma dezena de anos «era um rato amigo do dono que dava corda ao marcador de horas». Com profissão desconhecida mas sempre com uma carteira apetrechada de trocos. Os suficientes para gastar a seu belo prazer e dar a quem só ele entendesse necessitar.
Homem estranho, gozado pela canalha mas temido pelos grandalhões ou seus iguais, de alma, porque fisicamente estavam a léguas de distância na força e tamanho.
Agarrava em duas sacas de cimento de cada lado do corpo – pesando cada uma cinquenta quilos – seguras pelos braços que ao subir a escada em vez de ser ele a cair com tal peso, eram os degraus que se partiam. Homem estranho como esquiva era a sua maneira de viver.
Mal abria as portas do “Cine” Parente tinha que ser o primeiro a entrar. Ia directamente para o seu “camarote”. Sentava-se, cruzava a perna, para de seguida começar a ler o jornal, com os seus óculos de sol – lentes bem escuras – que o acompanhava quer fosse de dia quer noite, Inverno ou Verão.
A sala ia enchendo, vendo-se aos poucos, as cadeiras – conforme os bilhetes iam sendo rasgados pelo porteiro – a dar forma no interior da casa de espectáculos como a garantir aos pagantes que a sessão ia ser boa; o contrário era sinal de má escolha. Na hora anunciada desligavam-se as luzes para logo rodar a fita da sétima arte.
Parente pouco ligava à rotina como ao desenrolar do filme para continuar a ler o tablóide, vindo de não se sabe donde.
De algures, ouvia-se uma voz «Oh Parente está a ler às escuras!». Ria-se para dobrar o jornal, metendo-o de seguida no bolso de casaco. No intervalo, era o seguimento do que não foi acabado.
Mais uma vez a voz estranha clamava « Parenteee!....., o jornal está ao contrário! Está a ler as notícias de pernas para o ar!» E, estava mesmo, porque o Parente não sabia ler. Apenas gostava de exibir a sua ignorância – para os outros – de homem simples com sonhos de grandeza como os seus cultos vizinhos de camarotes situados a bandas do seu – os debaixo, eram da classe média.
Era boa pessoa. Continuamente sorridente mas inseparável da sua gasta folha de periódico como dos seus velhos “Óculos de Sol” comprados por tuta-e-meia em qualquer banda que nem ele próprio sabia. «Comprei-os a um contrabandista que por aqui passou, depois de finda a Grande Guerra». Verdade ou mentira, nunca se apurou.
«Aí está ela!»
Era a Sara Montiel a artista preferida de Parente e a personagem principal do filme. A “Plateia” batia palmas ao Parente salvo quando os do baixio apanhavam na cabeça as cangalhadas e cascas de amendoins que a classe finória mandava para o vazio.
Era logo um banzé na choldra. Neste momento o corpanzil do Parente erguia-se em plena escuridão para admoestar a populaça «calem-se suas cavalgaduras que quero ouvir a Sarita». Calavam-se mesmo.
Velho e amigo camarada Parente como a sua ordem era respeitada, mesmo que lá no fundo, todos gozassem com as saídas inesperadas do Parente.
Uma figura castiça que memorizou histórias do arco-da-velha nas gerações seguintes; história adulteradas que inferiorizam Bocage.
Belo dia de Carnaval, subiu com a sua pasteleira, até meio, a íngreme rua. O restante foi a pé, segurando o transporte pela mão, levando em cima do guiador do velocípede, um par de cornos, comprados na manhã do dia, no talho do Felismino.
Chegado ao cimo, monta-se em cima do selim, seguro pelo quadro de aço alemão e assente em duas rodas com locomoção humana, para descer com toda a sua força muscular, muito própria de quem a tinha, ganhando uma velocidade tonta. Às tantas perdeu o equilíbrio para se estampar de rejeitada em cima do passeio empedrado. Como caiu como ficou. O corpo todo estendido assustou o mulherio que gritou logo por socorro. Tinha havido um acidente grave: a vítima não era nem mais nem menos do que o Parente.
«Ai que o Parente morreu! Chamem uma ambulância»
Estavam os maqueiros colocando o folião na maca, quando o morto se levanta, gritando «Alto e pára o baile, que o artista nunca morre no filme!»
Aquilo é que foi uma gargalhada. Só o Parente para fazer uma cena destas. Durante semanas, logo conhecida a coisa da canalha, foi o tema mais falado na escola.
Parente foi durante anos o ídolo da criançada. Bastava ser visto por um, logo outros se juntavam em grupo como bando de pardais.
Quando um dia correu a noticia que Parente «foi desta para melhor» – ainda por cima no dia dos finados – toda a gente das redondezas fez questão de acompanhar o corpo à ultima morada. A figura mais típica da terra, quando dentro do caixão, foi cercada por pessoas, que ele próprio se fosse vivo, nunca tinha visto de lado algum.
Quem gostava de andar em cima da terra passou a estar debaixo dela. Muitas lágrimas se derramaram naquele dia de infelicidade e muitos lenços foram lançados para cima do baú rectangular de côr castanha.
Aí, meu velho amigo e camarada Parente todos te recordam e todos nós falamos de ti, como no nosso meio estivesses.
Recentemente, no Carril depois de passadas algumas dezenas de anos, após a sua morte, colocaram seu nome e alcunha numa rua para que seja lembrado enquanto a memória dos vivos recordar o Parente. Vale mais tarde do que nunca.
Visite na Internet o site: www.gazetadospatudos.com
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados. O leitor não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida autorização do autor.